27.12.07

Jorge Silva Melo: entrevista ao Expresso

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A propósito do lançamento de Século Passado, Cristina Margato entrevistou Jorge Silva Melo para o Actual (suplemento do Expresso) de 10 de Março deste ano:
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O PASSADO FOI BEM PASSADO
COMO O BIFE

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Aos 58 anos, Jorge Silva Melo não faz muitos planos. Interessa-lhe, como diz, o que «já cá canta». E «cantam» muitas coisas.
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Não foi desta que Jorge Silva Melo ajustou todas as suas contas com a memória. Em vésperas de lançar Século Passado (Livros Cotovia), uma colecção de crónicas apresentada como autobiografia, o encenador, realizador, actor e dramaturgo preferiu dar a conhecer aquilo de que é feito, o que viu, o que leu, ouviu e «foi vivendo na passiva». São muitas histórias desta vida cheia, «de cão, mas não de luxo», com promessa de continuação em A Mesa Está Posta.
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É difícil defini-lo, tendo em conta que se tem dividido por tantas áreas, mas há uma palavra possível para o fazer: intelectual. É um intelectual?
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Sim, se o intelectual é aquele que aparece no Zola, alguém que intervém na sociedade tendo em vista a justiça, o pensamento, a arte. Gostaria de ter essa esperança, mas sou sobretudo um curioso. Interesso-me pelo que não sei. Uma vez propus dar aulas sobre coisas que não sei. Gosto de uma universidade com pessoas que não sabem e que vão aprender com os alunos. Porque me parece que é o caminho mais bonito. Fui aluno de um homem extraordinário, o padre Manuel Antunes. No primeiro ano da faculdade, lembro-me de ter saído o livro Les Mots et les Choses, de Foucault. Ele estava a lê-lo ao mesmo tempo que nós e a dar aulas sobre ele. Gostava de herdar essa capacidade de estar a descobrir o mundo com outras pessoas…
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Esse não tem sido o seu caminho?
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Sim. Há aliás uma coisa esquisitíssima: já encenei peças de muitos autores e de nenhum com idade acima dos 40 anos. Mesmo os textos de Brecht ou de Shakespeare que trabalhei foram escritos quando eles eram muito novos. Há qualquer coisa no rasgo inicial, do não saber, de querer o mundo inteiro e não ter formas para o captar, que me interessa.
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Em miúdo, o que é que queria ser?
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Queria ser realizador de cinema ou bispo.
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Bispo?
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Sim. Os meus pais tinham um vizinho de que eu gostava muito. Era o bispo Silva Porto, um senhor muito simpático, que me tratava bem. Como não queria ser padre, a hipótese era logo ser bispo e comandar o mundo. A outra hipótese apareceu depois de ter ido ao cinema com o meu pai, aos 4 anos. Nunca mais voltei a ver o filme, mas sei qual é: A Zaragateira, de Luigi Zampa. Como gostei muito daquilo, perguntei ao meu pai quem é que o fazia e passei a querer ser realizador. Mas a melhor resposta de todas é sem dúvida a que dava à minha mãe. Respondia-lhe sempre: «Quero ser filho». Ou seja, nunca quis que o tempo passasse. Provavelmente, sempre andei à procura do primeiro impulso juvenil. E mesmo agora, a cair da tripeça, não quero que o tempo passe.
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Onde é que nasceu?
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Nasci de cesariana numa maternidade em frente à Gulbenkian, que ainda não existia. Curiosamente, depois de nascer, fui viver para o andar onde hoje mora José Sócrates, na Rua Castilho. Os meus pais estavam em África, e a minha mãe era professora primária. Com licença graciosa, ainda viveram cá seis meses e depois voltaram para África, onde vivi até aos 4 anos. Depois é que viemos para aqui (Rua Artilharia I). Era um prédio com graça, porque aqui em cima morava o pai da Esther Mucznik, mais acima os pais da Vera Sam Payo Lemos. Mais tarde percebi que era um bairro judeu.
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A cidade era um círculo pequeno para si?
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Sim. Era um mundo muito pequeno, no qual era muito simples falar francês, inglês, ir ver as revistas francesas à Alliance Française, receber os livros em alemão, que eram para a minha irmã, ir à Livraria Bucholz, sonhar com Paris, com o cinema francês. Era um bairro provinciano com um ambiente cosmopolita. Sendo a minha irmã mais velha 12 anos e estando ela muito interessada no que acontecia, foi muito fácil presenciar algumas coisas. Durante a campanha do delgado ainda vi cavalos da PIDE a bater nas pessoas no Saldanha. O meu pai, que era republicano, explicava-me. Ele tinha negócios com Barcelona, a cidade maravilhosa. A honra de ser de Barcelona contra a Madrid franquista foram coisas que eu fui aprendendo ouvindo. A parte europeia apareceu muito cedo.
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Tinha consciência da miséria?
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Tinha. Quando houve as cheias de 1967 foi o grande choque para as pessoas da minha idade. Aqui vivia-se numa espécie de redoma recatada, com muita consciência da política. Lembro-me muito bem de quando a irmã da Esther Mucznik foi para Israel. Devia ter 7 anos. A minha mãe explicou-me o que era o «kibutz». Foi mesmo ali junto à janela e disse-me: «Não deves dizer esta palavra na escola». Percebi que havia palavras que não se podiam dizer na escola.
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A consciência política desperta na escola?
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Começa até mais cedo. Vivi num prédio perto da Igreja de São Mamede, onde vivia Manuela Porto, uma actriz que provavelmente abandonou o teatro por não se sentir bem com os convencionalismos burgueses da época. Ela era do grupo anarquista, trabalhou com Lopes Graça, foi tradutora da Virginia Woolf… suicidou-se pouco tempo depois de eu ter nascido, mas ainda assim fazia parte desse ambiente em que vivi. A minha primeira atitude foi nos Maristas, mas inocente: quis fazer uma redacção sobre o dirigente africano Lumumba. Suspenderam-me durante três dias. Como o meu pai me deu dinheiro e autorização para ir ao cinema, a minha tendência acabou por ser aprovada.
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Mas nunca optou pela actividade partidária…
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Estive no MES. Como trabalhava à noite, nunca podia estar nas reuniões com Ferro Rodrigues. Tem a ver com a solidão do teatro…
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Tem um texto sobre o 25 de Novembro no qual conta um episódio de desconfiança em relação à política partidária.
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Vi nascer alguns partidos. O que me interessou sempre foi a hipótese de os movimentos populares ultrapassarem os partidários. Gosto do que está a nascer, do impulso irreflectido, das primeiras peças, das primeiras ocupações de terras. Das segundas não gostei, porque já era o Partido Comunista a organizar o imenso movimento espontâneo… Interessa-me que o desejo possa irromper na rua, de uma forma comunitária e partilhada.
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E ainda vota?
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Voto sempre, mas não fico contente. As eleições em Lisboa ainda me fazem engulho.
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Não tem partido escolhido?
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Não, e a evolução do Bloco de Esquerda é algo que me entristece, embora muitas das coisas me possam ser próximas. Não gosto da arrogância de dizer: «a maioria dos católicos votou» ou «entrámos finalmente na Europa». Há nisto um oportunismo.
