29.6.07

IPO

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Acho profundamente errada a saída do IPO de Lisboa para Oeiras, o que tudo indica, irá mesmo acontecer. Uma cidade não se pode ver esvaziada de serviços essenciais, ligados a uma importante memória colectiva, apenas por uma lógica economicista. Por esta ordem de ideias vamos começar a assistir à venda de todo o património público que está no centro da cidade, passando hospitais, quartéis, universidades, tribunais e muitos outros para os subúrbios, pois compensa vender os mesmos, com excelentes localizações no centro, para habitação de luxo e condomínios fechados, e com esse dinheiro construir os novos na periferia. Mas quando tudo tiver transitado para os subúrbios o que é que resta em Lisboa? Hoje as pessoas já não moram em Lisboa, mas sim nos seus subúrbios, mas ainda se deslocam para o centro da cidade para trabalhar, estudar, divertir-se, etc, mas por este andar no futuro nem isso.
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Na lista de património em risco de venda a privados estão também o Hospital D. Estefânia e a Penitenciária de Lisboa, entre vários outros. Também já se falou na Polícia Judiciária, no Hospital de São José e por aí fora…
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"Aparente paradoxo: este ano as Feiras do Livro foram mais curtas em todos os sentidos (menos orçamento, menos actividades paralelas, menos stands) e contudo os editores mostraram-se muito satisfeitos, no balanço final, com o volume de negócios, que excedeu todas as expectativas ao registar um aumento médio de 20%. Os tempos são de crise e as pessoas aproveitam até ao limite a possibilidade de comprar livros com desconto? É verdade, mas isso não explica tudo. Para mim, o segredo de 2007 está antes numa fórmula talvez involuntária mas pelos vistos eficaz: menos Feira e mais Livro."
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[José Mário Silva n' A Invenção de Morel]

28.6.07

Último “Livros em Desassossego”

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"Existem Livros de Verão?" é o tema do último “Livros em Desassossego” da temporada.
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É às 21.30, na Casa Fernando Pessoa, moderado por Carlos Vaz Marques e com as convidadas Paula Moura Pinheiro, Patrícia Reis e Carla Hilário Quevedo. Vão estar também a editora Maria da Piedade Ferreira (da Oceanos) e o escritor Manuel da Silva Ramos, que irá apresentar o seu novo romance Ponte Submersa.
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A entrada é livre.

27.6.07

Último "É a Cultura, Estúpido!"

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(clicar para aumentar)

