29.3.09

Cruzeiro Seixas: entrevista à Time Out

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A propósito de uma grande exposição na Galeria São Mamede (termina no dia 2 de Abril), a Time Out entrevistou Cruzeiro Seixas:
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“O surrealismo é um pontapé!”
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Quem melhor para comentar o surrealismo em Portugal do que um dos seus fundadores? Miguel Matos à conversa com Cruzeiro Seixas.
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O Infinito Segredo é o nome da exposição patente na Galeria São Mamede, que reúne obras de Cruzeiro Seixas desde a década de 40 até aos nossos dias. Aos 88 anos, este homem finge que está velho mas acaba por provar diante dos nossos olhos que vive com força e faz os sonhos viver, não fosse a sua arte uma exploração onírica do inconsciente. Eis o ponto da situação pelo seu ponto de vista.
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Parece que as forças do inconsciente tomaram a cidade de assalto. É a exposição de surrealismo da Fundação Cupertino de Miranda na Cordoaria Nacional, Raúl Perez no Museu Berardo, surrealismo no Centro Português de Serigrafia, debates e conferências e agora a sua exposição... Acha que há um novo interesse por esta corrente, é uma miragem ou apenas uma feliz coincidência?

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Isso é muito difícil de responder. As pessoas andam esfomeadas porque nenhum organismo é capaz de organizar exposições que estejam ao nível de uma verdadeira sensibilidade ou cultura. As pessoas andam aqui por acaso e não há planos a longo prazo. Os projectos fazem-se por quem bate à porta. Bate à porta o Zé, faz-se uma exposição do Zé, e assim por diante. Isso não pode existir em parte nenhuma, só em Alguidares de Baixo... É inadmissível. E não me venham dizer que é por causa do dinheiro. É porque ninguém quer ou ninguém sabe fazer uma programação a sério. Estas exposições de surrealismo têm a ver com questões comerciais, como é o caso do Centro Português de Serigrafia. O Raúl Perez foi pedir à Fundação Berardo para expor. Eu sou incapaz de pedir. E no que diz respeito à Colecção Cupertino de Miranda, nada foi feito com um verdadeiro entendimento.
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Isso terá que ver com um vazio de espírito crítico e de uma deturpação da História de Arte. Só assim se explica o que se passa em Portugal, em que se enterram gerações inteiras de artistas que tantas obras importantes fizeram e hoje são quase desconhecidos. Temos neste momento a exposição de António Palolo no CAMB, mas é raro fazerem-se antologias e retrospectivas...
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Pois, e há outro pintor muito interessante que é o René Bertholo. Gostaria muito de ver. Outro muito importante e que está vivo, com uma pintura lindíssima e um raro sentido da cor, é o Carlos Calvet. Deveria ser feita uma retrospectiva, mas ninguém se lembra disso. Há coisas esquisitas.
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Doou a sua colecção de arte à Fundação Cupertino de Miranda, com vista à criação do Centro de Estudos do Surrealismo e do Museu do Surrealismo. Parte dela podemos vê-la agora na Cordoaria Nacional. Como conseguiu reunir uma colecção tão importante?
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Olhe, eu sou um teso. Não tenho fortuna de família e fui funcionário público toda a vida. Após a guerra, tinha eu 20 anos , trabalhava na Intendência-Geral dos Abastecimentos. Tratava do racionamento do pão, do açúcar, do feijão, etc. As donas de casa tinham umas senhas para levantar estes géneros alimentícios. Era uma coisa horrorosa. Mas confesso que era um péssimo funcionário, não fazia nada nos sítios onde estava.
.[sem título, 1970]
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Tem um grande espólio porque muitos destes artistas eram seus amigos, não é?
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Eu estava apaixonado por aquelas obras e muitos artistas acabavam por trocar obras uns com os outros. Algumas comprei. Ficava sem dinheiro nenhum, já pouco ficava para comer... Durante muitos anos aconteceu que eu tinha dado mais obras do que vendido. Eu gosto é de dar e de expor sem ser para vender.
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Quando pensa numa peça não pode pensar se vai vender ou não, porque isso aniquila logo qualquer trabalho artístico...
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Ah, mas muitos artistas hoje quando põem uma tela no cavalete já estão a pensar no preço que vão pedir. No meu tempo as coisas não eram assim.
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Mas a trabalhar assim como trabalha, o seu tempo ainda não passou...
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Eu já estou fora do tempo, homem. Não sabe como é impressionante uma pessoa chegar aos 88 anos e ver morrer toda a gente da sua geração. Não supunha que fosse assim tão difícil de suportar. Até com pessoas com quem não tinha grande relacionamento. É muito pior com aquelas pessoas que me eram queridas. Sente-se uma solidão muito grande.
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Mas há que lutar contra o tempo como faz, criando...
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Agora só crio galinhas.