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A política está livre desse oportunismo?
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Não. Por isso, gosto dos movimentos pendulares.
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Interessou-lhe algum movimento pendular nos últimos tempos?
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A greve dos liceais em França.
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E em Portugal?
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Em Portugal, confesso que não estou interessado em mais nada. Interessei-me e achei lindíssima a última campanha de Mário Soares. Votei nele com o maior entusiasmo e não posso deixar de estar com esta pessoa que teima, insiste em ser político, tem coisas para dizer e continua a surpreender-me com a sua liberdade de pensamento. Foi o último grito do Rei Lear.
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Pode-se trabalhar para a História…
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Pode-se trabalhar por culpa. Isso tem a ver com algo mais uma vez: o sentido da responsabilidade.
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Não se empolga quando vê manifestações?
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Sim, mas pelo mal-estar da sociedade. Porque não as entendo muito bem, não sei o que pode sair dali. Fico a saber que as pessoas se sentem infelizes. Mas também sei, infelizmente, que com essas pessoas não vou conseguir fazer um novo mundo… Já sei uma coisa que não sabia em 1974. Será sempre isolado que tentarei lutar por algo melhor e vão ser poucas as vezes que ainda vou conseguir estar com grandes multidões.
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Ficou circunscrito a uma minoria…
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Sempre estive. No 1 de Maio de 74 era tudo muito entusiasmante, mas a música que as pessoas cantavam era algo que me horrorizava. Pensei. «Porque é que estamos aqui neste momento tão entusiasmante? O ideal estético é este? Ainda se estivéssemos a cantar Schubert!» Os meus amigos estavam a cantar para poderem estar em comunhão. Zanguei-me imenso. Não podia ceder. Percebi isso entre a semana do 25 de Abril e o 1 de Maio.
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Quando entrou para o teatro, este ainda tinha importância política…
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Sim. O teatro é uma resposta política, no sentido em que é uma resposta comunitária. Íamos aos espectáculos juntos e comprávamos os mesmos livros, havia uma espécie de cultura geral. Fiz um filme sobre o Álvaro Lapa, que é da idade da minha irmã, e descobri na biblioteca dele os mesmos livros na mesma edição que eu tinha. Ele estava interessado na pintura, eu no cinema, mas líamos o mesmo. Havia um saber comum, porque havia espaços comuns. Uma das coisas que me aflige é que em Lisboa já não há espaços comuns. Em Madrid e Paris há. Este esvaziamento do coração da cidade faz com que já não saiba onde há cinemas, porque estão quase sempre na periferia ou nas entradas e saídas das auto-estradas.
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Como é que interpreta o facto de a crítica ter hoje cada vez menos peso nos jornais?
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É muito estranho. Parece que há um desnorteamento nos leitores e proprietários dos jornais. Pacheco Pereira colocou muito bem os pontos nos is num artigo que escreveu para o «Público» sobre a elite portuguesa. A elite portuguesa vive uma vida de província em que a vida comunitária está ausente. Já não há cafés, e o jornal deixou de ser um espaço comunitário entre as pessoas. No início dos anos 80, as grandes salas da Gulbenkian estavam vazias, porque as velhas, que iam ouvir a música, não tinham educado bem as filhas. As filhas estavam todas a comprar a casa de campo e iam mais facilmente ao CCB ouvir música ligeira de charme. É na burguesia que há um desinteresse completo pela capital. O que morre não são os jornais. É Lisboa. A vida quotidiana desapareceu, e é por isso que o teatro deixou de ter importância. Todos querem despachar o trabalho e ir para casa ou ir jantar com o casal amigo.
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Ainda tem amigos da sua idade?
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Sim. Curiosamente, não vêem o que faço, mas lêem o que escrevo. Tenho dupla personalidade. O que escrevo atinge pessoas da minha idade; o que faço pessoas de outras idades. Sou bígamo, fiz teatro e fiz cinema, vivi em Portugal e no estrangeiro. Não sou do signo Gémeos, mas sou duas pessoas. O teatro que faço não interessa aos meus colegas de faculdade e aquilo que escrevo não interessa às pessoas que fazem teatro comigo.
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Num dos textos que inclui no livro fala do que é ser português. Há nele a expressão de uma certa marginalidade em relação ao mundo.
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Sim, necessariamente. Há imensas coisas que não pude viver com as pessoas da minha idade também por ser português. Não quis viver a famosa libertação sexual dos anos 60. Estava em Londres entre 68 e 70, e os meus colegas estavam drogadíssimos, charradíssimos, a assistir aos concertos dos Pink Floyd na maior nuvem de fumo que já vi na minha vida. Eu sentia o peso do antifascismo e pensava: «Não posso ter prazer enquanto a situação não estiver resolvida no meu país, estou em Londres para aproveitar todos os segundos, enquanto eles são uns privilegiados que podem gozar o seu prazer…» Havia esse lado de castigo próprio, militância, dever e culpa. A culpa é, aliás, um sentimento dos intelectuais portugueses. O Vasco Pulido Valente é o exemplo perfeito da pessoa que tem culpa e que, por isso, acha que está tudo errado. Se ele pudesse tinha melhorado isto, mas não é capaz porque só há senhores Silvas à sua volta.
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Nesse texto há também uma certa inferioridade de ser português?
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Sim. Mas há outras coisas que devo ao fascismo, como o facto de ser poliglota. Fui preso numa manifestação pela PIDE e foi fantástico. Raparam-me o cabelo, e ao sair leio no jornal que Jacques Tati está na embaixada de França. Precipitei-me para lá. Se não tivesse sido preso, não teria a lata de ir à embaixada. Se calhar, esperava pela sessão de cinema onde ele ia apresentar o filme. Na embaixada estavam lá todos os fascistas, e o António Lopes Ribeiro a receber o Tati. E é o Tati que olha para mim, um rapaz careca em 1968! Ele recusou as entrevistas, deu-me uma e dedicou-me o filme no dia em que o apresentou. Foram os privilégios de uma certa arrogância intelectual.
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Naquele período pós-Cornocópia…
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Vivi em Berlim, cheguei ao fim da esquerda que conheci. Vou estar nos círculos ex-maoístas do Schaubühne, do Peter Stein, mas com a atitude de que já não sou responsável, sem culpa de ser português. No regresso de Berlim vivi um período doloroso durante dois anos. Nem um artigo, nem uma tradução. Passava os dias em casa, e a minha única esperança do dia era ver um programa da Teresa Guilherme ao fim da tarde.
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Tinha pouco mais de 30 anos, e o teatro era já um assunto que dava por arrumado. O que é que o levou de volta ao teatro?
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Não pensava em voltar a Portugal e em fazer teatro. Só o fiz por causa do Quarteto, do Heiner Muller. A Titina Maselli podia fazer um cenário para a peça ao mesmo tempo que tinha uma exposição na Gulbenkian. Quando estou a fazer o Coitado do Jorge conheço o Manuel Wiborg e a Joana Bárcia. Nessa altura, sinto-me culpado. Têm um talento e uma energia que não vi crescer. Senti-me culpado de os abandonar, e a única maneira de estar com eles ou com outros era criar uma companhia de teatro. Apareceu a Artistas Unidos, não tanto para fazer encenações, mas para poder viver com gente. Da mesma forma que em casa gosto de viver sozinho, e não tenciono viver com ninguém – até porque ninguém me permitiria esta desarrumação –, também gosto de ir ter todos os dias com dez pessoas e saber dos seus problemas, das suas borbulhas…