26.6.07

Entrevista de Baptista-Bastos

Depois de uma pequena entrevista ao DN, Baptista-Bastos deu agora uma entrevista com outro fôlego ao Ípsilon (suplemento do Público). A entrevista foi conduzida por Alexandra Lucas Coelho e deixo-a aqui:
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NINGUÉM SE METE COMIGO
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Uma almofada com a cara de Marx atrás das costas em quase três horas de conversa. Um caderno Moleskine com uma lista de expressões insuportáveis como "no seio de" e "evento". Ainda e sempre esta relação sanguínea com a língua portuguesa, seu vasto domínio. Mais de 50 anos de jornalismo e 10 romances, contando com "As Bicicletas em Setembro", que acaba de ser publicado, obra em torno de uma mulher, Jesuína, onde Armando Baptista-Bastos (Lisboa, 1934) faz caber a sua própria mulher, Tejo e tudo o que não consegue caber à vontade no presente, agora. É um dos mais furibundos, anti-fleumáticos autores do jornalismo português.
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Porque se diz que inventou entrevistas?
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É um disparate. Foi um pretexto para fugir à censura. A entrevista que inventei, entre aspas, começa no "Almanaque", uma revista decisiva. O chefe de redacção era o [José] Cardoso Pires, o editor que dava o dinheiro era o Figueiredo de Magalhães, os redactores eram Augusto Abelaira, Stau Monteiro, José Cutileiro, Vasco Pulido Valente, Alexandre O’Neill, e eu.
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1960?
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1960, 61. Eu tinha ido para o "Almanaque" expulso d’"O Século", por motivos políticos. E queríamos fazer um número sobre os "monumentos" nacionais. O Matateu, a Amália Rodrigues - com uma capa espantosa do João Abel Manta. Uma publicação que tivesse mais de 120 páginas não ia à censura prévia, era um truque que arranjávamos, ter mais de 120 páginas. Decidiu-se que eu ia entrevistar o Matateu, e pergunto as coisas ao contrário. É uma entrevista muito cruel.
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Se ele sabe quem foi o Aquilino, o Beethoven...
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Para dar a imagem devolvida [da nação], digamos. Extremamente cruel. Qual é o país que gosta mais? É a Itália. Então porquê? Por causa das mulheres, gostam muito dos pretos.
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Marquei aqui [no livro "As Palavras dos Outros"]: "Por causa das mulheres. Lindas. Comi algumas. Muito boas. Gosto bastante da Itália. Que rico país para um preto viver!" Ele disse mesmo: "Que rico país para um preto viver!"?
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Rigorosamente. O Matateu era absolutamente invulgar, e não sei se eu devia ter publicado essas coisas. Ele subia a Calçada da Ajuda e os miúdos atrás dele. Todo o gato e cão era Matateu. Ele sentava-se naqueles bancos corridos das tabernas a conversar com as pessoas. Era extremamente popular. Mais tarde tentei ressarcir-me escrevendo uma crónica onde dizia que fui muito cruel. Porque ele diz lá na entrevista: "O Matateu não diz mal de ninguém."
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É daí que vem a fama em relação às suas entrevistas?
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Abre uma perspectiva à entrevista em Portugal. Fazer o retrato da pessoa através das leituras, do conhecimento do mundo, dos tiques.
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Mas que tem isso a ver com a ideia de que inventou palavras, de que as coisas não se passaram assim?
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Passaram-se rigorosamente assim.
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Conte o seu encontro com Paul McCartney.
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Por intermédio do correspondente no Algarve, o "Diário Popular" ("DP") sabe que o Paul McCartney estava cá. E o Balsemão manda sete jornalistas para as sete saídas de Lisboa, porque ele vinha a caminho de Lisboa. A mim tocou-me Vila Franca de Xira. Chego à ponte, onde havia a portagem, e pergunto: "O senhor viu aí um tipo de cabelos compridos?" E ele diz: "O Beatle? Está ali na estalagem Gado Bravo." Fui lá. [McCartney] vinha com uma rapariga lindíssima que lia o "Spleen de Paris", do Baudelaire. Estavam a beber Casal Garcia. Eu disse: "Olhe que esse vinho não se bebe", num inglês péssimo. "Então o que devo beber?" "Quando muito, um Alvarinho." E começa assim a conversa. Ele pergunta: "Você é jornalista?" "Sou." E pergunta - foi a primeira vez que ouvi dizer isso - se eu era "freelancer". Sabia lá o que era isso em 1965. Tivemos um encontro de meia-hora, quanto muito. E perguntei-lhe estas coisas [que estão em "As Palavras dos Outros"].
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"- Como é o nosso tempo?
- O tempo dos astronautas.
- Consideram-se homens inteligentes?
- Somos homens práticos.
- Que é ser prático?
- Talvez viver a época.
- Isso não será condescender?
- Somos trabalhistas, sabia?"
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Como era? Tomava nota, gravava?
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Tomava notas rápidas.
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Isto é uma conversa tal e qual? É uma conversa recriada?
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Tal e qual.
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São respostas lapidares.
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Pois são. E não é a entrevista total, houve partes cortadas.
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A propósito das entrevistas do livro "Fado Falado" disse que punha as habilitações literárias dos fadistas porque era algo significativo sobre as pessoas. Porquê?
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Não me recordo, mas se calhar queria dizer que as pessoas de pouca ilustração cantariam melhor o fado. As entrevistas de "Fado Falado" têm a mesma componente, digamos dialogante, dessas que referiu. É uma astúcia. Dava a volta, e a meio fazia aquelas perguntas mais provocatórias. Porque uma entrevista é sempre uma provocação e nunca uma chicana. Por exemplo, as entrevistas do semanário "Ponto". Aquilo é "ipsis verbis", e foram ditas coisas que as pessoas ficavam apavoradas com o que tinham dito. 18 anos depois um cantor disse que eu tinha escrito o que ele não tinha dito. Nem sequer respondi - 18 anos depois? Podia ter dito logo. Nunca tive qualquer desmentido porque tudo era a reprodução daquilo que me diziam. Eu fazia paragens e tudo. "Espere aí um bocadinho que não apanhei tudo."
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Há uma entrevista, julgo que com uma prostituta, em que ela lhe diz: "Você escreve na mecha." E o Baptista Bastos: "Espere aí só um bocadinho."
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E reproduzia "ipsis verbis". Uma entrevista para o "Ponto" durava entre cinco e sete horas. Era um molho de papel.
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Nas suas habilitações aparece sempre Escola António Arroio e Liceu Francês. Como se dá a passagem? São mundos socialmente diferentes.
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Não são. O Liceu Francês tinha um pólo no Beco do Tijolo [junto ao miradouro de São Pedro de Alcântara], que eu frequentei.
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Socialmente diferentes em relação à origem dos estudantes.
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Penso que não. Não sei. Andei na António Arroio a chumbar gloriosamente em arquitectura. Fui colega do [pintor] Costa Pinheiro, fizemos um jornal de parede. Eu frequentei o curso nocturno.
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E o Liceu Francês?
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Foi depois. Mas no Liceu Francês só tirei francês. A António Arroio talvez fosse uma fuga do pessoal que tinha veleidades literárias, artísticas. Andaram lá o Cesariny, o Vespeira... E a gente queria aprender francês e na António Arroio dava-se mal francês e inglês.
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Foi apanhado cedo pelos livros. Não se colocou a hipótese da universidade porque já estava nos jornais, porque não havia possibilidades económicas?
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Não havia. A universidade era quase inatingível.
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O seu pai levava-lhe "A Bola" para casa, recomendando que lesse a coluna do [crítico literário] João Gaspar Simões.
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O meu pai paginou a "Bola" e era chefe da tipografia no "DP", ao mesmo tempo. Não havia dinheiro e tinha que arredondar a conta ao fim do mês.
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Essa paixão omnívora pelos livros vem dessas coisas e de que mais?
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No fundo é isto: os miúdos dos bairros queriam fugir ao anonimato. Ou ser toureiro ou pugilista... .
Considerou as duas hipóteses.
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Pois, aliás levei uma marrada em Moscavide, estraguei um fato. E a outra [hipótese] era escrever.
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De onde lhe vinham os livros?
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O meu pai tinha livros. Havia as coisas do [Émile] Zola, peças tradicionais numa família de anarquistas, de comunistas, de socialistas. E havia as bibliotecas públicas. Começo a despertar para a leitura por causa do "Mosquito" [revista de BD]. Não eram os quadradinhos, mas o que lá estava escrito. Havia um homem, Rofer, que anos depois conheci como revisor do "DP", Roberto Ferreira. As histórias que ele escrevia é que talvez me tivessem despertado. E depois comecei a escrever muito novo nos jornais.
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Estreia-se aos 14?
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Na página infantil de José de Lemos [um fenómeno de popularidade, no "DP"], estão ali todos os desenhos dele [na parede cheia de quadros, já quase junto ao tecto].
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Mas leu muito em bibliotecas.
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Quando deixámos a Ajuda, fomos para a Rua da Bombarda, junto ao Largo do Intendente. Havia ali a biblioteca da Escola 1 ou 2. Eu atravessava a Almirante Reis, ia para lá e um homem chamado Freitas era o bibliotecário. Deu-me o Emilio Salgari. Foi a grande descoberta. E entretanto trabalhava. Fui aprendiz de droguista, trabalhei uma semana numa confeitaria.
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Com 13, 14 anos?
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Sim, trabalho infantil. Foi importante para o meu conhecimento do mundo do trabalho, onde o trabalho é muito violento. Ia aos sítios pedir emprego - com calções! Trabalhei numa marcenaria que fazia tampos para máquinas de costurar, uma coisa pesadíssima. Um dia puseram-me um daqueles carros de mão cheio daqueles tampos e demorei muito tempo a chegar à oficina, que era ali na Penha de França. E a minha madrasta [BB perdeu a mãe muito cedo], uma mulher extraordinária, andou em Lisboa à minha procura. Apanhou-me, estava eu já esfalfado, já noite, quase a chegar à oficina. Insultou o homem de tudo: "O senhor faz isto a um garoto!" Também fui aprendiz de torneiro mecânico. Queria ter dinheiro para o cinema e para queijo fresco.
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Tinha assim um cinema, ou ia a vários?
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Tinha o Salão Lisboa - que era o Piolho - na Mouraria. E o Royal, na Graça. O Liz, que passou a ser Roxy. E um que era o Rex. Isto tudo entre a Rua da Palma e a Almirante Reis. No Rex, diziam que havia lá um sítio em que apareciam fantasmas e eu queria era ir para esse sítio. Nunca apareceram, mas um dia apanhei um susto. Era um filme chamado "Camarada X", com a Lana Turner e o Clark Gable. Ele era um homem que vinha da guerra, e ela uma jornalista. O chefe de redacção dizia-lhe - é uma admirável lição de jornalismo -: "Vais entrevistar aquele que vires que está mais triste." Porque quando se regressa da guerra toda a gente vem feliz porque vai regressar a casa, então o que está mais triste tem uma história para contar. O filme era admirável por causa disso. Mas apanhei um susto porque o Clark Gable está no "deck" do navio e ela deixa cair a máquina, e eu julgava que era o fantasma do Rex. Havia ali uma academia de espiritismo no Largo do Intendente - que era um largo muito giro. Havia cavalos.
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Já era uma zona de prostituição?
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Não assim, mas havia casas de prostitutas. Tinha um fontanário com água salobra, e eu gostava à brava de beber aquela água, com os cavalos. Eles a beberem, e eu a beber ao lado dos gajos.
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E o queijo fresco?
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Comprava meio queijo daqueles grandes, e gostava muito de ler o Sandokan a comer queijo fresco. O Freud era capaz de explicar, mas o Freud serve para tudo. É o Freud e o Fernando Pessoa.
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Para usar uma palavra muito sua, esse seu remanejar da língua decide-se quando? A ligação com as palavras decide-se necessariamente na adolescência?
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Penso que sim. Fui adolescente até muito tarde. Não tive infância, comecei a trabalhar novo e a estudar muito novo, com uma curiosidade infinita. Mas tive uma sorte espantosa, porque [aos 19 anos] entrei n’"O Século" - o que não era brincadeira: de seis estagiários fui o único que ficou -, com um homem fora de série, o Acúrcio Pereira.
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Tem dito que ele foi o maior chefe de redacção do século XX.
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Nem há comparação. Ensinou-me a nunca mentir. Não se pode mentir nos jornais. Estava lá há dois anos e ele: "Vais ser extremamente invejado." Perguntei-lhe porquê. "Escreves palavras tão claras que nem tu por vezes as entendes." Porque comecei a fazer um jornalismo de autor sem dar por isso.
[Baptista Bastos conta a história de quando o "DP" o mandava regularmente à Alemanha. Ao voltar de uma dessas viagens comunicou ao seu chefe Brás Medeiros que fora à RDA. Medeiros disse-lhe para escrever a reportagem, que se mandava à censura e logo se via. Mas a censura reteve as provas muito tempo e Brás Medeiro telefonou ao coronel censor:]
