23.2.10

“Mas será que Lisboa ainda tem centro? Ainda é uma cidade? Pois o que é o centro de uma cidade à noite se não forem os teatros – e os sons das palmas? E com teatros, os cafés, as cervejarias, os cinemas, as paragens de táxi, os passeios, os quiosques? Eu não conheço cidade onde a noite seja menos pública do que em Lisboa. Ir ao cinema é meter-se num buraco dentro de um centro comercial; ir ao teatro é quase sempre procurar uma sala nas margens da cidade, lá nos confins, onde ninguém mais passa. Ir à ópera já se sabe, é quando o rei faz anos e já não há reis. Quem chegue pela primeira vez a Santa Apolónia e suba a Baixa ficará com a impressão de que não há um único cinema em Lisboa (nem um cartaz, nem um néon, nem uma sala até ao São Jorge) e que teatro, há o D. Maria e acabou-se. Não conheço cidade mais deserta.”
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[Jorge Silva Melo, in Deixar a Vida, Cotovia, 2002]

19.2.10

Luiz Pacheco: a crítica de Osvaldo Manuel Silvestre

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Deixo aqui a crítica de Osvaldo Manuel Silvestre a 1 Homem Dividido Vale por 2 / Contraponto - Bibliografia, de Luiz Pacheco, que saiu no Ípsilon da semana passada:
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Mitologias maiores e menores
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Um imprescindível instrumento de trabalho para quem desejar aproximar-se do "Universo Pachequiano"
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De Luiz Pacheco (LP) dizia Ernesto Sampaio que era o exemplo acabado do literato: aquele que fala obsessivamente de um único tema, a literatura. Parece pois justo que a Literatura, enquanto dispositivo mitológico, se tenha apoderado de LP, fazendo dele um dos últimos mitos postos em circulação por uma máquina que hoje parece ter emperrado, num tempo em que o "marketing" editorial produz mais facilmente "stars" do que mitos. Porque há um "caso" Pacheco, desde logo patente no desequilíbrio flagrante entre a literatura comestível do autor - um punhado de textos curtos versando ocorrências pessoais, e mesmo íntimas, entre o doméstico e o sexualmente transgressivo, tendo este por vezes lugar no mesmo foro doméstico - e uma incontinente produção de incomestíveis (epistolário, diários inacabados, escritos agonísticos sempre fulanizados, entrevistas que se tornaram um "must" para fãs e para o currículo de jornalistas) que contudo alimentaram o mito tanto ou mais do que os seus textos "canónicos": "Comunidade", "Os Namorados", "O Teodolito", "O Libertino...", poucos mais.
Pacheco tinha uma notória dificuldade em descolar do caso pessoal - o seu ou o dos que visava - e tendia a fazer rebater a ideia de literatura sobre as incidências biográficas que elegia. O resultado é ambíguo, desigual e francamente cansativo quando enfrentado por extenso ("vide", por ex., as cartas a Aires Pereira recolhidas na secção "1 homem dividido vale por 2", deste volume). Mas confere uma profunda coerência àquilo a que, em vez de "Obra", será preferível chamar "Intervenção" ou "Actuação", na medida em que faz da indistinção entre "vida" e "escrita" o seu motor, mostrando, em acto, como a literatura se pode alimentar do irrisório - ou de como a decisão sobre o irrisório (ou não) não procede de uma ontologia mas de uma ética: a da escrita, a única que Pacheco reconhecia.
Da escrita e, seria caso para dizer, da sua transformação em impresso. Porque o caso Pacheco é também fascinante por uma patologia muito literária: a que consiste em fazer aceder ao impresso (mas não necessariamente ao livro, pois LP revitalizou a tradição do folheto e do panfleto) tudo o que, irrisório ou não, sai da mão do escritor. Este tropismo implica uma vampirização do privado, que parece não ser mais do que pretexto para a publicidade pela escrita; e um princípio de economia aberrante, aliás conatural à economia da literatura na época da industrialização da imprensa, segundo o qual tudo o que sai da mão (e, logo, da "vida") do escritor deve passar a impresso. Da mão à impressora, esta versão da literatura confia-se a um princípio de saturação do mercado que se diria uma antecipação irónica da mesma, e contudo muito outra, saturação actual do mercado literário por irrelevâncias impressas em papel colorido e brilhante. Não surpreende, pois, que LP tenha alargado a sua actuação, logo desde o início, à edição, com a Contraponto, na qual se construíram as bases do seu mito literário: proximidade às vanguardas locais (Cesariny, António Maria Lisboa, Herberto, um certo Manuel de Lima), culto não paradoxal dos clássicos, grafismo sóbrio mas sempre moderno, o destino artesanal da edição portuguesa mais literariamente empenhada, práticas comerciais de almocreve, inescrupuloso sempre que necessário.
O catálogo agora co-editado pela Biblioteca Nacional e por um dos selos da Leya - uma ironia ao nível daquela, involuntária, com que Mário Soares conclui o seu depoimento: "Trata-se do escritor-maldito mais interessante do século XX" - é, pois, a homenagem devida a uma personagem como LP. Comissariados por Luís Gomes, exposição e catálogo não primam pelo ineditismo dos ensaios, mas reúnem de forma rigorosa e exaustiva materiais informativos e bibliográficos que dele fazem um imprescindível instrumento de trabalho para quem a partir de agora desejar aproximar-se do "Universo Pachequiano", para citar Luís Gomes. Nesse sentido, o verdadeiro "curador" do catálogo é o "designer" Jorge Silva, que realiza aqui uma das suas mais belas peças, desde a opção por uma cartolina rugosa que lhe permite conquistar para a capa a sugestão "retro" das imperfeições macroscópicas dos tipos de chumbo, até à rejeição do papel "couché" da praxe nestas obras dadas ao novo-riquismo, à discreta combinatória de duas cores nos índices, nos textos e seus títulos ou nas bibliografias, ou, decisivamente, à opção por uma dupla entrada na obra, em função da escolha de "Luiz Pacheco" ou da "Contraponto", hemisférios de um mesmo planeta em espelho.
É um livro que dá gosto ler, folhear, contemplar, sentir nos dedos e cheirar: coisas anacrónicas, por certo deliberadamente. Por outras palavras, é o catálogo adequado a um literato que, como confessa num depoimento transcrito por Ana da Silva, sentia "o gosto de ver aquilo que se escreve em letra de forma... essa vaidade, esse gosto, esse orgulho de ver o livro na montra, quem disser que não, aldraba" (p. 35). Não surpreende, pois, que o núcleo mais forte dos textos inéditos pertença a dois editores-interventores, Vítor Silva Tavares e Manuel de Freitas, ambos empenhados em projectos que, nas palavras do primeiro, são "cometas tracejando luz no negrume editorial" (p. 12), "editores-editores... que apenas têm ou tiveram de prestar contas a si próprios" (p. 15), em palavras do segundo. Heroísmo e pose, a vida - quantas vezes, a "vida danificada" - redimida pelo estilo (no caso de Silva Tavares, esse estilo, à sua maneira muito castigado e castiço, forjado num certo contexto lisboeta ao longo de meio século, de O'Neill, Cardoso Pires e Pacheco a Dinis Machado & etc.), enfim, a Literatura como destino: mitologias maiores e menores de uma quase extinta civilização do impresso, para a qual este catálogo de Luiz Pacheco e da Contraponto é um dos mais belos epitáfios.
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[Osvaldo Manuel Silvestre, Ípsilon (suplemento do Público), 12/02/2010]