Mas não vai expor galinhas, pois não?

Não me importava nada.

Pronto, aqui está o surrealismo a penetrar na conversa... Esta corrente apareceu numa altura em que a realidade era cada vez mais insuportável, o escape, a quebra das regras, o regresso ao inexplicável, a exploração dos sonhos, dos instintos eram a única saída possível. E isto com um programa ideológico a acompanhar. Acha que temos de novo uma urgência de fuga para fazer a revolução, por pequena que seja?

Não conheço outra alternativa, outra ideia com igual força.

O surrealismo foi e é para mim uma ideia muito forte, um mito com muitas possibilidades de nos aguentar neste mundo incrível.

Há quem diga que está esgotado...

Eu acho que não. Mas a maioria das pessoas ligadas à arte está a repetir muitas das coisas inventadas pelos surrealistas nos anos 20, embora sem revelarem a proveniência da sua inspiração. Isso eu acho muito triste. No outro dia descobri uma série de objectos numa galeria de Lisboa. Eram objectos interessantes que poderíamos chamar de surrealistas mas a pessoa que os fez não tem consciência disso ou não quer ter.

É difícil um artista ver-se inserido nessa “máfia” do surrealismo. André Breton, o primeiro fundador do movimento, expulsava artistas do grupo (como Dalí) como se fosse um partido político...
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[sem título, 1970]
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O surrealismo exige da pessoa que tenha uma revolta sincera contra o que está à sua volta. É a partir dessa revolta que o surrealismo pode crescer e afirmar-se. Quem pegar no surrealismo como uma estética está redondamente enganado. O Raúl Perez, no dia da inauguração da sua exposição dizia na rádio que não é um surrealista militante. Então as obras são surrealistas e ele não?

É um exemplo entre outros. Eu estou em contacto com imensos surrealistas no mundo e vejo que as pessoas continuam a fazer coisas fracas e a chamarem-se surrealistas. Aqui é ao contrário: o Perez desculpa-se de ser surrealista. É como dar um pontapé numa pessoa e depois pedir desculpa. O surrealismo é um pontapé!

Os artistas que partilham da sua visão artística tendem a fazer retratos de amigos, trabalham em conjunto, fazem homenagens mútuas... Por que razão há esta ligação tão forte entre vocês?

Era forte nos tempos do Mário Cesariny e antes de eu ir para África, onde estive 14 anos. Quando regressei, o mundo era outro, tudo se tinha modificado. O Cesariny e eu tinhamos uma paixão um pelo outro e isso foi muito bonito a partir dos nossos 17 anos quando nos conhecemos na Escola António Arroio. Depois, já éramos adultos e as coisas não corriam da mesma maneira. Tínhamos opiniões divergentes e estávamos diferentes. O Mário pintava muito, vendia muito e não parecia o mesmo. Eu acreditava mais na poesia. Erro meu, talvez. Mas realmente era a poesia que eu tinha visto nascer ao meu lado pelas ruas de Lisboa e isso separava-nos. Às tantas ele decidiu fazer de mim a grande figura internacional do surrealismo português e eu não tenho jeito nenhum para ser grande em coisa nenhuma. Nisso o Mário teve uma espécie de fracasso porque não tinha a força suficiente para se impor lá fora.

O próprio André Breton não se interessou muito pelo movimento em Portugal...

Não. Foi tão desastrada a apresentação do nosso surrealismo ao Breton que ele acabou por não se interessar. Mas também isso tudo tem a ver com a pouca sorte deste país. Nunca ninguém vai dar por isto.

Vê o surrealismo assumido pelas novas gerações de artistas?