Agarra no telefone: "Ó Coronel Galvão, mas que merda é esta?" O gajo falava assim. "O senhor está completamente enganado. Eu é que mandei o senhor Baptista Bastos à RDA. Quem manda na minha casa sou eu. Eu vi as provas e o senhor não é mais exigente que eu nesse sentido. São prosas à Baptista Bastos. Se daqui a meia hora não estiverem cá, eu digo ao director para escrever um artigo de fundo, agarro nas provas e mando-as para a Presidência do Conselho." E quem é que foi buscar as provas à censura? O Carlos Lopes. O campeão da maratona, que era contínuo do "DP". Um dos treinos que fazia era ir à censura buscar provas. Isto para dizer o quê? Que sempre estiveram ao meu lado. Nunca tive problemas no "DP". E houve coisas complicadíssimas. Não se esqueça que fui desmentido pelo Bella Gutman [o húngaro que treinou o Benfica nos tempos campeões da década de 60]. Eu não percebia nada de futebol, vou entrevistá-lo, e caio numa esparrela. Ele quer que lhe mostre o original. Mostro. Ele: "Está tudo bem." Aquilo sai, grandes manchetes, quem manda no Benfica é não sei quem. "A Bola" era paginada no "DP", e na "Bola" era tudo do Benfica. Um dos redactores vê aquilo, telefona ao Gutman. E ele diz: "Tudo mentira. Não conheço esse senhor de lado nenhum." Eu não lhe tinha pedido para rubricar as páginas. Ele estava em Nice, e vou imediatamente para Nice, com uma data de jornalistas desportivos atrás. Aquilo cheirava a grande escândalo. Eu, se o visse, dava-lhe uma tareia logo. E para não haver problemas o Brás Medeiros disse: "Você vai com o [chefe de redacção] Abel Pereira, para ele o controlar." E assim foi. O Gutman tinha ido para a Croisette, ponho-me à porta do hotel à espera, o tipo quando me vê começa a fugir e eu atrás dele para lhe bater. O Abel Pereira agarra-me, outros jornalistas agarram-me: "Não faças isso que arranjas um 31." O Gutman foge lá para dentro e o Abel Pereira decide ir falar com ele. Depois chama-me. "Não sei o que é que se passa", dizia o Gutman. "[O jornalista que telefonou] leu uma coisa que o senhor não escreveu, de facto. Tudo o que você escreveu é verdadeiro." "Escreva isso num papel." E ele escreve: "Baptista Bastos, jornalista honesto", e tal. De maneira que apanho o avião logo de manhã. O "DP" publica aquilo na primeira página e foi um êxito descomunal. Não há invenção nenhuma nas entrevistas. Só que as entrevistas de facto marcaram. Pronto, isto paga-se. As pessoas pagam caro fazerem as coisas de forma diferente.
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O 25 de Abril foi uma flor que nos aconteceu? Um momento de excepção que Portugal teve?
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Penso que sim. Não esperava um retrocesso tão rápido. Apesar de ter 40 anos, julgava que o socialismo estava ali. E depois desiludi-me rapidamente. Essa desilusão está muito marcada no livro "Elegia Para um Caixão Vazio", que me deu dissabores. Fui violentissimamente atacado no [jornal comunista] "O Diário".
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Já usou a palavra lúgubre para esta democracia. Continua a fazer sentido?
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Sim. Estou assustado com o caminho que este país toma. Uma situação em que o próprio Marques Mendes diz que o governo está à direita do PSD - isto diz tudo. Depois, penso que o partido comunista não tem resposta. Não tem força.
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Onde está a esquerda? Está no Bloco de Esquerda?
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Não está, não. Tenho muita dificuldade em saber onde está a esquerda. O que a esquerda me diz parece uma coisa de recessão mental, falta de estudo, falta de meditação sobre o que se passa no mundo e aqui.
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Explique melhor.
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As pessoas deixaram de ler. É preciso ler para saber o que se passa.
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É uma esquerda ignorante?
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É uma esquerda que não lê, pelo menos.
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O que é que a esquerda devia estar a ler?
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Se calhar voltar a ler o Walter Benjamin. O Marx, que toda a gente cita e pouca gente leu. Confrontar-se com as suas certezas, que não passam de incertezas. Não percebo o discurso desta gente. Por exemplo, penso que pela primeira vez não vou votar para a Câmara de Lisboa. Estava a escrever autógrafos na Feira do Livro, o António Costa passou e disse: "Sei que está muito zangado comigo." Eu disse: "Não estou nada zangado contigo. Não vou votar em ti porque és cúmplice deste governo." Um governo que está a dar cabo do Serviço Nacional de Saúde - por malevolência. Como o caso da Caixa de Previdência dos Jornalistas, que é um escândalo, porque eles não acabaram com os sub-sistemas de saúde dos polícias e do exército. Acabam com todos ou só com parte? Depois, esta pouca-vergonha de acabar com os centros de saúde espalhados pelo país. Só quem não conhece o país! Há aldeias que precisam daquilo como pão para a boca. É uma embrulhada tal que assume o aspecto de um desprezo total por todos nós.
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Lisboa é a sua cidade, temos estes candidatos todos e não há um que fale por uma Lisboa em que acredite?
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Não. Não acredito em nenhum. O discurso é todo igual, com ligeiras alterações. E este governo é contra nós. Não gosta da gente.
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Como olha para Sócrates?
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Muito mal. Um indivíduo de uma insegurança total que camufla a fragilidade com arrogância. Um governo é bom quando não se dá por ele. Isto é dos livros. A gente não tem governos à altura deste povo. Este povo é absolutamente espantoso.
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Porquê?
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Basta andar aí pelo país. O que as pessoas fazem, como tentam sobreviver, o gosto que têm em ser portuguesas. Não no sentido patrioteiro. No sentido de ligação à terra, de defender a língua. É espantoso o que há por aí de tertúlias de leituras. Há tempos estive numa escola em Viseu e disse: "Então estou no Cavaquistão..." Iam-me matando. "Não, desculpe, a gente tem outro pensamento." Até houve um que disse: "Nós lemos."
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Há a ideia de que o mundo se tornou pequeno, e o Baptista Bastos acha que a esquerda não tem alternativa à globalização. O que é que isto diz sobre a esquerda no mundo?
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A esquerda, tal como está a ser praticada, é inexistente.
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Mas acha que o mundo não se tornou pequeno?
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Não. O que se passa em Badajoz? Mesmo com as "internetes" não se sabe nada. É preciso ir lá. A gente não sabe o que se passa. É aquela velha tese: damos notícias, notícias, notícias, mas informação, pouca.
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Não me estava a referir às notícias, que se tornam numa parede através da qual não vemos. O mundo tornou-se mais pequeno porque é muito mais fácil circular.
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As pessoas viajam para tirar fotografias. A esmagadora maioria não viaja para ver como são as outras.
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Acha que não sabemos mais uns dos outros?
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Não sabemos, não. E cada vez somos mais cercados por uma massificação cultural que determina isto, por exemplo: Paul Auster considerado um grande escritor, quando é de quinta ordem. E ponha lá também o Philip Roth.
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Também acha que não vale a pena?
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O [Roger] Vailland fez aquilo em grande estilo. Há tempos estive em França e perguntei: "Como vamos de Vailland?" E ninguém sabia quem era. Vai fazer agora 100 anos. Aqui há tempos, um amigo disse-me: "Mas tens que ler "O Animal Moribundo" [de Roth]." Bom, foi penoso. Até o Milan Kundera fez aquilo melhor.
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Boas descobertas que tenha feito?
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Um de quem vou ler tudo, o Cormac McCarthy. Este livro, "A Estrada", é absolutamente espantoso. A tragédia grega ensina que só há sete temas na condição humana, não é? Em "A Estrada" está tudo. Aquela viagem com o filho é espantosa. E com uma grandeza estilística que só encontro no Hemingway. O Hemingway não é um grande romancista, mas é um jornalista genial.
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Vamos actualizar a sua família em língua portuguesa: Camilo, Pascoaes, Aquilino, Brandão, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Ruben Braga. Quem mais?
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Ponha-me também o Ruben A. Os poetas são todos, sou um fanático leitor de poesia. Por exemplo, gosto muito do Joaquim Manuel Magalhães.
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Poetas a que volta frequentemente?
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Ruy Belo, Jorge de Sena, Herberto Helder, Cesariny, Paulo Teixeira, que é admirável.
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Aparecidos nos últimos dez anos?
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Aquele que morreu muito novo, o Daniel Faria. E ponha-me lá o Eugénio de Andrade, poeta do meu alumbramento.
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E sem ser poetas?
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O Possidónio Cachapa, da "Materna Doçura". E estou-me a reconciliar com o José Luís Peixoto. Dos vivos, o Mário Cláudio é um dos três grandes que admiro.
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E os outros são?
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O Saramago e a Agustina Bessa-Luís.
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Numa crónica admirável que escreveu sobre Amália para o PÚBLICO, diz: "Nela, nós." De António Lobo Antunes pode-se dizer isso.
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Não gosto dele como romancista. É um armário de adjectivos. Mas acho que é um grandessíssimo cronista. Além disso, um dia meteu-se comigo. Ninguém se mete comigo. Disse uma coisa numa entrevista, e ninguém me diz certas coisas. Fiquei de olho nele. Às vezes é muito leviano.
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Vê o jornalismo como "uma disciplina superior da literatura". A liberdade de um criador, que pode escrever para ninguém o ler, ou seja, não se preocupar com a recepção, é a mesma do jornalista?
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Penso que continua a ser a mesma. Sempre escrevi em relação à minha própria consciência. Dizer aquilo que pensava que era a minha verdade. Fartei-me de fazer reportagem com outros jornalistas ao lado, naufrágios, guerras, assassínios, e a minha visão era sempre diferente.
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Não há duas formas iguais de contar a mesma história. Mas isso é outra coisa.
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Não, é a mesma coisa,. Há sempre um lado que tem a ver com idiossincrasia, ideologia, as singularidades da cultura de cada um, que permite ter uma visão que é considerada - sei lá! - inventada.
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Toda a boa reportagem é uma narrativa, tem um olhar, parte de um eu, que incorpora aquilo, e é por isso que não há duas iguais. Mas não é disso que estou a falar. A questão é: um criador idealmente não responde perante ninguém.
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Mas um jornalista idealmente também não responde perante ninguém.
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Não é verdade. Um jornalista tem obrigação de responder. Tem limitações de espaço, de tempo, tem um chefe, tem leitores, trabalha para um jornal que tem de vender.
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Tem que se bater contra isso tudo. Para obter a liberdade que o outro tem. Tem outros constrangimentos.
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Mas não são só constrangimentos. Faz parte da ética da profissão. O jornalista obedece a regras, um criador inventa as suas próprias regras.
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Mas há um mínimo de regras comuns a todos os criadores.
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Portanto, as regras de um jornalista e de um escritor são as mesmas?
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Quase iguais. São semelhantes. O escritor também responde perante o outro, perante o editor - e agora também perante o "re-writer", o que re-emenda aquilo. Já está a aparecer em Portugal.
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Os jornais em papel morreram ou estão moribundos?
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Não. O jornalismo está a atravessar uma fase complicada.
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Uma vez escreveu uma coisa que aprendeu no Brasil: não se pode fazer com que o povo queira aquilo que não quer. E o que os dados nos dizem é que as pessoas compram cada vez menos jornais. Continua a acreditar que as pessoas querem jornais em papel?
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Temos vários exemplos na Europa. O "La Stampa", o "Repubblica", o "Corriere de la Sera", o "El Pais". A gente fala muito no "Monde", e no interior de França há jornais espantosos.
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Lê jornais na Internet?
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Do Brasil, às vezes. Mas compro muitos jornais, tenho ali um molho para ler. Gosto do cheiro do papel. O meu pai trabalhava de noite nos jornais e eu gostava do cheiro que ele tinha.
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O que é que o jornalismo dá à escrita? O sangue dos outros? Ensina a escrever?
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A sopesar as palavras. A partir de certa altura percebemos que o texto está mal escrito. É um sininho que toca. E esse sininho só raros o têm. O jornalismo ensina a procura do sininho. E olhar para os outros é fundamental.
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De vez em quando diz em relação a escritores: escrevem mal, deviam ir aprender para o jornalismo. O que é escrever mal?
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É escrever sem música, sem ritmo, sem cor. É escrever sem tomar partido, inapropriadamente de forma neutra. As pessoas costumam apresentar o exemplo do Stendhal que é também um escritor da minha devoção. Ele toma partido. Toda a grande prosa portuguesa tomou partido.