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Mas se tivesse todo o dinheiro do mundo, não escolhia apenas o cinema?
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Não. O cinema não me permite viver com os outros. O realizador tem uma vida muito solitária, autista, obstinada… O teatro é, realmente, um convento, fora das regras da outra sociedade e dos horários dos outros. Interessa-me a vida da comunidade autogerida. Gosto da ideia militante, católica, da comunidade que sobrevive às várias adversidades.
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Não gostando da noite, nem de copos, o seu sonho dos últimos anos era ter ficado no Bairro Alto. O que é que o atrai naquele sítio?
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Agora, vou lá pouco. Gostava do bairro popular, no qual ainda há pessoas. O Bairro Alto é uma aldeia durante o dia que se veste de Carnaval para a noite.
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A ruptura com a Cornucópia e com Luís Miguel Cintra é algo de que vai falar algum dia?
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Nunca vou falar.
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É uma jura?
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Sim.
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Entre os dois?
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Não.
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Não foi uma época importante para si?
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Não sei. Não vou falar.
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Não fala nem do tempo da Faculdade de Letras (lugar embrionário da Cornucópia)?
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Da Faculdade de Letras falo. À medida que fomos aparecendo, o Luís Miguel, a Eduarda Dionísio, o Nuno Júdice e eu, decidimos que não precisávamos de mestres. Não gostávamos do teatro que se fazia. Enquanto grupo, não queríamos apenas criar um espectáculo como criámos, mas também, como aconteceu depois, criar uma revista, a que se chamou «Crítica», e uma cooperativa. Os espectáculos foram a parte mais emergente da nossa acção. Nenhum de nós estava ligado a partidos políticos, e houve quem pensasse que estávamos a pôr em causa algumas directrizes. Tínhamos vontade, talento, como era o caso do Luís Miguel Cintra. Havia uma vida de grupo que não queríamos deixar de ter e que existiu até à formação da Cornucópia – na qual só participa o Luís Miguel e eu. A Eduarda e o Júdice foram para o ensino. Foi-se perdendo a base do movimento…
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O livro é uma vasta colecção de crónicas. Porque o apresenta como uma autobiografia?
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As crónicas foram agrupadas segundo as fases da vida, embora tenham sido escritas fora da época. Este é um livro daquilo de que sou feito, mais do que daquilo que fiz. É mais natural que fale dos filmes que vi, dos livros que li, do que do teatro que faço. Guardarei todos esses textos para outro livro, a que chamarei A Mesa Está Posta, no sentido em que servi o jantar. Este é um livro sobre o que me foi fazendo os amigos, os professores, os outros…
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A sua escrita é muito racional. A exaltação é a do conhecimento. Isso corresponde exactamente ao que é ou à forma como gosta de se apresentar?
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O ensino de Mário Dionísio foi muito importante. Era um professor extremamente culto, e com ele aprendi muitas coisas que me causa alguma perturbação não serem mais partilhadas: a clareza, o saber dizer, a expressão trabalhada… escrevo por causa disso e, se calhar, não é isso que interessa quando represento e até pode ser por isso que gosto cada vez menos de representar.
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Porque é que acha que é um mau actor?
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Nunca fui actor. Os actores são pessoas que encontram os desejos dos outros, e eu nunca encontrei os desejos dos outros. Sempre trabalhei em espectáculos feitos por mim ou pelo luís Miguel, o que ia dar ao mesmo. Sou criador de espectáculos, encenador, porteiro… Calhou-me algumas vezes ser actor, mas detesto deitar-me tarde. E a história de vir para casa às 11 da noite e deitar-me às duas da manhã é-me impensável, tal como o vazio que a vida de actor é. Não suporto a angústia de representar à noite. Gosto de acordar cedo e de trabalhar de manhã. Agora, como os telejornais são gigantescos, consigo adormecer a meio.
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Cruzou-se, como conta no livro, com vária figuras interessantes do último século. Quando esses encontros aconteciam, tinha a noção da importância dessa pessoas?
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Nalguns casos não. Tenho uma muito engraçada sobre pessoas célebres e que não está no livro. Quando estudei em Londres, tinha um quarto muito agradável, com duas camas. Um dia, um amigo canadiano perguntou-me se me importava de receber um amigo dele. Chamava-se David e só se interessava por artes plásticas. Durante o tempo em que lá ficou encontrámo-nos poucas vezes. Era simpático, mas muito recatado. Passados uns anos, jantei com o meu amigo Erik. Fazíamos 40 anos. No jantar, ele perguntou-me: «então já viste o que é que aconteceu ao David?» «Qual David?», perguntei. O David que tinha ficado no meu quarto era o Cronemberg. Dormi com o Cronemberg e não o sabia de todo.
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É uma vida cheia?
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Sim. É uma vida privilegiada. Foi uma sorte ter nascido naquela época. Muitas pessoas gostavam de ter tido as mesmas oportunidades e não as tiveram, com o fim do fascismo e com a Gulbenkian a funcionar. Quando apareço, já muita coisa existia. Os outros já as tinham inventado, como aconteceu com o Cinema Novo. Se invento alguma coisa é no teatro.
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Nunca escreveu um romance?
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Tentei escrever um romance e não deixo de colocar de lado essa hipótese. Quem sabe em A Mesa Está Posta...
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Qual é o futuro?
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O passado foi bem passado, como os bifes. O futuro não sei. Já cá cantam 58 anos. Sou feliz.
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E não tem medo de ficar sozinho?
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Não. Dá-me um certo prazer ficar sozinho. Sou masoquista suficiente para tal. Foi uma coisa que o Tati me ensinou na estreia de Play Time: «Este filme vai acabar comigo, mas eu sei que fiz uma coisa que mais ninguém vai conseguir fazer», disse-me ele. É essa sensação de que este já cá canta, mesmo que não consiga fazer mais nenhum filme, mesmo que fique na miséria, mesmo que não tenha reforma… Direi sempre: «Este já cá canta.» Tive tanta sorte, nunca fui empregado de ninguém, trabalhei sempre no que queria, vivi um pouco por toda a Europa, sem grandes responsabilidades, sem grande dinheiro… Mas consegui atravessar este mundo à vontade. Fantástico! Tenho esta sensação de que estou sozinho, mas hei-de persistir. Há uma frase de Margaret Mead que diz: «Nunca duvides que um pequeno grupo de pessoas que pensa e age pode mudar o mundo. De facto, foram os únicos que o fizeram.» Vinha de uma exposição em Londres em que reunião os trabalhos de Klee, Macke e Moilliet. Três homens que, andando pela Tunísia, mudaram o mundo em três dias, mas não sabiam o que tinha mudado. O que me interessa é estar com essas duas ou três pessoas.