Lá fora, sim. Aqui não vejo ninguém. Somos apenas três ou quatro gatos que não se procuram uns aos outros nem se entendem. Mas os iniciadores do surrealismo foram de tal forma grandes que hoje em dia é difícil alguém fazer uma coisa nova. Magritte, Ernst, Chirico... gente verdadeiramente genial, já não há nada disso.

Aos 88 anos como encara a arte?

A arte continua a ser o grande apoio, uma grande descoberta da humanidade. Mas em muitos essa parte está adormecida.

Sempre se deixou levar pelo mundo onírico. Ainda é possível sonhar?

Eu acho que é a única salvação. O sonho acordado é das coisas mais bonitas que o homem tem. É tão belo como a vida sexual... São coisas das quais podemos pôr e dispor à nossa vontade.

É a liberdade!

27.3.09

Dia Mundial do Teatro

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"Vamos, mais uma vez, fingir que nos amam, que nos respeitam, almoçar, ouvir declarações de amor e pedidos de voto, vamos mais uma vez ouvir dizer que povo sem teatro não é povo nesta cultura europeia, que faremos mais com menos, [...] dar beijos, agradecer e dar abraços, vamos todos fingir."
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[Jorge Silva Melo, Público de hoje]

Centro Mário Dionísio

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Embora só esteja concluído daqui a uns meses, vai ser já este fim-de-semana apresentado o futuro Centro Mário Dionísio, no Largo da Achada, em Lisboa (Mouraria).

Segundo a notícia do DN, em parceria com a Associação Renovar a Mouraria, no domingo dois jovens artistas da Escola de Artes das Caldas da Rainha vão pintar o muro frente ao CMD e haverá leituras de textos por Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, dois dos fundadores da Associação Casa da Achada, que irá gerir o Centro Mário Dionísio - onde já funcionam três salas de biblioteca e arquivo.

26.3.09

PROJECTO DE SUCESSÃO
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Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra
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Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos
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Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora
por-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina
deixar fumar um cigarro só até meio
Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se um copo de oiro e sonharem-se índias.
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[António Maria Lisboa, in Poesia, Assírio & Alvim, 1995]

20.3.09

“Aquilo que claramente nos falta neste país, aquilo que nem sequer sabemos que nos falta, é o sonhador, o louco inspirado. Com que sinistra alegria, quando chega o momento de lhe tapar a campa, dedicamos a nossa atenção à ‘inadaptação’ do indivíduo solitário, afinal, o único verdadeiro rebelde duma sociedade podre.”
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[Henry Miller, in O Tempo dos Assassinos, Hiena, 1985]

19.3.09

Entrevista com Eduardo Sousa

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Pode ser ouvida aqui uma entrevista para o programa Lido e Relido, na TSF, de Eduardo Sousa, um dos livreiros da melhor livraria de Lisboa, a Letra Livre.

13.3.09

Mário Cesariny: a entrevista do JL (24-11-2004)