18.2.10

Nas livrarias

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Cossacos, de Lev Tolstói, na Relógio D'Água. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.

14.2.10

Mão Morta: Lisboa e Budapeste




[do álbum Mutantes S. 21, 1992]

13.2.10

Mão Morta

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Foram finalmente reeditados os quatro primeiros álbuns dos Mão Morta: Mão Morta (1988), Corações Felpudos (1990), O. D., Rainha do Rock & Crawl (1991) e Mutantes S. 21 (1992). A edição é da Cobra, numa caixa de cartão que inclui os quatro CD.

12.2.10

Jorge Fallorca

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A Cicatriz do Ar, o mais recente livro de Jorge Fallorca, é hoje apresentado na Trama, com leitura de excertos por Paulo da Costa Domingos e música de Fernando Dinis. É às 21h.

9.2.10

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O POETA EM LISBOA
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Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.
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Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.
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Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha - numa música secreta, inaudível.
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Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.
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Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.
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Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.
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Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.
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Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa..
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Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.
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[António José Forte, in Corpo de Ninguém, Hiena, 1989]

4.2.10

Letra Livre na ZDB

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Hoje, às 21h, a melhor livraria de Lisboa, a Letra Livre, inaugura um novo espaço. Será uma nova livraria, na Galeria Zé dos Bois (Bairro Alto), e estará aberta de 4ª a Sábado, das 18h às 24h.

2.2.10

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O DIÁLOGO EM 1948
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- O que é a família?
- É o acto sexual praticado com um cadáver.
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- O que é o surrealismo?
- É a morte dos séculos projectando uma sombra muito longa debaixo da água do sonho.
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- O que é a loucura?
- É a base de todas as paisagens.
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- O que é o sonho?
- É uma chamada obscurecida pelo recalcamento do desejo.
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- O que é a pátria?
- É uma coisa sem solução.
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- És mulher?
- Sim.
- Porquê?
- Porque é útil.
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[Carlos Calvet e Mário-Henrique Leiria, in Antologia do Cadáver Esquisito (Org. Mário Cesariny), Assírio & Alvim, 1989]