Blogue de Letras

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É imperdoável, mas só agora, passado quase um mês, me dei conta que o Jornal de Letras aderiu à blogosfera. E pelo que vi até agora, parece-me um blog a seguir atentamente. Bem vindos!

21.12.07

Viva o Natal, camaradas!

Há 3 anos Luís Rainha deixou no Blogue de Esquerda um belo texto sobre o seu "Natal Comunista". Como na blogosfera 3 anos é uma eternidade, recupero o texto:
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O MEU NATAL COMUNISTA
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Desde que vivo com uma militante comunista, tudo mudou na minha vida. Em nossa casa, respira-se ideologia, come-se dialéctica, bebe-se dedicação à Causa. Mas não é por isso que deixamos de ter Natal. Apenas recusamos a celebração consumista e burguesa que só serve para encher o bolso ao explorador Belmiro. Sim: o nosso Natal é ideologicamente puro e decididamente Socialista!
Começando pelo presépio. Rodeado por um carpinteiro de ar humilde (símbolo, é bom de ver, das heróicas virtudes do Proletariado) e por uma robusta e azougada camponesa (representando a gloriosa Revolução que todos adivinhamos para breve) está o menino camarada Jesus, de punho direito bem erguido (a bem da verdade, tinha um dedo esticado até ao dia em que caiu da prateleira). Ao lado, lá estão dois animais de ar estúpido: as bestas do capitalismo e do imperialismo. À porta da caverna de musgo artificial, três homens sábios a camelo. Os bonecos são um bocadito mal-acabadões, mas as suas fisionomias dignas e corajosas não enganam: trata-se dos camaradas Engels, Marx e Lenine (este com um belo bronzeado). Só ainda não percebi uma coisa: que prendas trarão eles? Ouro, incenso e mirra não será por certo; para que quereria um recém-nascido essa tralha burguesa?
Mesmo ao lado, brilha gloriosa a nossa árvore de Natal. A minha companheira e os miúdos decoraram-na sozinhos: recortando fotografias do jornal, fizeram uns bonecos com as caras do Santana, do Bagão, do Portas e do meu patrão. Depois, penduraram-nos a todos pelos pescoços. Mas eu também contribuí: comprei 3 conjuntos de luzinhas e juntei todas as lâmpadas vermelhas numa só fiada. Nem nos tempos áureos da saudosa União Soviética houve Natal mais Vermelho. Ficou linda de morrer, a nossa árvore!Claro está que, aqui em casa, as crianças também têm direito a listas com pedidos de prendas. Mas elas renegam o materialismo interesseiro desta sociedade caduca e assumem uma pureza ideológica total - e um altruísmo de louvar; sempre que leio os seus pedidos ingénuos, quase me vêm as lágrimas aos olhos. Então, que pediram este ano os nossos pequenos Pioneiros? Simples sonhos de crianças politicamente activas: o Socialismo, a Paz no Mundo, o impeachment de George Bush.
Os presentes chegam a nossa casa através dos bons ofícios do Pequeno Ancião Vermelho; um velhinho barbudo, alquebrado por anos e anos de exploração, que se desloca num veículo ecológico, a reboque de um colectivo de renas. Mas, como seria de esperar de uma sociedade imperfeita (e do bafo a rum do velhote), o que recebemos nunca é bem aquilo que pedimos. Por exemplo, eu, que queria tanto um significativo reforço de votação da CDU, acabei por receber um conjunto de fondue de loja dos 300. Enfim, melhores dias virão: todos sabem que a chegada do Socialismo é inevitável. Até lá, só vos digo uma coisa: viva o Natal, camaradas!