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A propósito do documentário Autografia, de Miguel Gonçalves Mendes, o Jornal de Letras entrevistou Mário Cesariny. A entrevista foi conduzida por Maria Leonor Nunes e Ricardo Duarte:
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UM SOPRO DE LIBERDADE
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Primeiro é o impacto, depois a surpresa, finalmente o deslumbramento. O escritório de Mário Cesariny, onde decorreu esta entrevista, é um lugar único, próprio de um espírito insaciável. Os mais variados objectos, espalhados pelas paredes, recuperam a memória de uma vida sempre levada no limite. São quadros, alguns pintados por si, retratos, bibelots, fotocópias, cartas, envelopes, pedras da calçada, poemas, livros, como a epopeia de Gilgamesh, «do tempo em que a poesia estava ligada à vida». Ao fundo, a um canto, imagens e escultura de gatos. Entre blagues, muita ironia, e um assombro de inteligência, o poeta e pintor recorda a «implosão surrealista» e a sua utopia: «Liberdade, Poesia e Amor».
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Jornal de Letras: Vai ter uma grande exposição e recebeu um prémio de consagração da sua pintura. Curiosamente, hoje reconhece-se que muitas das suas pinturas e processos criativos da segunda metade dos anos 40 foram pioneiros não só em Portugal, como em todo o mundo?
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Mário Cesariny: Lembro-me de uma colagem que fiz quando andava com o Fernando Lopes-Graça na rua a apanhar porrada da polícia e a cantar as canções do coro [da Academia dos Amadores de Música]. Uma vez saímos da Graça, da Voz do Operário, a cantar e fomos por ali abaixo. Só parámos na Rua Barros Queirós, porque estava a decorrer uma reunião da União Nacional, no teatro D. Maria. Começámos a levar porrada e a fugir. As coisas que fiz… Estive no Partido Comunista Português mas deixei de estar sem nenhuma explicação.
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Como?...
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Disseram que não podia ter uma forte ligação, para me ir embora e esperar. Mas nunca mais me chamaram. Acho que era influência dos poetas neo-realistas que não achavam graça nenhuma ao Surrealismo. Por outro lado, nunca me lembrava de avisar o controleiro do que fazia. Não havia tempo. Uma vez quando o Mário Soares e o Júlio Pomar estavam presos no Aljube, organizámos uma sessão de protesto, em que distribuímos panfletos. Fomos todos para à PIDE, por estupidez, porque o plano era muito fraquinho.
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Quem estava consigo no grupo?
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O João Rodrigues, o Cardoso Pires, o Luiz Pacheco, e não me lembro de quem mais. Na PIDE, meteram-nos num quartinho. E quando chegou a altura de começar a levar porrada, entraram os Pides com uns paus… Um deles olhou para o Pires e perguntou: «O que faz você aqui?» É que o pai dele tinha uma casa alugada no prédio do pai do Pires… Esta dá bem a medida do provincianismo português. Mas evitou-nos a porrada e mandaram-nos embora.
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Mas estava a falar de uma colagem…
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… Era inteiramente surrealista. E causou alguma perturbação nas hostes do Lopes Graça.
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Quando faz essa pintura, tinha conhecimento do que se passava lá fora?
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Não, eu e o Alexandre O’Neill fizemos escorregamentos, figuras de sopro, tudo fora da pintura-pintura, Chagámos a utilizar o termo «despintura». Estávamos noutro planeta. Também há histórias tristes. O Fernando José Francisco era o que entre nós tinha mais garra de pintor, ainda mais do que o Cruzeiro Seixas. Mas encontrou uma linda infanta e quis casar com ela. E para isso tinha de ganhar dinheiro. Os pintores nessa altura só tinham duas alternativas: ou iam para o SNI, o Secretariado Nacional de Informação, do Salazar e do António Ferro, ou para a Sociedade Nacional de Belas Artes, dos velhotes. Não havia mais sítio onde expor. Como ele não quis pactuar nem com uns, nem com outros, deixou a pintura, casou e teve uma vida normal. Dedicou-se à publicidade.
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A sua escolha foi a mais difícil: continuar sem pactuar…
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Era mais difícil, mas eu não dava por isso. Sempre fui pouco atento a certas coisas… Bom, andar na rua e ir ao café sem ser preso já era uma proeza. Andar na rua, engatar alguém, e ir para uma pensão, era uma vitória. Estas eram as respostas que nós dávamos, com ou sem programa. Este era o ar que se respirava. Mas hoje é difícil imaginar o que era a ditadura.
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Como é que a recorda?