25.6.07

Eduardo Prado Coelho: os livros de bolso

..
Livros de Bolso

Apesar de algumas tentativas mais ou menos goradas, a verdade é que existe uma tradição em Portugal que diz que os livros de bolso não são viáveis. Não sei se isto se explica por qualquer traço específico do que alguns pensam ser a “identidade nacional”, se existem condições económicas e culturais que justificam esta lamentável situação. Com uma notável excepção: os livros policiais, em particular as famosas colecções Vampiro e Xis. Da Vampiro lembro-me bem como preencheu horas a fio da minha adolescência – li os seus cem primeiros títulos que culminavam nesse clássico absoluto que era O Imenso Adeus, de Raymond Chandler. E recordo-me ainda dos livros da RTP, que continuam a aparecer à venda nas ruas.
Mas estas colecções surgiram no meio de outras tentativas mais ou menos fracassadas. E a sensação de que não havia condições na indústria do livro português para colecções de bolso acabou por dominar. Um livro de bolso justifica-se através de uma tiragem significativa que implica hábitos de leitura que até há pouco não existiam em Portugal. Será que hoje existem? Não estou certo, mas a verdade é que os índices são animadores, e o que foi um aumento de vendas nas feiras do livro de Lisboa e Porto parece autorizar algum optimismo. Será talvez por isso que as Publicações Dom Quixote enveredaram por esse caminho e estão a transportar algum do seu amplo e excelente fundo editorial para o formato de bolso. Ainda só os vi de relance numa livraria, mas é óbvio que se trata de uma iniciativa importante.
Ao mesmo tempo, três das nossas melhores editoras resolveram associar-se para criar outra colecção de bolso. Trata-se da Assírio & Alvim, que é sobretudo a grande editora de livros de poesia, com Herberto Helder e Ruy Belo à cabeça, da Relógio d’Água, com uma magnífica edição de poesia portuguesa ou traduzida e notáveis livros do pensamento contemporâneo, e da Cotovia, onde se destaca a tradução de clássicos, o teatro, ou a literatura brasileira.
Estes editores (Manuel Rosa, Francisco Vale e André Jorge) são por si sós uma garantia da qualidade deste projecto. Que saiu para já? Com o intuito de produzir “acontecimento”, os três editores abalançaram-se a lançar de uma só vez nove livros. Houve uma escolha criteriosa e um enorme cuidado na execução do projecto. Temos assim: a Ilíada, de Homero, na excelente e celebrada tradução de Frederico Lourenço; logo a seguir o Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, agora traduzido com um saber impecável por José Bento; e depois um livrinho curto, mas central na nossa literatura: a Mensagem, de Pessoa, em edição exemplar de Fernando Cabral Martins; depois um livro que nunca li, mas de que toda a gente tem uma recordação encantada, Três Homens num Barco, de Jerome K. Jerome; passamos para os poemas de Sá Carneiro, também sob a responsabilidade de Cabral Martins; entramos na literatura russa, pelas mãos competentes de Nina Guerra e Filipe Guerra, com Contos de São Petersburgo, de Gogol; passa-se para um nome famoso, Virginia Woolf, com Orlando; e terminamos com O que é a Filosofia?, de Ortega y Gasset. Um programa magnífico. Desejo que tenha os apoios e o êxito que merece. Não se trata do melhor dos contributos para o Plano Nacional de Leitura?
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[Eduardo Prado Coelho, Público, 22-06-2007]

22.6.07

Preços

Eduardo Pitta queixa-se dos preços dos livros de bolso desta nova colecção (Biblioteca de Editores Independentes): "O preço é que desafina. Alguém acredita que haja gente em quantidade suficiente para garantir a edição de livros de bolso a 15 euros? Quinze euros já é um preço caro para um livro standard." É verdade que sim, basta pensar nos Penguin. Mas vejamos logo o primeiro livro da colecção, a Ilíada: estará à venda por 14 euros, mas a edição não-bolso está a 35 euros (no site da Cotovia). É uma diferença enorme, a verdade é que os livros em Portugal são todos muito caros e portanto um livro de bolso a 14 euros até consegue passar por barato.

21.6.07


Primeiros títulos da colecção:
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Ilíada, de Homero, 508 pp., 14 euros
D. Quixote I, de Cervantes, 552 pp., 13 Euros
D. Quixote II, de Cervantes, 576 pp., 13 Euros
Mensagem, de Fernando Pessoa, 96 pp., 4 Euros
Três Homens num barco, de Jerome K. Jerome, 252 pp., 7 Euros
Poemas, de Mário de Sá-Carneiro, 144 pp, 4 Euros
Contos de S. Petersburgo, de Gogol, 288 pp., 7 Euros
Orlando, de Virginia Woolf, 240 pp., 7 Euros
O que é a filosofia?, de Ortega y Gasset, 208 pp. 6 Euros