20.12.07

Byblos: primeiras impressões

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Só ontem tive tempo de fazer a minha primeira visita à Byblos, mas devo dizer que fiquei bastante desiludido. A livraria está claramente a funcionar a meio-gás.
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Começando pelo espaço, é muito amplo e confortável, embora não tão acolhedor como eu esperava. No entanto, livros expostos, acaba por ter relativamente poucos. Tem muitas pilhas de Sousas Tavares e Rodrigues dos Santos mas estantes com livros não tem assim tantas (a secção de poesia é simplesmente ridícula).
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Claro que tudo isto pode não ter assim tanta importância se houver um armazém cheio de livros facilmente acessíveis com a ajuda de tecnologias inovadoras, como estava prometido. Mas para já, nada disso funciona e o armazém ainda só tem cerca de metade dos livros previstos.
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Quanto ao site na internet, é mau de mais para ser verdade.
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Não seria preferível esperar um pouco mais e abrir com tudo em condições?

14.12.07

SALA DE ESPERA
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Cinquentonas adiposas
homens de bogode problemático
duas angustiadas estéreis
outras duas parideiras
velhos parados na sua velhice
funcionários tão públicos
uma adolescente esburacada
a mãe catastrófica
o jovem lamentável casal
uma miúda que só olha
um avô despedaçado,
todos na mesma fila que eu
para os comprimidos.
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[Pedro Mexia, in Vida Oculta, Relógio D'Água, 2004]

Pedro Mexia

A acompanhar a entrevista, que deixei aqui ontem, Maria Leonor Nunes traçou o seguinte perfil de Pedro Mexia (Jornal de Letras, 2 de Março de 2005):
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VIVER PARA ESCREVER
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Fora da escrita, as suas ambições são «abaixo da média», não indo muito além das expectativas burguesas de ter um tecto ou jantar bem. Não se lembra de ter querido mais do que escrever. E conseguiu o que era verdadeiramente «utópico»: viver só da escrita. Pedro Mexia, 32 anos, é um dos nomes emergentes da poesia portuguesa e uma das vozes de maior justeza, no domínio da crónica e da crítica literária. A escrita será a sua única utopia, já que carece em absoluto de fé em qualquer outra. Não acredita na bondade dos Homens nem das sociedades e assume o que já sabiam os egípcios, que «não há nada de novo debaixo do sol».
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É «inabalavelmente crente», apesar do «lastro» de conflito que lhe deixou uma educação católica. De berço conservador, afirma-se politicamente de direita e não se livra de isso vir sempre à baila, ainda que tenha «amplas provas dadas» de total isenção ideológica na escolha dos autores de que gosta ou sobre quem escreve. Acha mesmo «misterioso» que se atribua à esquerda a pertença dos valores culturais. Reconhece, no entanto, que há uma certa «incomodidade da direita com a cultura e da esquerda com a administração interna»: «É a ideia que os poetas são de esquerda e os polícias de direita». Mas nada disso tem para ele importância. .
O seu posicionamento político radica num cepticismo irredutível. Não vislumbra nada que não seja «suficiente menos». E esse modo de ver o mundo nem sequer está agarrado à política doméstica. A dada altura, teve um entusiasmo partidário, «quando houve a transição da geração de O Independente para o PP, via Paulo Portas». Mas rapidamente lhe passou esse assombro de optimismo. O último «fogacho» desse empenhamento político materializou-se no blogue A Coluna Infame, que criou como um espaço «alternativo de debate de ideias». Foi o mote para o aparecimento de outros blogues de discussão política. Mexia acabou por cansar-se desse modelo e hoje usa o seu blogue mais como um diário.
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Religião pop
Dificilmente, poderá evitar o «lugar comum» da infância como um «tempo privilegiado». Não guarda uma memória, nem sequer uma má imagem desse tempo. Viveu-o em Lisboa, onde nasceu em 1972. É filho único, mas a família era alargada e passavam férias na Figueira da Foz. O tranquilo «edifício» começaria a «vacilar» com a descoberta da morte e do sexo, como diz: «Toda a infância foi um período muito bom, pacífico, tanto quanto foi negativa a adolescência». Pelas «razões de catálogo» e, particularmente, por uma «insatisfação permanente». A tormenta entrou pela casa dos vinte: «Não sabia proteger-me e até relativamente tarde era fácil magoar-me. Hoje tenho uma carapaça»…
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Desde sempre viveu entre os livros. O pai, João Bigotte Chorão, é um amante e estudioso da literatura, tendo dirigido a editorial Verbo. A mãe, Maria José Mexia, trabalha na Torre do Tombo e lecciona na Faculdade de Letras de Lisboa. Pedro Mexia confessa não ter tido qualquer espécie de «doutrinação», mas cedo se interessou pelas palavras e soube que queria escrever. Andava pelos 17 anos quando o começou a levar à letra. Escrevia textos dispersos, pequenas histórias, fragmentos de um policial e poemas, que hoje classifica «do atroz ao mau»: «Era como aprender a andar». A escrita era uma forma de «expressão natural», atendendo ao seu carácter «reservado e solitário». Nessa altura, praticamente não tinha amigos. Estudou no Colégio Académico e limitava-se a ir às aulas e voltar para casa.
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A música pop foi então quase uma «conversão religiosa». Agarrou-o, até hoje. E manteve-se fiel a nomes como Leonard Cohen, Nick Drake, Joy Division ou, num destacado primeiro lugar, The Smiths: «o grau beatífico com que ouço um dos seus discos é incomparável a qualquer outra experiência». Morrissey foi para ele uma espécie de «modelo» sobretudo pelo «registo auto-depreciativo», uma forma de «escrever contra si próprio» que sempre cultivou. Tocava-o uma «mundividência depressiva», depois reforçada por uma «intensidade auto-destrutiva», com os Nirvana. Também o cinema o influenciou, tanto mais que a visão é o seu «sentido mais apurado». Paris, Texas, de Wim Wenders, é da sua particular afeição, também por ser «literário», escrito por Sam Shepard. Mexia, agora com a febre dos DVD, tem aliás necessidade de escrever sobre os filmes de que gosta. «A minha relação com o cinema e a música passa sempre pela palavra», sublinha.
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Fez o curso de Direito, na Universidade Católica, sem sombra de vocação. Meteu os códigos penosamente na cabeça, mas não teve futuro nas leis. Ficou-se pelo estágio. Entretanto começou a escrever no DN Jovem, passou depois à redacção, como jornalista. A convite de José Mário Silva, um dos seus grandes amigos, começaria a fazer crítica literária no suplemento DNA, em 1998.
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Por trás do biombo
Além da crítica e da crónica Ministério da Cultura, que actualmente assina no DN, Mexia é também cronista da Grande Reportagem. Gosta de as escrever e tem tido um feedback excelente. Enviam-lhe e-mais, e até o empregado do café, que frequenta há anos, no Verão passado começou a tratá-lo por Sr. Pedro.
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Mexia costuma anotar ideias sobre ideias, em sucessivos cadernos Moleskine. Essas anotações tomam depois forma, género, corpo escrito, nem sempre como inicialmente lhe ocorrera. Foi o caso de Genebra, o seu primeiro texto teatral, escrito para a peça Urgências, que as Produções Fictícias levaram à cena, no ano passado, no Teatro Maria Matos. A experiência agradou-lhe, também pela «perda de controlo sobre o texto», e está pronto a repeti-la. Tal como gostaria de experimentar o argumento de cinema e de desenvolver o formato de conto. Experiência «lateral», fora do texto, é a sua participação no programa Eixo do Mal, transmitido na Sic Notícias. «A televisão não é o meu meio», assevera. Em frente às câmaras mantém um low-profile, em contraste com os seus companheiros de eixo – Clara Ferreira Alves, Nuno Artur Silva, José Júdice e Daniel Oliveira – «mais afirmativos». «Eu levo o meu guião, sei o que quero dizer e não me afasto disso. Não gosto de interromper os outros, de entrar em picardias». Não é sequer, conforme confessa, «particularmente social e conveniente», sempre foi discreto e aprecia o anonimato mas não pode fugir ao facto do pequeno ecrã o ter tornado uma figura pública: «Ser conhecido pelo que escrevo, agrada-me, por aparecer na televisão, são os ossos do ofício, no caso, mais do ócio. Interesso-me apenas pelo que escrevo. Tudo o resto são distracções».
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Em 1999, publicou o primeiro livro de poesia, Duplo Império, a que se seguiram Em Memória (2000), Avalanche (2001), Eliot e Outras Observações (2003). E agora Vida Oculta. Neles se transfigura uma biografia esparsa, que parece afrontar a natureza discreta do poeta que não consegue «estar no mundo, nem escrever, sem um biombo». Um biombo por certo feito de palavras.