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Havia a moda das senhoras irem ao Chiado, à Pastelaria Garrett e à Benard, às cinco horas, todas chiques, com as jóias. Mas uma mulher sozinha na rua, em qualquer lado, arriscava-se a muitas coisas chatas: que lhe apalpassem o rabo, ou que lhe chamassem puta… E a repressão dos homossexuais também era feroz, ao mesmo tempo que mesquinha. O que o Salazar se preocupava com o rabo dos portugueses! Era uma obsessão. Havia sempre informadores, não se podia dizer mal do governo. No Café Gelo sabíamos qual era o Pide que estava de serviço, mas dizíamos coisas tão extraordinárias que ele ficava maluco. O Salazar era saloio, nunca poderia ter uma quinta, apenas um quintalzinho. Não deixou prosperar a grande indústria e fez disto tudo um quintal para a srª Maria ir buscar umas lenhas para assar a galinha. Já houve quem lhe chamasse o primeiro ecologista. Lá isso era…
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Começou a escrever poesia antes de começar a pintar…
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Comecei. Já tinha os poemas, de esquerda, e não surrealistas, que foram reunidos no livro Nobilíssima Visão. Por volta de 1945 ou 46, eu e o O’Neill descobrimos um livro que a censura das fronteiras deixou passar não sei bem porquê. Chamava-se História do Surrealismo, de Maurice Nadeau, que dava o movimento por encerrado com a II Guerra Mundial. Ficámos abismados com o sopro de liberdade, de poesia. E tornámo-nos surrealistas. Em 47 enganei o meu pai, dizendo-lhe que ia a Paris arranjar um emprego. Mas não havia emprego nenhum, estive lá a contactar os surrealistas.
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No ambiente irrespirável da ditadura a sua poesia foi um grito, uma revolução?
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Claro. Mas apesar de tudo, tínhamos uma vantagem, porque os pequenos livros de poesia que eu fazia, assim como outros, não tinham de ir à censura. Ao contrário das obras mais caras, com muitas páginas, que os editores não arriscavam publicar sem passar pela censura. E há aquela anedota que o Luiz Pacheco contava. Ele trabalhava na Inspecção Geral dos Espectáculos – era uma ratazana que estava a roer aquilo tudo – e descrevia uma conversa muito engraçada entre dois censores. Naquela semana, o João Gaspar Simões tinha dito mal de um livro do Alves Redol, acho que era a Barca dos Sete Lemes. E ao ler a crítica, um deles larga isto: «Se soubéssemos que era tão mau, tínhamos cortado mais». Esse era o país em que vivíamos. De um lado uma ordem férrea, do outro, uma desordem total, a tacanhez das pessoas.
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E a pintura, foi um meio de chegar à liberdade poética?
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Também. Até digo que a pintura me ajudou a desconjuntar a antiga poesia, atirando-me para uma maior liberdade. Trabalhei muito no caso objectivo, nas figuras de sopro, coisas à margem. Ajudou a limpar as excrescências da poesia.
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Em que sentido?
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Nem todos os textos de escrita automática valem a pena, mas alguns extraem-nos coisas que nem sabemos que estão cá dentro. E isso foi importante para mim. É uma procura da inspiração, alheada do racionalismo que a França espalhou a partir de Descartes.
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E porque deixou de escrever, ou pelo menos de publicar?
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Ah, isso tem de perguntar aos deuses… Não foi uma escolha, aconteceu assim, para meu grande desgosto. Ainda me lembro das tardes e noites sozinho pela Avenida da Liberdade, a dizer versos. E escrever era como voar, voar, voar. Para uma interpretação simpática e pretensiosa, pode dizer-se que o fogo era tal… que me consumiu. Ficaram só as cinzas, e com as cinzas não se faz poesia. Não sou capaz de escrever sem a tal luzinha que vem, nos salva e faz voar. E com a pintura está a passar-se o mesmo.
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Mas nunca deixou de pintar.
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Sem fazer poesia, se eu não pintasse rebentava. Tinha de fazer qualquer coisa e passei a pintar mais. Os benevolentes diziam que era porque a pintura dava dinheiro e a poesia não. É mentira, não é por isso. Não há dinheiro que se compare ao prazer de sentir os raios virem animar-te. É uma exaltação linda. A pintura também a dá. Mas parece mais impessoal a quem a faz.
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Mais impessoal?
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Sim. Porque a poesia é mais afecta à realidade imediata, é mais objectiva. Tens de dizer se te dói a barriga, se vais conspirar contra o Salazar, se é de dia, se é de noite. Se está apaixonado pela menina do lado e aflito por ela não te ligar nenhuma. Isso é a escrita, o que eu vou ou não fazer. Na pintura nada disso existe, agarra-se e tá tá tá… Mas o processo criador é isso mesmo, seja na pintura, na poesia, no teatro ou no bailado.
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Como vê a poesia contemporânea e os novos poetas?