Livros de Bolso

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Vai ser lançada na próxima segunda-feira a Biblioteca de Editores Independentes, uma nova colecção de livros de bolso, que junta três editoras: Assírio & Alvim, Cotovia e Relógio D’Água. Sendo estas provavelmente as três melhores editoras portuguesas, mas cujos livros nem sempre são propriamente baratos, a notícia é muito boa.
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O livro de bolso nunca pegou muito em Portugal, havendo alguns motivos que podem explicar esta situação. Além de diversas colecções de policial e ficção científica, sendo as mais famosas a Vampiro e a Argonauta da Livros do Brasil, penso que a primeira colecção genérica de livros de bolso em Portugal com algum impacto foi a da Europa-América.
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É uma colecção com mais de 500 livros que ainda hoje continua a crescer e que podemos encontrar com facilidade nalgumas livrarias. A partir de certa altura a qualidade decresceu imenso, mas nos primeiros anos os livros lançados eram em regra grandes clássicos da literatura nacional e estrangeira (Eça, Camilo, Zola, Dostoievski, Shakespeare, Nietzche, Kafka e muitos, muitos outros). Apesar do papel de fraca qualidade, a letra minúscula e, o mais grave, traduções geralmente muito más, tiveram bastante sucesso.
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No entanto penso que ajudaram a criar por cá o estigma do livro de bolso como algo com pouca qualidade.
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Mais recentemente editoras como a Asa ou Dom Quixote tiveram as suas colecções mas abandonaram estes projectos rapidamente, dado os fracos resultados.
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Também a cadeia FNAC, à semelhança do que faz noutros países, teve a sua colecção de bolso (em parceria precisamente com a Dom Quixote e a Asa). Também foi sol de pouca dura, os resultados não foram satisfatórios.
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No entanto é uma situação estranha. Por essa Europa fora (e não só) passado pouco tempo do lançamento de um livro, este surge numa edição mais económica, tendo esta última em muitos países a preferência da maioria dos leitores. Note-se por exemplo o sucesso que têm as baratíssimas edições da Penguin. Pelo contrário em Portugal, país mais pobre, os livros são vendidos apenas em edições luxuosas e consequentemente caríssimas.
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Mas quando os jornais, nomeadamente o Público e o DN, tiveram as suas colecções de livros, há poucos anos, o sucesso foi imenso. Isso deve querer dizer alguma coisa.
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Deposito pois muita esperança nesta colecção da Assírio & Alvim, Cotovia e Relógio D´Agua, editoras que nos têm habituado a elevados padrões de qualidade. Até ao final deste ano prometem lançar 21 títulos, com preços a partir dos 4 euros.
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Entretanto também a Dom Quixote lançou uma nova colecção, a Booket, com boa qualidade gráfica e de papel, mas muito irregular na qualidade dos títulos propostos. A Dom Quixote tem um óptimo catálogo de ficção e era bom que parte dele fosse reeditado em versão bolso. .
Esperemos que seja desta.
Houve um momento
em que deixei de gostar
da minha mãe
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Houve um momento
em que deixei de gostar
do meu pai
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Houve um momento
em que deixei de gostar
de mim
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Houve um momento
em que deixei de gostar
de ti
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Houve um momento
em que parti
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Houve um momento
em que voltei
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Houve um momento
em que voltei a gostar
de todos
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E todos estão
aqui
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Mortos
e ausentes
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[Adília Lopes, de Le Vitrail La Nuit / A Árvore Cortada, &etc, 2006]

20.6.07

Jorge Silva Melo: os alfarrabistas

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Adolescência de que não nos libertamos
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Sempre, sempre andei com prazer - e moedas que logo se sumiam - por alfarrabistas. Nada de edições de luxo, encadernações, primeiras edições, embirro. Era para encontrar livros editados antes de mim, coisas que não encontrava, letras de gente da República, filhos do anarquismo ou do fim da monarquia, Camilos encarnados, Maupassants de antes da Estúdios Cor, Ibsen da Guimarães, Júlios Vernes. Um dos prazeres que tenho em Milão (cidade de que ninguém gosta e onde, será por isso?, me sinto tão bem) é ir ao Libraccio da Via Solferino, enorme dispensário de edições italianas e onde, ano após ano, desde 1978, encontro, na mesma estante, a mesma manuseada edição do Vittorini e acabo sempre por deixar no lugar os belos Mondadori, essa admirável Pléiade italiana. Agora, os alfarrabistas são net-encontráveis, sou cliente, mando vir, há-os excelentes, baratos, eficazes, rápidos. Mas falta-lhes o cheiro atrofiado dos livros velhos, a poeira, o mofo, aquela insalubridade que fazia com que a minha mãe aqui em casa proibisse livros em segunda mão ("sabe-se lá por que mãos isso andou... a tuberculose...", etc.), cheiro a morte sem crisântemos.
No outro dia, dia de assim chamadas férias, lá fui à Baixa (descer no Largo da Misericórdia, passear até ao Rossio) a pretexto de procurar um Fialho (Actores e Autores) para não oferecer o que tenho e às vezes me faz rir. Mas, nos alfarrabistas abertos em esplendoroso Agosto-de-ninguém-em-Lisboa, já não havia Fialho. Sei que o há na Rua Anchieta, lá irei sábado, é bom falar com os vendedores, gente finalmente culta e amante da letra impressa, descobrir coisas novas (isto é, velhas).
Vão-se esgotando os espólios, são já raros os livros de 1800 e tal, escasseiam os de 1910. E dou por mim, fascinado, a encontrar todos os livros que comprei era eu adolescente, entre Delgado e a Greve Universitária de Sampaio (esses anos seminais que vão de 1958 a 1962) - e os que não comprei, caros ou fora dos então meus limitados interesses. É que quem agora morre, está na idade, são os meus exactos contemporâneos, ligeiramente mais velhos, talvez, gente que, nesses anos, comprava as edições da Ulisseia, da Arcádia, Portugália, Europa-América, Cor, Livros do Brasil, o melhor de então.
Passei o Verão a recuperar livros que não li na sua altura, e que prazer foi Max Frisch, "Chamem-me Gantenbein", ou o maravilhoso "Não Sou Stiller" admiravelmente traduzido (do francês?) por Fernanda Botelho, edição de 1958, tinha eu dez anos, lembro-me de o ver nas livrarias que já não há, não "é para ti", diziam-me.
Encontrei-os agora, cada qual três euros, cada um deles três noites de adormecer ofegante, recuperados do espólio de alguém que até talvez eu tenha conhecido, somos tão poucos nestas letras. Pois não encontrei um "Avant-Scène" com "La Petite Datcha", comédia ligeira de Chkvarkine, assinado, com cuidada caligrafia, pela actriz (maravilhosa lembrança) Constança Navarro, que vivia aqui ao pé de mim, à direita de quem vai para o Jardim das Amoreiras, quase ao lado do prof. Delfim Santos?
Já estão nos alfarrabistas os Marx, os Gramsci, os Martha Hornecker, até o João Martins Pereira, o Arnold Hauser, os Goldmann das minhas educações políticas, o "Círculo do Humanismo Cristão" da Maria Isabel Tamen (belas edições), a literatura que me fez e a que invejei mas não cheguei a ler depois do buço (Moravia, cujo "Agostinho" leio agora com voracidade, belíssima capa de Sebastião Rodrigues e Sena da Silva), Butor (encontrei os "Graus", nem me lembrava), Caldwell (bem mais divertido do que se dizia).
É nestes livros de mortos que me encontro, a sós comigo neste Agosto. Pois nunca nos libertamos da adolescência, não é? Nem eu destas capas de artistas que ganhavam tostões antes de o Jorge de Brito - recém-falecido na superior qualidade de benfiquista, esquecidos que andam os jornalistas - lhes ter aberto o "mercado" (Charrua para a Portugália - belas, as capas de "Erica e os Irmãos" de Vittorini e, sobretudo, a do "Vento" de Claude Simon, Vespeira para a Ulisseia, "Flagelados do Vento Leste" de Manuel Lopes que agora comprei, formas informais ardendo, como na capa do Castro Soromenho que também trouxe, Espiga Pinto para os livrinhos de poesia, pois não é que encontrei a Fiama, "Barcas Novas", dois euros?).
Não, não nos libertamos da adolescência. Só que eu não esperava que ela assim me voltasse, em Verão abrasador, no papel amarelecido dos alfarrabistas.
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[Jorge Silva Melo, Mil Folhas (suplemento do Público), 22-09-2006]

19.6.07

Al Berto


O blog da Frenesi disponibiliza uma curiosa gravação audio de um excerto (cerca de 16 minutos) de uma noite de poesia no bar da Associação de Estudantes de Coimbra em 1992 com Al Berto. Segundo o blog "Estava-se mesmo a ver que, ingenuidade nossa, os estudantes já então preferiam música pimba, anedotas porcas, cerveja a rodos e praxar as colegas... A poesia saiu vaiada." Al Berto, compreensivelmente, não gostou e deu uma resposta adequada.

18.6.07

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“Acho que já confessei a história do bocado de fígado que comprei num talho e fodi atrás de um tapume a caminho da lição de bar mitzvah. Ora bem, agora quero deixar tudo em pratos limpos, Vossa Santidade. Aquele – ela – isso – não foi o meu primeiro pedaço. O primeiro, comi-o na privacidade da minha própria casa, enrolado à volta da piça, na casa de banho, às três e meia da tarde – e depois comi-o outra vez na ponta do garfo, às cinco e meia, na companhia dos outros membros da minha pobre família inocente.
Ora aí tem. Agora já sabe a pior coisa que eu fiz na vida. Fodi o jantar da minha própria família.”
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[Philip Roth, in O Complexo de Portnoy, Bertrand, 1994]

15.6.07

BB


Foi hoje publicada no DN uma entrevista com Baptista-Bastos, a propósito do seu novo livro, As Bicicletas em Setembro.