13.12.07

Pedro Mexia: entrevista ao Jornal de Letras (2005)

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A propósito de Vida Oculta (Relógio D'Água, 2004), Pedro Mexia foi entrevistado por Maria Leonor Nunes para o Jornal de Letras de 2 de Março de 2005. Aqui fica:
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UMA GEOGRAFIA DE MEMÓRIAS
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A concisão e a intensidade são para ele a essência da poesia. Recusa o romantismo, a palavra ao serviço de uma causa, a «lamechice», o registo «sentimental, sem freio» que em seu entender contamina muita da Literatura Portuguesa. Pedro Mexia, 32 anos, é um pessimista e usa a auto-ironia como uma espécie de contraponto. A sua poesia trava-se no território da memória, num registo autobiográfico, traçando o mapa de uma geografia pessoal que a um tempo revela os pontos de referência de uma geração. Vida Oculta, que acaba de editar, retoma esse trabalho quase «psicanalítico» – embora acredite mais no poder terapêutico da Literatura do que na Psicanálise – que já lhe deu títulos como Em Memória ou Avalanche. E sente que ainda tem que escrever mais um ou dois livros, para fazer esse «ajuste de contas» e ficar livre para outros versos.
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Jornal de Letras: Em Vida Oculta, regressa ao universo da infância, da adolescência, trabalhando sobre as memórias de uma educação católica e, de alguma maneira interroga a religião, mas não Deus. Porquê?
Pedro Mexia:
Deus é uma questão íntima sobre a qual não quero escrever, mas interessa-me falar do que é ter uma educação católica, da tábua feita tabuada. Sobretudo da forma como me marcou, sendo eu de uma geração que já é largamente descristianizada. Nesse sentido, eu sou um resquício histórico de um país católico, que cada vez menos o é. A minha relação com a religião não é de ruptura, mas de conflito, de ambiguidade, de sentimentos divididos.
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JL: Reincide num registo aparentemente autobiográfico. A poesia é uma forma de desocultação?
PM:
Não sei bem se se trata de uma desocultação ou de uma ocultação. O livro tem muitas afinidades com um anterior, Em Memória. Inclusivamente, há nele poemas que foram escritos há sete anos. São de matriz claramente biográfica, num ou noutro caso confessional, embora eu tenha algum problema com esse conceito. Mas mesmo nalguns desses poemas há elementos ficcionais. Interessa saber até que ponto a vida desocultada permanece oculta. Tudo depende também dos níveis de leitura. Há aliás, uma história engraçada: tenho um poema, no meu primeiro livro, chamado Os dez mil, sobre o episódio clássico, descrito por Xenofonte, e um dia, uma pessoa disse-me que tinha gostado muito do meu poema sobre os retornados do Ultramar, porque essa tinha sido a sua vivência.
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JL: Quer dizer que o carácter biográfico de um poema pode decorrer da biografia de quem lê?
PM:
Claro. Tirando casos extremos como dos que descem as Cataratas do Niágara e coisas do género, a maioria das experiências são perfeitamente reconhecíveis e partilháveis. Nesse sentido, cada pessoa lê num poema aquilo que tem a ver consigo. Por exemplo, quem teve uma educação católica pode reconhecer-se num dos meus poemas com essa referências. Porque independentemente do seu mérito, toca uma corda que lhe é sensível. Um dos logros da autobiografia é que, na verdade só tem força, quando toca na vida de quem lê. E num outro momento, podem ser experiências geracionais. Há nos meus poemas coisas que são mais imediatamente legíveis por pessoas da minha idade, aliás aqueles de quem, de um modo geral, tenho mais feedback.
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JL: Tem poemas longos, narrativos, que alternam com outros curtos em que há uma espécie de tentação aforística…
PM:
Gosto muito de aforismos. Porque estando dito o que há para dizer, tudo o resto está a mais. Sempre gostei dessa contenção. Essa é uma das coisas que mais me interessa na poesia. É também por isso que prefiro o conto ao romance, até porque me aborreço facilmente…
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JL: Por isso escreve tão pouco sobre romances?
PM:
Sim, e não porque os romances sejam compridos, como alguns dizem… Como tenho escrito essencialmente sobre a nossa literatura, a verdade é que não há muitos romances portugueses que me interessem. E seria perda de tempo escrever sobre um livro de que não gosto. A poesia portuguesa é incomensuravelmente superior ao romance. Claro que há grandes prosadores e romancistas, mas a linha de força da nossa literatura é a poesia. Em todas as épocas, pelo menos desde Garrett, houve cinco ou seis poetas de primeiro plano. E não sei se haverá cinco ou seis ficcionistas…
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JL: E acha que faz parte de uma nova geração de poetas?
PM:
Interessa-me mais saber se existe um certo tipo de referências e sensibilidades comuns a poetas nascidos na mesma época, do que saber se têm a mesma concepção de poesia ou gostam dos mesmos autores. Aliás aborrece-me que arrumem os poetas, que digam que Miguel Torga é telúrico, que David Mourão-Ferreira é erótico e Sophia da Grécia… O meu poeta favorito do século XX, pondo entre parêntesis o Pessoa, é o Vitorino Nemésio e é impossível dizer numa frase o que ele é. Talvez seja mesmo a dificuldade em arrumá-lo que faz com que não seja tão conhecido como devia ser… Sinto, de resto, que há sensibilidades de certas épocas. É tão simples quanto isto: quem gosta de música pop gosta mais do que eu escrevo do que quem não gosta. Nesse sentido, sou muito crente no conceito de geração e pouco no de geração e pouco no de geração literária.