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Acho que em todo o mundo, não só cá, a partir dos anos 50 e 60 a coisa começou a deteriorar-se. Na pintura, apareceram os americanos a fazer fotografias. E na poesia os textualistas, que é uma coisa muito chata. Mas eu não posso dar uma palavra definitiva a esse respeito. É possível que num cantinho qualquer, até perto daqui, esteja um homem a escrever versos lindíssimos que hão de aparecer daqui a dez anos.
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Falou da viagem a Paris, em 1947, onde conheceu o André Breton…
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…Não fui a Paris conhecer o Surrealismo. Quando fui, já era surrealista. Estive com o Breton em casa dele e num café.
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Era uma altura de convulsão…
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…e de entusiasmo. Era o fim da guerra. O Surrealismo estava lá em plena efervescência, porque aqui, com o Salazar à perna… Era uma guerrilha, aparecíamos, desaparecíamos, para reaparecer noutro lado. Não podíamos fazer um ataque frontal, porque ao contrário dos neo-realistas, a prisão para nós era um falhanço, não uma vitória. Em todo o caso houve respostas de vários jovens, nos anos 50, aquele grupo do Café Gelo. Ah, os cafés que já não há… A desgraça começou com a televisão, quando aquilo está aceso é impossível não olhar para lá. Depois, o progresso tratou de mais triunfos… A verdade é que só a ideia de um grupo surrealista aqui em Portugal, com o Salazar, era um bocado louca. E houve tantas confusões que no estrangeiro não se percebia nada, uns diziam uma coisa, outros diziam outra, uma salganhada à portuguesa. Eu vim de Paris com uns projectos, mas o António Pedro encarregou-se de destruir tudo. Escrevi ao Breton quando decidi deixar o Grupo [Surrealista de Lisboa] e acho que eles desistiram de perceber, pelo que lá fora não se falou mais do surrealismo português.
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Como foi o encontro com o André Breton?
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O Breton era realmente um leão, em todo o sentido. Do aspecto até ao que dizia. No final da vida talvez fosse o homem mais desesperado que se podia ser. Estive com o Octávio Paz, no México e ele falou-me das longas conversas que tiveram a passear à noite e em que ele lhe confidenciava o seu temor pelo futuro do surrealismo. Com a repercussão que os seus livros tiveram em todo o mundo, mais a pintura e a poesia, devia estar muito contente. Mas não, estava triste porque o que ele realmente queria era a Revolução, que não houve. Pode ter havido individualmente, mas não na sociedade.
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Ainda poderá haver?
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Continua a haver surrealistas por esse mundo fora, com ou sem grupos. Em Chicago, há um grupo surrealista muito forte e guerreiro, como não podia deixar de ser. E também no Brasil, e em outras partes do mundo. No outro dia, entrou-me por aqui um rapaz desesperado. E disse «Tem de haver um Neo-Surrealismo». Eu, que não sou nada político, disse-lhe: Calma aí, Neo-Surrealismo não pode haver. Ou há Surrealismo ou não há. Se calhar devia tê-lo acarinhado mais, porque percebo a sua revolta, a sensação de que tudo está caído. Agora não nos cabe a nós, surrealistas de uma certa idade, para não dizer velhotes, estar sempre a repetir a lição. Um surrealista não consegue estar sempre a cantar a mesma cantiga, que ouviu, ouviu quem não ouviu, olha, paciência.
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Mas o que é ser surrealista, hoje?
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No século passado parece que houve duas grandes revoluções. A primeira foi a revolução russa, que acabou exterminada às mãos do Estaline. Diz-se que Estaline é o mau da fita, mas se o Lenine tivesse continuado faria o mesmo. Portanto, foi uma tragédia, uma grande aspiração e um fracasso total. Com o Surrealismo aconteceu o mesmo. Acho que é uma Revolução muito mais utópica e foi enterrada nos museus e nas bibliotecas. O que é o Surrealismo? É a pintura que está nos museus, no Rainha Sofia [em Madrid], no Museu do Chiado, que é de fartar de rir. Passou a ser encarado como uma outra forma de arte. E não é, é uma Revolução. Mas como não podíamos piar a sério, no tempo do Salazar, a nossa revolução foi uma implosão, uma coisa para dentro que nos modificou e que ditou o nosso comportamento.
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É essencialmente uma atitude?
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Não nos podemos esquecer que Breton, numa das suas antologias, incluiu o Jacques Vaché, que não escreveu uma linha, nem pintou um quadro. Suicidou-se com outro jovem num hotel de pouca categoria. Há só bilhetes postais que eles escreviam. Não é pela pintura, pela música, pela arquitectura, nem por nada disso, que um tipo é surrealista. Um tipo é surrealista quando é. Por uma escolha, não sei se ditada por um comportamento biológico, mas é uma escolha de uma forma de vida a que chamamos Revolução. Transformar o mundo, disse o Marx. Transformar a vida, disse Rimbaud. E o Breton inventou: Estas duas palavras são para nós uma só. Por isso eu digo, ao contrário de…, bom…é melhor não dizer nada. O Surrealismo agora é muito bonito para fazer uma exposição, mas espero que alguém se lembre (e o Perfecto Cuadrado já tem feito imenso pelo Surrealismo, por isso não é uma tirada para ele) de dizer que o Surrealismo é uma Revolução, Mental, Social, Moral…