Jorge Silva Melo: O Nariz

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Isso é um livro?
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"O Nariz" de Gogol, solicitei. A rapariga era uma virago: "Isso é um livro?" O extravagante diálogo decorreu numa tarde de Abril numa livraria que já teve as suas horas, nesta cidade mesmo de Lisboa. "Não vinha aqui procurar sapatos..." A empregada, furibunda, avançou para o computador, gritando para uma colega: "Já ouviste falar de um livro chamado 'O Nariz'?" A outra aconselhou a busca no computador. Lá fomos e ainda ouvimos a voz desta segunda, perguntando: "Isso é recente?" "Sim, saiu uma edição há uns dois anos..."Velho "livrariófilo" (não é bibliófilo, é "viciado em livrarias e estantes"), desconfio destas livrarias onde os vendedores se precipitam para as máquinas à procura de "stocks", não sabem o que está nas estantes, nem a cor do livro, nem me aconselham outra edição, ou mesmo outra obra ou outra ainda... Embora já o tenha, teria comprado as "Almas Mortas", tivesse a rapariga dito um "este saiu há menos tempo e é uma tradução do russo...". E teria comprado Kafka, se me tivesse dito "são parecidos"; e então se tivesse apontado o que de Gogol há em Rodrigues Miguéis, cá trazia eu para casa mais uma "Gente da Terceira Classe". Depois da lenta consulta - e eu a querer fumar... -, lá disse a assertiva jovem (também há jovens imbecis...): "Isso não existe." A outra, mais simpática, trouxe-me até à porta e sussurrou: "Vá àquela ali, é melhor... nós não percebemos nada disto." Lamentei, cá para mim, as misérias da vida que obrigam uma moça alegremente ignorante a trabalhar numa livraria e não numa lojinha de bugigangas, e segui o conselho. Pois não é que a empregada desta outra livraria, a "melhor", empregada mais antiga que fazia "crochet", interrompe o passatempo e me olha, aterradora: "Isso é um livro?", pergunta-me. "É... e saiu há uns dois anos..." "... Ó Não-Sei-Quantas chega aqui, conheces uma editora que se chama 'O Nariz'?", grita para o fundo. "Não é uma editora, é uma novela, a edição é da Assírio e Alvim." "Dessa, temos umas coisas", disse, pousando o "crochet" e deixando-me com ténue esperança. "Não sei bem o quê, mas temos..." e lá atacou o amaldiçoado computador. "Olhe... temos o Fernando Pessoa... esse temos, não quer?" "Não, queria o Gogol", repeti e já passara meia hora desde que me dera aquele desejo maldito de comprar uma das mais belas novelas de sempre e jamais. "Isso é um livro?", repetiu a livreira, e foi a terceira vez que, numa livraria, me fizeram esta pergunta. Lá disse que supunha que nas livrarias se vendem livros (embora, para dizer a verdade, durante esta já quase hora, não tenha eu visto nem um cliente nem uma venda...).Talvez pudesse ter ido a uma "grande superfície", aí não me perguntam "Isso é um livro?", vêm o código de barras e fazem plim, mas não fui, meti-me num supermercado a comprar iogurtes, voltei para casa, tristonho, sem o meu cobiçado "Nariz" (salvo seja).E ao subir a rua, fim da tarde desta terça-feira, lembrei-me de Londres, de uma daquelas livrarias Stockwell cheia de turistas e "best-sellers", bem no centro de Charing Cross. Vi um livro semiautobiográfico acabadinho de sair da Paula Fox, ignota autora de quem gosto muito (adaptei o seu "Coitado do Jorge"), e, embora ainda "hard-cover", decidi comprar. E a rapariga da caixa, no meio dos clientes que lhe compravam a "Queda de Berlim" e até a Bridget Jones, olhou e disse: "Esse livro é fantástico, saiu há uma semana, li-o ontem e sabe uma coisa?, eu sou dos States (notava-se...) e fui vizinha da autora, vivíamos no mesmo quarteirão, é o melhor livro dela, tão comovente." É verdade: chama-se "Borrowed Finery - a memoir" e, se me viessem agora com aquela "que livro gostaria de ver traduzido...?", desta vez não fazia a lista que começa na "Ilíada".Bem sei, Londres é Londres e foi um acaso encontrar numa livraria uma rapariga que durante meia hora me falou (e bem) de Paula Fox. E Lisboa é Lisboa, que pena! E em duas livrarias da parte mais nobre da capital, ninguém me soube vender "O Nariz" de Gogol (que até é um livro, até existe, até está editado...).
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[Jorge Silva Melo, Mil Folhas (suplemento do Público), 26-04-2003]

14.6.07

Ler Devagar e Eterno Retorno - Inauguração

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Muito a propósito da crónica que deixei aqui em baixo, de Jorge Silva Melo, uma excelente notícia: é hoje inaugurado, às 22 horas o novo espaço das livrarias Ler Devagar e Eterno Retorno. Fica na antiga fábrica do Braço de Prata e terá, além de três salas para livros, mais duas para exposições, uma para teatro e uma para cinema. Será portanto muito mais do que uma simples livraria, assumindo uma vocação de centro cultural.



A Livraria Ler Devagar, que estava situada no Bairro Alto e teve de sair do seu espaço há já algum tempo, era uma livraria muito importante no fraco mercado livreiro lisboeta. Uma livraria claramente alternativa, que apostava em fundos de catálogo e pequenas editoras, nada dos best-sellers, livros com capas coloridas e siglas iniciáticas de que fala Jorge Silva Melo. Ainda por cima o espaço era agradabilíssimo, com uns corfortáveis sofás, não tinha a habitual músicata horrível aos berros e os funcionários eram muito interessados e competentes. Promovia também com regularidade debates e exposições.


A Eterno Retorno era uma pequena livraria-bar especializada em livros de filosofia que ficava mesmo ao lado da Ler Devagar.

Agora as duas juntaram-se e têm um novo espaço no Braço de Prata. Esperemos que o facto de estar muito afastada dos circuitos habituais dos seus potenciais clientes, ao invés de os assustar, sirva isso sim para criar um pólo de revitalização de uma zona da cidade profundamente degradada e abandonada.

Jorge Silva Melo: "foi um erro entrar naquela livraria"

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Talvez seja verdade

O erro foi meu, entrei numa livraria. Parecia-me ter entrevisto na montra o novo livro de Antonio Tabucchi, entrei. Para chegar ao fundo, ao lugar onde há livros (numa livraria, não devia ser o lugar principal?), atravessei várias bancas de bugigangas, revistas que oferecem chinelos e cafeteiras Bodum, agendas, os omnipresentes Moleskine. E as primeiras bancas eram de "best-sellers" e "novidades" com capas picantes, pernas de mulher por todo o lado, um rabo ou outro, siglas iniciáticas.
Fiquei, parvo, a olhar para aqueles livros todos, quilos de papel. Aquilo não era para mim, fora um erro entrar ali, aquele negócio é para outras pessoas (sexodependentes? e compram livros?), as editoras e os livreiros tentam desviar para dentro daquelas casas sombrias a senhora talvez licenciada que a essas mesmas horas há-de mas é estar no cabeleireiro, talvez mesmo no café ao lado a comer uma sande de queijo fresco sem manteiga. Foi a primeira vez que me senti a mais numa livraria, tantas foram as que me foram familiares desde a adolescência.
Definitivamente: não sou "público-alvo". Com quase 60 anos, boas notas na universidade, conhecimento de algumas línguas estrangeiras, não é para mim que agora se produzem livros, passei ao "quadro dos excedentes" da clientela. Aliás, não encontrei o Tabucchi que, sereia falaciosa, me atraíra lá para dentro, para onde só vi um mundo de conselhos práticos ou fantasias erótico-medievais-político-iniciáticas que, de todo, não é para a minha idade e condição cardíaca.
Já na rua, horrorizado, "snob", e com a Primavera a trazer-me saudades de Saint-Germain des-Prés (tantos livros a descobrir confiando na tenacidade dos editores a defender o seu bom nome), pus-me a fazer contas. E posso apostar em que não haveria, naquela loja moderna e central, mais de 8 por cento "de literatura". Estranho que a literatura seja agora minoritária precisamente no negócio dos livros, ou não será? Aqueles "produtos" eram o que se chama "entretenimento" (mas quem se entretem com aquilo tudo?), ou livros de conselhos (mas as pessoas lerão estes milhares de conselhos para emagrecer, fazer saladas, engordar, amar, falar com o chefe, arranjar emprego?), romances históricos (desde "O Monge de Cister" de Herculano que não os quero ver à frente), fábulas, livros de engate ou paródia.
Está bem, nem há literatura nas livrarias nem eu sou o cliente pretendido, eis-me reformado. E lá fui à tabacaria em frente onde aí sim, se encontram agora Bulgakov, Calvino, Pavese, Hamsun, Andric, Tolstoi, Miguéis, Cervantes, e até Teixeira-Gomes, literatura, coisa para velhotes, imagino, entre dois registos para a Santa Casa.
E eu que queria tanto ser "público-alvo", que se me dedicassem edições, programações, que ainda se dirigissem a mim. É que ainda gastava algum dinheiro, juro... Quando leio por todo o lado que o desígnio das políticas é a "formação dos públicos" (para comprarem livros com pernas abertas de rapariga elegante?), entro na melancolia, sinto-me folha morta. O que farão comigo, público já formado? Lixo comigo? Ou terei de passar por educando, iletrado, ignorante para poder entrar num teatro?
A pouco e pouco, o "meio" (político, cultural, editorial, curatorial, programatorial...) descobriu outro destinatário, senhoras ginasticadas, moçoilas aprendizas do amor e os jovens, esses jovens que lhes enxameiam os discursos. E que é deles, que não os vejo nas livrarias, a nenhum desses "alvos"? E não é só com livros, não, é filmes, é teatros, nada disso será doravante para mim. Lembrem-se das recentes declarações da ministra segundo a qual o Teatro Nacional terá como público-alvo os jovens ( e eu, que nunca o quis ser?, não tenho direito a ir ver um teatrinho normalmente para adultos ou mesmo velhos?), a ver ( mais ou menos sic) se eles ficam "mais tolerantes". E percebo que, para existirem, as artes (???) terão de se portar muito bem à mesa, não citar os intolerantes, serão bem comportadas, iogurtes de frutos vermelhos com bifidus, artes limpinhas, para poderem ser propagandeadas como calmantes sociais, gerando boas maneiras políticas.
(Saudades ao Vítor Silva Tavares, casquinemos!)
Ou também a mim me reciclam, "laranja mecânica", a ver se fico "tolerante"?
Foi um erro entrar naquela livraria, vi-me dispensado da vida. Mas talvez seja essa a verdade.
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[Jorge Silva Melo, Mil Folhas (suplemento do Público), 08-04-2006]