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JL: O que essencialmente lhe interessa na poesia?
PM:
Duas coisas que, nos melhores casos, podem ser sinónimas: a concisão e a intensidade. É mais frequente na poesia encontrar momentos em que temos de largar o livro. Os primeiros poemas que li do Ruy Belo foram os últimos que ele escreveu e neles havia já um grande pressentimento da morte, sobretudo uma noção muito aguda da passagem o tempo. De tal forma que, durante anos, não o consegui ler. Os seus poemas tinham uma intensidade que me era insuportável. Talvez seja essa intensidade a razão pela qual fixamos versos e é, aliás, muito semelhante o interesse que tenho pela música pop. Sei muitas letras de canções, apesar de ter má memória, talvez porque marcam de uma forma lapidar, quase aforística… Há um filme em que um personagem diz que se não houvesse música pop não sabíamos nada sobre o amor. Ou seja, há certas experiências que estão ditas de uma forma memorável numa canção ou num poema e mais dificilmente num conto ou num romance.
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JL: Curiosamente, há em Vida Oculta referências a Ruy Belo…
PM:
O poema Os vencidos do catolicismo é um diálogo explícito com o poema de Ruy Belo. Claro que depois passou-me essa fase traumática e hoje é um dos poetas de que gosto mais e provavelmente aquele que mais influenciou os novos poetas portuguesas. E achei interessante esse lado de homenagem, assim como há referências a Cesariny. Gosto de as espalhar sem notas, pressupondo que as pessoas os conhecem. Também é tão pequeno o público de poesia… Mas dou-me bem com isso…
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JL: Porquê?
PM:
Porque a poesia é uma forma verdadeiramente livre de escrever, que não tem constrangimentos comerciais ou outros. Diz-se que se pode escrever como se ninguém fosse ler. E na poesia há mesmo o risco de ninguém ler. Não temos de ter a preocupação dos romancistas que têm um mercado, tops
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JL: Escreve sobre poesia, como aplica o sentido crítico aos seus próprios poemas? Faz um exercício de distanciamento?
PM:
Não sei se o consigo. Há poemas que não gostaria se não fossem meus, só que se impõe pela sua necessidade, ainda que sejam literariamente inferiores. Além disso, podem ser quase sempre melhorados. O poema está em construção.
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JL: E altera muito os seus poemas?
PM:
Agora, um pouco mais. Não tenho o domínio técnico que gostaria. Neste livro, por exemplo, já em provas, ainda mexi na divisão das estrofes. Aliás, a mudança de linha é uma das coisas que mais me interessa na poesia. É uma questão mecânica. Sinto cada vez mais que a oficina pode ditar a salvação ou o fracasso de um poema. Preocupo-me também com o fim dos poemas. Gosto de os acabar de forma disfórica. Sou um pessimista e acho que isso se nota.

12.12.07

Bibliotecário de Babel

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[Biblioteca (1949), de Maria Helena Vieira da Silva]
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José Mário Silva tem um novo blog, o Bibliotecário de Babel, nome inspirado na Biblioteca de Babel, célebre conto de Borges.
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"Bibliotecário de Babel é um blogue sobre livros. O que está dentro dos livros, à volta dos livros, antes e depois dos livros. Com um ritmo em princípio diário, falará sobre o que se convencionou chamar “o mundo dos livros”, sobre as pessoas que os escrevem, mas também sobre aquelas que os fazem, os pensam, os vendem. Este será um espaço para reflexões sobre literatura e apontamentos de reportagem, visitas a livrarias, passagens por bibliotecas, recensões próprias e dos leitores, entrevistas, notícias, anúncios de prémios, cobertura de lançamentos e debates, etc."
RESERVA TERRITORIAL
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1972, ano imprestável
para a defesa da Nação.
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E curso de advogado,
ciência que não marcha
nem serve na longa lista
que perguntavam:
consertar canos, cavalgar
cavalos, saltar à vara
ou com barreiras.
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E em cuecas para
a pátria, examinar brônquios,
testíulos, a chusma
de radiografias e outras
documentadíssimas doenças
que os mancebos traziam.
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Corredor de embaraçados,
embasbacados nus cá fora
cigarros e conversa escatológica.
E foi assim: testes e geometria
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e umas semanas mais tarde,
ao cimo das escadas da Junta
de Freguesia, o veredicto:
reserva territorial,
como os outros receosos
inspeccionados de 72.
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Ano do meu
nascimento, falta de jeito,
democracia, obrigado.
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[Pedro Mexia, in Vida Oculta, Relógio D'Água, 2004]