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E qual é o objectivo dessa revolução?
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As três palavras de ordem a que os surrealistas se propuseram: Liberdade, Amor, Poesia.
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A TENÇA, O CHAUFFEUR, O CEGO E ALGUNS CIGARROS
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Vivemos num país que tem «um tecto muito baixo», em que «o dinheiro não chega para mandar cantar o cego cultural». E a este país Cesariny não «deve nada», como diz no documentário Autografia, de Miguel Gonçalves Mendes, que foi para ele, sublinha, uma «experiência muito bonita», um encontro que lhe deu «muita alegria».
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JL: Como se viu em Autografia?
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MC: Deu-me uma grande alegria ver que havia alguém que dava por mim, por aquilo que eu sou ou não sou. Até há pouco tempo só apareciam jornalistas a perguntar: «O que é o surrealismo?» E acho que ele fez um documentário muito bem feito. Bem, não vamos falar mal de outros cineastas… Mas este promete e tem uma paixão louca pelo cinema. Espero que o tecto baixo que este país tem há muitos anos, e não estou a falar só do Governo, não venha a dar cabo dele.
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Que ‘tecto baixo’ é esse?
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Pessoas muito amáveis dizem que sou um grande poeta e outras coisas assim. Eu aceito: sou um grande poeta numa época em que o tecto está baixinho, percebe? Por outro lado, e isto não é um queixume, porque a minha vida apesar de tudo é uma escolha, se eu fosse espanhol, como a minha mãe, já tinha um automóvel, um chauffeur e uma casinha onde eu quisesse. Mas em Portugal, o dinheiro não chega para mandar cantar o cego cultural. O cego cultural está muito em baixo… Por isso, devo ficar muito contente com a «tença» que recebo do Estado, por mérito cultural. E que dá para o tabaco. Foi-me dada há 15 anos, ou mais, e nunca foi actualizada.
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Nem com a inflação?
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Nada. Uma vez perguntei a uma pessoa do Governo: «Mas então como é? Há 15 anos, 130 contos até faziam um certo serviço. Agora não aumenta?» Não falava só por mim, mas por todos aqueles que também a recebem. Até o Luiz Pacheco, mas esse faz uma barulhada… Deram-lhe a tença para ver se ele se moderava. A mim já me chamou de tudo. Acho que a ideia dele era que eu respondesse. Mas nunca respondi. É mais com ele do que comigo: ele queria que eu fosse um herói. Mas eu não gosto de ir para a cadeia, não lhe fiz o gosto. Acho sempre mais agradável o exemplo do Voltaire: quando as coisas estavam tremidas em Paris, ele agarrava num saquinho com um relógio e ia ter com aqueles príncipes [-eleitores] alemães. Ficava lá na conversa, até que passava a crise… No tempo de Salazar, houve uma glorificação de quem ia preso. E quem era preso era bestial. Eu também estive preso, não por motivos políticos, mas por questões mais sérias…
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Quando é que esteve preso?
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Não quero falar disso, já se falou.
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No documentário Autografia diz, inclusivamente, que não deve nada a este país.
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Ah, pois não…
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E este país deve-lhe muito?
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Não sei se me deve, mas realmente eu não lhe devo nada. A não ser… Sabe que as ditaduras põem as pessoas mais… como é que hei-de dizer?, sabe-se quem é o inimigo. E toda a gente, zás, pancada no inimigo. No caso, era o Salazar. Havia uma grande unidade na oposição, porque ele era o diabo a abater.
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E hoje não se sabe quem é o inimigo?
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Uma vez falando com uma pessoa que foi muito importante na Revolução – não quero dizer quem é, para não parecer que estou a lamber botas – disse-lhe: «Oh, sr. dr. diga-me lá uma coisa, os socialistas não podem, não querem ou não sabem? Uma destas três coisas tem de ser». Não sei se por ratonice política ou espontaneamente ele respondeu-me: «Eu sei, este Guterres foi uma tragédia que nos aconteceu…» Mas eu não falava do Guterres! Falava do socialismo em todo o mundo. Está tudo assim de cabeça ao vento e não se percebe bem porquê… Mas penso que os socialistas não podem, porque há forças contrárias muito grandes…
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Que forças são essas?
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É a direita em todo o lado. Nós somos um apêndice. Já se fala que o Le Pen é capaz de voltar por causa dos véus e não sei que mais…