11.6.07

PASSAGEM DAS HORAS
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Nada me prende, a nada me ligo, a nada pertenço.
Todas as sensações me tomam e nenhuma fica.
Sou mais variado que uma multidão de acaso,
Sou mais diverso que o universo espontâneo,
Todas as épocas me pertencem um momento,
Todas as almas um momento tiveram seu lugar em mim.
Fluido de intuições, rio de supor – mas,
Sempre ondas sucessivas,
Sempre o mar – agora desconhecendo-se
Sempre separando-se de mim, indefinidamente.
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Ó cais onde eu embarque definitivamente para a Verdade,
Ó barco, com capitão e marinheiros, visível no símbolo,
Ó águas plácidas, como as de um rio que há, no crepúsculo
Em que me sonho possível –
Onde estais que seja um lugar, quando sois que seja uma hora?
Quero partir e encontrar-me,
Quero voltar a saber de onde,
Como quem volta ao lar, como quem torna a ser social,
Como quem ainda é amado na aldeia antiga,
Como quem roça pela infância morta em cada pedra de muro,
E vê abertos em frente os eternos campos de outrora
E a saudade como uma canção de mãe a embalar flutua
Na tragedia de já ter passado,
Ó terras ao sul, conterrâneas, locais e vizinhas!
Ó linha dos horizontes, parada nos meus olhos,
Que tumulto de vento próximo me é ainda distante,
E como oscilas no que eu vejo, de aqui!
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Merda p'rá vida!
Ter profissão pesa aos ombros como um fardo pago,
Ter deveres estagna,
Ter moral apaga,
Ter a revolta contra deveres e a revolta contra a moral,
Vive na rua sem siso.
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14/4/1923
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[Álvaro de Campos, in Poesia, Assírio & Alvim, 2002]

A Feira do Livro por Daniel Melo

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"O domingo passado foi o último dia da 77.ª Feira do Livro de Lisboa. Ficam na retina os jacarandás no seu esplêndido espectáculo lilaz.
O bolso mais leve. Mais fólios em casa.
Agradáveis passeatas e encontros ao sol. E a vista do Tejo, claro.
Portanto, o local é excelente, não dá para 'inventar' outro.
Agora, dá para melhorar o que há, lá isso dá.
Aqui ficam umas dicas desgarradas. É de graça, e nunca se sabe. E se fizessem sentido, queres lá ver?
Primeiro que tudo, dar nexo àquilo, meu santo Olegário! Todos os anos muda a ordem. Porque não deixarmo-nos do preguiçoso sorteio e trabalharmos para os visitantes? O espaço dos alfarrabistas já existe, mas é modesto, não vem sinalizado no mapa e em lado nenhum, portanto, sinalizar os espaços sectoriais; haver um só espçao para editoras institucionais; outro só para o ensaio; outro só para a ficção (no caso de editoras híbridas, dividiam a produção); um para pequenas editoras (que deviam ter descontos), etc.. Faz sentido haver um grande espaço infanto-juvenil, sim, mas todo concentrado num dos lados.
Depois, espaços para descansar no meio dos estaminés, dos próprios organizadores, onde se pudessem folhear catálogos, jornais, etc..
Mais programação cultural avulsa. A CML devia concentrar aí o arsenal cultural neste período.
Em certos fins-de-semana valeria a pena abrir mais cedo do que as 15h costumeiras."
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[Daniel Melo, em post do Peão]

10.6.07

Feira Do Livro - Último Dia

Últimas sugestões a preços irresistíveis:


Os Vagabundos do Dharma e Big Sur, ambos de Jack Kerouac, estão a 5 euros cada na Relógio d'Água.



Também na Relógio d'Água, Canções Volume 1 (1962-1973), de Bob Dylan, está a 7,5 euros.



A Bertrand tem o Complexo de Portnoy, de Philip Roth, a 2,95 euros.

8.6.07

Os Livros no Parque: Hélia Correia

Temo às vezes que as árvores não pensem bem dos livros, que neles se vejam mortas. Depois lembro que os próprios seres humanos se consolam, prevendo as flores que hão-de nascer das suas cinzas. Posso então concluir tranquilamente que, quando as duas criações, plantas e escrita, ocupam um só espaço, isso se faz em pleno assentimento e harmonia.
Mesmo a palavra «feira» retoma o seu encanto de coisa medieval, desprotegida. Com mais um bocadinho de liberdade, existiriam cestos e pregões. As pessoas retomam os passeios do fim de tarde, como os há nos livros de Eça. E parece que saem desses livros. Se não ouvimos já o roçagar das vestes femininas pelo chão, podemos, no entanto, conhecer, por uma vez, esse rumor de gente, a exclamação de encontros inesperados. Será mesmo provável que as crianças se sujem ao rolarem sobre as ervas o que, para os lisboetas, começou a tornar-se difícil e precioso. O calor puxa os cheiros vegetais. E até a minha chuva, a mal amada, desce para criar simulacros de perigo, e as pessoas defendem as cabeças com os sacos das compras que fizeram. Deve-se isto à feliz inexistência de tectos e paredes. E não é uma dívida pequena.
A argumentação que mão me interessa, a da centralidade do lugar e do maior sucesso nos negócios, que a façam os peritos, os que vendem. Tendo eu, como a Lou Andreas-Salomé, dificuldade em distinguir livros de flores, sinto-me bem nesse lugar comum. O que vai ler caminha no jardim, o que vai caminhar passa entre livros.
Há uma ausência de especialização que vive aqui os últimos momentos e que queria durar um pouco mais.
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[in Os Livros no Parque, editoras Afrontamento, Antígona, Assírio & Alvim, Climepsi, Cotovia, Meribérica-Liber, Relógio D’Água e Teorema, 2004]

Os Livros no Parque: Jacinto Lucas Pires

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Não Tirem os Livros dos Dias de Sol do Parque Eduardo VII
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Nas folhas uma luz pequena misturada com um pequeno vento – anotarmos coisas pequenas nas margens, nas ruas caladas que ladeiam a avenida propriamente dita, antes de continuar. Desviarmo-nos também algumas vezes – dobrarmos aquela nossa esquina (como quem dobra uma página, só mesmo na ponta, um tudo-nada) para não nos esquecermos de amanhã retomar outro caminho. Nos espaços onde faltam prédios inteiros espreitarmos contracapas e badanas, por assim dizer. Escolhermos belas epígrafes para as ruelas, as travessas, escadinhas e becos sem saída. E, para a avenida (que nem precisa de nome, diz-se «a avenida» e toda a gente sabe que é esta), pensarmos no mínimo um prefácio – frases simples de assobiar, onde pousem vírgulas parecidas com melros e uma metáfora de céu azul. No fim, cá em cima, contornamos o marquês e entramos na feira, chegando ao ponto do assunto, três pontos de exclamação.
Aí, então, deixarmos apenas que o acaso funcione, de modo que um livro entre na nossa vida, e depois outro, e depois outro. Eles – que, na voz de Caetano, «são como a radiação de um corpo negro apontando para a expansão do universo» - hão-de mostrar-nos tudo o que sempre soubemos mas nunca tivemos assim, fora de nós, na nossas mãos, posto em palavras – e isso atirar-nos-á para o fundo e para a frente, para sempre, para o sol.
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[in Os Livros no Parque, editoras Afrontamento, Antígona, Assírio & Alvim, Climepsi, Cotovia, Meribérica-Liber, Relógio D’Água e Teorema, 2004]