11.12.07

JÁ PODES
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Já podes. Nessa sala escura
quase se confundia o negrume
os contornos da respiração,
o corpo contra os móveis.
Um movimento aquático,
sem relógios,
risos abafados,
comunidade invisível,
ofegante,
na fronteira da infância.
Este jogo, há muitos anos.
Não me
encontraram
e eu não encontrei ninguém.
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[Pedro Mexia, in Vida Oculta, Relógio D'Água, 2004]

9.12.07

INQUEBRÁVEL
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Dez anos? Não me peçam
memórias datadas.
Os primeiros óculos.
O mundo agora
com uma armação,
um vidro, uma distância.
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Os óculos dividiam
quem os não usava
dos outros, os vidrinhos,
putos com um apêndice
tosco e visível,
putos com defeito,
com um acessório,
um gozo, a menor
traulitada os desfazia.
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As minhas lentes de plástico
(assim me disseram)
eram «inquebráveis».
Na época, ainda imaginava
matérias inquebráveis.
Como se eu, defeituoso
e afásico, fosse inquebrável.
Assim fiz a demonstração
aos basbaques e às feras,
com o dedo médio
contra o plástico
com mais força ainda,
inquebrável que era.
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Aos pequenos golpes
uma lente
treme na armação
e num piparote
saltita no soalho encerado.
A troça desaba.
Como se tivesse mentido
e fossem frágeis
lentes vulgares
que se partem como se parte
o vulgar vidro.
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Só anos mais tarde soube:
o plástico inquebrável
apenas solto,
inquebrável no chão,
fora dos óculos.
Ciência tardia.
Os meus inquebráveis óculos
face à multidão
quebrados como os outros.
Nada é inquebrável
se vacilamos.
O mal acidental
fica catástrofe.
A filosofia soçobra.
Vamos, pela vida fora,
amarfanhados
num equívoco.
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[Pedro Mexia, in Vida Oculta, Relógio D'Água, 2004]

7.12.07

Letra de Forma

Augusto M. Seabra, que me habituei a ler regularmente no Público, no tempo em que era um excelente jornal, tem agora um blog (há quase duas semanas), o Letra de Forma. Nas suas palavras "será uma página de crítica e opinião, prosseguindo no espaço digital aquela que foi a minha actividade na imprensa ao longo de muito anos".
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Seja então muito bem vindo. Já está na coluna da direita.

Byblos - Inauguração

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A Livraria Byblos, de que falei aqui, tinha a abertura ao público prevista para ontem, mas afinal só vai ser inagurada do próximo dia 13 (quinta-feira), às 21 horas. A partir de dia 14 estará aberta diariamente das 10 às 23 horas.

6.12.07

Eles estão doidos!

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(clicar para aumentar)

Exemplar, o artigo de António Barreto sobre a ASAE, publicado no Público do último Domingo.

4.12.07

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[Fernando Lemos, Hoje Há Passarinhos]

3.12.07

Viva o Português de quatrocentas calhoadas ao minuto

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Foi este o texto que Fernando Assis Pacheco escreveu para a contracapa da primeira edição de Walt, da Bertrand, agora também recuperado pela Assírio & Alvim:
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"Este livro é uma prosa acerca dos malefícios da guerra entendidos no tempo do inefável Marcial Caneta, quando se falava do Vietnam «por coisas da causa». «Causa» que ninguém desposava; «coisas» que ficaram, alarves, para a gente conhecer enfim como puderam ser, e porquê. Não tenho por isso nenhum remorso de estilo. Eu queria apenas dizer «Gare Marítima de Alcântara», «Lisboa», num ano qualquer entre 1961 e 1974.
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Meto na prosa soldados, civis, incivis, chulos e putas, eu próprio estou lá, disfarçado de narrador-alferes, choro à bruta, gozo como um Cabinda, narro, minto, finto o leitor, apetecia-me mandar o país Portugal ao tota, mas em segunda leitura sou um tipo basto moral e paro a meio palmo do traço proibido – ternuras! Quem grita no salto para o desconhecido é o meu preclaro comandado Frank Camiões.
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O coração em brasa pelos indefesos, xandras incluídas, vem do tempo em que eu aprendia jornalismo. Atenção à Brenda, esse pedaço de coxa! E ao Joe Louis, afilhado inevitável! Bebi em todas as barras de zinco de Lisboa até encostá-los ao peito.
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Literatura-literatura, bah. Noutra altura talvez. Viva o Português de quatrocentas calhoadas ao minuto, que é por onde respiro!"

2.12.07

WALT

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A Assírio & Alvim continua o seu excelente trabalho ao editar a obra completa de Fernando Assis Pacheco, tendo lançado agora Walt ou o Frio e o Quente, de 1978.
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Trata-se de uma “noveleta”, como lhe chamou Assis Pacheco, sendo a sua primeira obra fora da poesia. Insere-se num certo tipo de ficção que surgiu nos primeiros anos a seguir ao 25 de Abril e que Luiz Pacheco designou como nacional-porreirismo, que englobava livros como O Que Diz Molero de Dinis Machado, Crónica dos Bons Malandros de Mário Zambujal e os primeiros romances de Lobo Antunes.
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Walt é sobre a partida dos soldados destinados à Guerra Colonial, utilizando um truque que Assis Pacheco tinha já utilizado em certos poemas, que consiste em fazer passar a Guerra Colonial portuguesa pela Guerra do Vietname, com as respectivas adaptações (toscas, claro, para não haver dúvidas). Assim, o embarque é em San Diego, os soldados têm nomes como Joe Louis e vêm de zonas como a Carolina do Sul, etc.
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A prosa, recheada de termos em calão e expressões castiças, era bastante inovadora na altura e o livro, à semelhança dos outros que referi no campo do nacional-porreirismo, teve um sucesso assinalável na altura.
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Embora Walt não esteja ao nível do fabuloso Molero ou dos romances de Lobo Antunes, não deixa de ser um livro merecedor de uma redescoberta.