12.3.09

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[Mário Cesariny, Figuras de Sopro, 1947]

11.3.09

Renovar a Mouraria

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Escadinhas do Marquês de Ponte de Lima (foto tirada daqui)
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A Associação Renovar a Mouraria (ver site e blog) está a comemorar o seu primeiro aniversário, estando por isso de parabéns.
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O programa das actividades, que estão a decorrer durante o mês de Março, pode ser consultado aqui.

9.3.09

O Surrealismo na Fundação Cupertino de Miranda

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[Cruzeiro Seixas, A Grande Refeição, 1972]
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Absolutamente a não perder a exposição sobre o surrealismo que a Fundação Cupertino de Miranda trouxe a Lisboa, à Cordoaria Nacional.
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A exposição é composta por pintura, desenho, fotografia e escultura e inclui todos os grandes nomes do surrealismo português: Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, António Dacosta, Vespeira, Alexandre O'Neill, Fernando Lemos, Risques Pereira, Mário-Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Carlos Eurico da Costa, Isabel Meyrelles, Raúl Perez e muitos outros. Estão ainda na exposição alguns nomes com ligações vagas ao surrealismo, como Paula Rego ou Teixeira de Pascoaes. Podemos ver ainda algumas obras de artistas estrangeiros, como este cadavre-exquis (1936) de André Breton, Greta Knutson, Tristan Tzara e Valentine Hugo:
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A exposição pode ser vista até 29 de Março, de terça a sexta, das 10h às 19h e Sábados e Domingos, das 14h às 19h.

A entrada é gratuita.

4.3.09

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[Carlos Paredes, Os Verdes Anos]

3.3.09

Os Verdes Anos

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Vai passar hoje, às 22h, na Cinemateca, Os Verdes Anos, de Paulo Rocha. Estreado em 1963, este mítico filme foi, juntamente com Belarmino (1964), de Fernando Lopes, e poucos mais, absolutamente revolucionário para o cinema português. Estes filmes definiram uma nova forma de fazer cinema em Portugal, muito influenciada pela Nouvelle Vague francesa, rompendo com tudo o que se fazia por cá até então. N'Os Verdes Anos colaboraram nomes como Nuno Bragança, Pedro Tamen ou Carlos Paredes e teve actores como Isabel Ruth, Rui Gomes, Ruy Furtado ou Paulo Renato.
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Uma vez que não está disponível em DVD, há que aproveitar quando, volta e meia, a Cinemateca se lembra dele.

2.3.09

As letras de João Aguardela

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[de Uma Inocente Inclinação para o Mal, 2008]
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filha de duas mães
adoro vesti-las de igual
tenho andado à tua procura
para te amar
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sobre a mesa posta
sem nenhuma vaidade
ensinar-te-ei meu amor
a praticar a caridade
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nunca direi saudade
ligo pouco ao que se diz
mas não levo muito a mal
a ideia de ser feliz
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_m.r.t.
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Quando saiu o terceiro álbum d'A Naifa, Uma Inocente Inclinação para o Mal, a autoria das suas letras foi atribuída a uma misteriosa Maria Rodrigues Teixeira, cuja existência deixou muitas dúvidas.
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Foi agora divulgado aquilo que já se desconfiava: estas magníficas letras foram escritas por João Aguardela, recentemente desaparecido.

1.3.09

Já está nas livrarias

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A Obra Completa (1969-1985), de Nuno Bragança, em 735 páginas. Edição Dom Quixote.