Os Livros no Parque: José Ruy

Eu defendo a presença da Feira do Livro de Lisboa no Parque Eduardo VII, pelo facto de achar que um acontecimento cultural desse teor se enquadra na natureza e nos amplos espaços livres, muito da minha predilecção, como se vê na obra que realizo em banda desenhada.
Apanharmos um pouco de sol, alguns respingos de chuva ou mesmo uma temperatura mais baixa durante a feira, não justifica, para mim, enclausurarmo-nos num hangar, defendidos desses inconvenientes mas despidos do ambiente natural.
Naturalmente que há sempre uma evolução, mas nem tudo ao mudar é para melhor.
A Feira é o ponto de encontro cultural para quem ama o livro, e o cenário do Parque faz parte já de uma tradição que vem do tempo em que era instalada na Avenida da Libertade.
Não enlatem a nossa Feira do Livro.
Por favor!
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[in Os Livros no Parque, editoras Afrontamento, Antígona, Assírio & Alvim, Climepsi, Cotovia, Meribérica-Liber, Relógio D’Água e Teorema, 2004]

5.6.07

Os Livros no Parque: João Paulo Cotrim

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As Copas dos Livros
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O rio é o pano de fundo da cidade. Pinta-se plúmbeo na noite, reverberante com os raios da madrugada e azul, entre as esquinas, no fim das ruas pelo dia dentro. Por vezes é verde. Sobre o movimento das ondas, passam barcos e navios. Sobre o movimento das águas, passam livros. Subiram avenidas, experimentaram os ventos da praça, mas lançaram âncora no parque. É o lugar certo. Os livros são uma floresta de gente em gestos de vento, são montanhas movediças de palavras, paisagens mentais feitas de cheiros e memórias, são formas seguras e ideias soltas, são gritos e agressões, são incómodos, são matéria que as mãos levam aos olhos, carne que nos fazem mais corpo, mais transparente, mais voador. As árvores, como os prédios, dão-se bem com os livros. Contam cada tempo do tempo até chegar a altura em que essas aves de arribação regressam ao parque para nidificar por entre alamedas de copas exaltadas. É a única altura do ano em que brilha com as cores do rio a seiva de papel que lhe arde no tronco. Os livros acontecem inesperadamente como riscos de trânsito nocturno, portos de abrigo, sangue e oxigénio da cidade minha. Os livros são o pano de fundo verde da cidade.
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[in Os Livros no Parque, editoras Afrontamento, Antígona, Assírio & Alvim, Climepsi, Cotovia, Meribérica-Liber, Relógio D’Água e Teorema, 2004]

Pacheco Pereira e a Feira do Livro

"São os editores que publicando quilómetros de lixo, que enchem as livrarias e os balcões da Feira, tornam o livro que se vende novo completamente desinteressante. Há excepções, claro, excelentes editoras, mas a regra é o livrinho de capa frívola e texto imbecil de qualquer autor secundário na moda este ano, desaparecido do mapa no seguinte. Cada vez mais reforço a minha moratória de só ler livros (de ficção) que resistam dez anos em qualquer memória viva.
Assim, é natural que acabem por ser os balcões dos alfarrabistas aqueles que mais gente tem à volta, e foi isso o que observei na Feira. Nos alfarrabistas, infelizmente poucos, encontram-se as verdadeiras "novidades", os velhos livros que nunca conhecera, os livros que sempre quisera ter e não tivera dinheiro para comprar, os livros que antes nunca pensei comprar e agora compro com gosto. Os livros é assim, sempre surpresas, sempre infinitos, cabem sempre mais."

[José Pacheco Pereira, em post no Abrupto]

O Subversivo

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4.6.07

Os Livros no Parque: Mário de Carvalho

Gosto de melros, os espertotes, ladinos, com aquele jeito preto de recalcitrar de lado. Há poucos pelas relvas de Lisboa, não sei se da concorrência de paradais fura-vidas e pombalhões abafa-espaços, se duma vontadae de saltitar ao de leve por outras bandas.
Ainda assim, aparecem uns tantos na feira do livro, a lavrar no parque. Negrejam aos picos no verde, dão-se a uns desenfados de voejo breve, armados em superiores. Bonito bicho, de muita inspiração literária. Ele é o Jean-Baptiste Clément, ele é o Junqueiro…
Não há melros num espaço fechado, num armazém tristonho e esquadrinhado de encontrões sem sol. Todos os anos aquele para-baixo e para-cima, os encontros de fulano e cicrano, as capas que amadurecem de ano para ano, a luz explosiva de Lisboa, os revérberos, o Marquês que medita, as frondes da avenida, o Tejo glauco a fechar as vistas.
Tenho estado em salões, por essa Europa. Salões, salas grandes, com o seu quê de fábrica e hangar. Em parte nenhuma há esta cor, esta brisa, este céu, esta extensão clara, esta alegria. Mude-se o que houver a mudar. O espaço, deixar estar.
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[in Os Livros no Parque, editoras Afrontamento, Antígona, Assírio & Alvim, Climepsi, Cotovia, Meribérica-Liber, Relógio D’Água e Teorema, 2004]

1.6.07

Os Livros no Parque: António Barreto

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A Feira no Parque
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Fui à Feira do Livro de Lisboa, pela primeira vez, em 1974. acabado de chegar do exílio suíço, desloquei-me, numa noite quente de Primavera, à Avenida, onde então se realizava. O local era acolhedor, mas apertado, ruidoso, atravessado por carros, excessivamente «urbano» para quem quer deambular, parar, passear, ler e escolher. Depois disso, vi-a no Parque e no terreiro do Paço. Esta última solução foi desastrada: o calor, a falta de sombra e de conforto, o barulho, o trânsito, tudo desaconselhava aquele sítio. Por mais que pense, a solução do Parque Eduardo VII é de longe a melhor de todas. Espaço, sombra, localização central na cidade, sítios para ler, namorar e repousar, levar crianças ou idosos… Nem quero imaginar que a Feira seja deportada para longínquas periferias, muito menos para centros comerciais transpirados!
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[in Os Livros no Parque, editoras Afrontamento, Antígona, Assírio & Alvim, Climepsi, Cotovia, Meribérica-Liber, Relógio D’Água e Teorema, 2004]

Os Livros no Parque: José Salvador

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Os Livros em Liberdade
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Quem tem a paixão pelos livros nem sempre entende porque razão eles não fazem parte da vida de tantos portugueses. Pode aceitar-se que a casa é o rosto e a alma de uma pessoa. A minha está cheia de livros, diria mesmo atravancada. Às vezes dá-me vontade de libertá-los, mas receio perdê-los de vista, coisa que nenhuma paixão consente. O objecto de desejo tem de estar à vista e à mão.
Ora, a Feira do Livro n Parque Eduardo VII permite-me uma vez por ano concretizar esse desejo: olhar os livros em liberdade sem os perder de vista, tê-los ali à mão de semear, pelo que lá volto em peregrinação cada ano que passa. Mato dois coelhos de uma cajadada: vou ao parque, que nunca visito noutras ocasiões e que durante o dia me surge agradável; e descubro os livros em liberdade ao encontro de tanta gente que não entra em livrarias, não vai a bibliotecas e, quem sabe, nem sequer lê.
A feira no parque é uma festa, aberta, ao ar livre, que convida os passantes a espreitar esse objecto cada vez mais estranho em que se está a transformar o livro perante a concorrência de toda a oferta multimédia. Fechá-lo num grande armazém, mesmo que lhe chamem FIL, é aprisioná-lo de novo, é remetê-lo para um «ghetto», onde se vão movimentar quase exclusivamente os profissionais da indústria e comércio livreiros. Se este é o destino que lhe querem impor é mais um golpe no futuro do livro e menos razões para voltar ao Parque Eduardo VII. Um país sem livros é um país sem futuro.
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[in Os Livros no Parque, editoras Afrontamento, Antígona, Assírio & Alvim, Climepsi, Cotovia, Meribérica-Liber, Relógio D’Água e Teorema, 2004]

Pechinchas na feira



Retratos e Auto-Retratos e Às Avessas, ambos de Vasco Pulido Valente, a 5 euros cada na Assírio & Alvim.