31.12.09

Alguns livros de 2009

  • A Montanha Mágica, Thomas Mann, Dom Quixote
  • O Homem Sem Qualidades vol. III, Robert Musil, Dom Quixote
  • Os Irmãos Tanner, Robert Walser, Relógio D’Água
  • Cantos de Maldoror, Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont, Antígona
  • Bartleby, o Escrivão, Hermann Melville, Presença
  • Tristessa, Jack Kerouac, Relógio D’Água
  • Silogismos da Amargura, E. M. Cioran, Letra Livre
  • 1 Homem Dividido Vale por 2 / Contraponto, Luiz Pacheco, Biblioteca Nacional / Dom Quixote
  • Dobra – Poesia Reunida 1983-2007, Adília Lopes, Assírio & Alvim
  • Ofício Cantante – Poesia Completa, Herberto Helder, Assírio & Alvim
  • A Perspectiva da Morte: 20 (-2) Poetas Portugueses do Século XX, Manuel de Freitas (selecção e prefácio), Assírio & Alvim
  • Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos, Mário Cesariny, Assírio & Alvim (fac-simile da edição da Contraponto, de 1953)
  • Obra Completa (1969-1985), Nuno Bragança, Dom Quixote
  • Sinais de Fogo, Jorge de Sena, Guimarães
  • Mar Largo, Vítor Nogueira, & etc

30.12.09

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GRÉMIO
para o Manuel de Freitas e o Rui Pires Cabral
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Uma pequena lista de poderosos inimigos.
Uma pequena distracção inaceitável.
O soalho rangia com o peso dos fantasmas
que por mais de cem anos mantiveram este sítio.
E havia o barulho da chuva na varanda
em tempos resgatada à Santa Inquisição.
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Pequenos avisos, nada de específico.
Sim, era preciso defender o grémio
mais antigo de Lisboa. E nós, paz e amor,
ideias lisas como a mesa de bilhar.
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Chegou a época das marés, do cascalho
libertado no mar largo. Treme com a fúria
a melhor varanda de Lisboa, treme com a fúria
a grande rocha em forma de arco.
No fim do túnel, uma câmara de luz,
um sítio perfeito para os tubarões.
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[Vítor Nogueira, in Mar Largo, & etc, 2009]

28.12.09

Sinais de Fogo

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Esgotado há vários anos, chega finalmente às livrarias uma nova edição de Sinais de Fogo, de Jorge de Sena, um dos melhores romances portugueses do Século XX. A editora é a Guimarães, que promete editar a obra completa do autor nos próximos anos.

27.12.09

Isto não é cidade que se respeite

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"Uma cidade que se respeite não permite que um proprietário tenha o seu prédio degradado, a cair, abandonado, com falta de pintura, destelhado, entaipado, em risco de incêndio ou derrocada. Não permite. Ponto.
Uma câmara municipal digna desse nome multa, castiga, reprime o desleixo e negligência de quem for dono de um prédio nessas condições. Se não tiver instrumentos legais robustos para o fazer, exige-os ao Governo da República. Se não o conseguir, tem que se fazer porta-voz da indignação dos munícipes.
O Governo do país tem a obrigação de impedir que os centros das nossas cidades estejam sujos, ocos e cariados. Tem o dever de tornar muitíssimo dispendioso este mau hábito de quem não cuida da sua propriedade urbana. Tem o interesse - num país antigo, peculiar e turístico como o nosso - de garantir que os nossos centros históricos estejam impecáveis.
Não existe o direito de ter um prédio a cair. Tal como não existe o direito de guiar um carro sem travões ou poluente. Não interessa se o compraram ou herdaram. O carro tem de passar na inspecção periódica. O mesmo deveria valer para o prédio: tem de estar em boas condições, ou o proprietário terá de pagar pelo dano e risco que provoca a outrem.
Um prédio decadente faz reverberar o desleixo. Baixa o valor da sua rua ou do seu bairro, incluindo o daqueles prédios cujos proprietários, mais conscienciosos, trataram de cuidar e manter em boas condições. Um prédio a cair representa um risco de segurança para quem ali passa, para o solitário inquilino que às vezes lá resta, para os vizinhos.
A propriedade de um prédio não é coisa que venha sem obrigações. Esse é um equívoco que engendra outros equívocos de todas as partes envolvidas, sem excepção: a ideia de que os exemplos de prédios integralmente ocupados com rendas baixas (cada vez menos) podem servir de desculpa para situações de incúria em prédios praticamente vazios; a ideia de que o Estado pode ser o primeiro proprietário negligente; a ideia de que às autoridades públicas cabe, sempre, pagar toda a factura do rearranjo dos prédios. O Rossio de Lisboa foi recuperado com dinheiros públicos há uma década. Hoje tem prédios com telhados cobertos de folha de alumínio. Lamento, mas isto não é cidade que se respeite."
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[Rui Tavares, Público, 23/12/2009]

20.12.09

“Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.”
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[Bernardo Soares, in O Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, 1998]

17.12.09

“Depois, já se sabe, vieram os gestores editoriais, os directores de colecção, os omnívoros grupos empresariais que vêem no livro uma mercadoria como qualquer outra. Não assim a Contraponto de Luiz Pacheco. Nem a Afrodite de Fernando Ribeiro de Mello, a & etc de Vítor Silva Tavares, as inconformadas deambulações poéticas da Frenesi de Paulo da Costa Domingos. Dir-se-ía, olhando em volta, que o gosto pelo lucro mata o gosto pelo livro; e que são muito poucas, afinal, as singularíssimas editoras que marcaram o século XX. A Contraponto foi uma delas, indubitavelmente.”
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[Manuel de Freitas, in Luiz Pacheco, 1 Homem Dividido Vale por 2 / Contraponto, Biblioteca Nacional / D. Quixote, 2009]

14.12.09

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“E assim é que a Contraponto – paralela a aventuras com a de A Antologia em 58 do Mário Cesariny, a Barca Solar do Ernesto Sampaio, ou da Minotauro do Bruno da Ponte –, até nos seus desaires ou talvez por via deles, deixou sequelas: porque a mais antiga, à cabeça a & etc; mas lembre-se a Afrodite, do Fernando Ribeiro de Melo; chame-se à colação a Frenesi quando frenética e a Antígona quando refractária; a Hiena, os 4 Elementos Editores, a Fenda, a Black Sun; mais perto, a Averno – cometas tracejando luz no negrume editorial. Agindo nos interstícios da engrenagem mercantil, expulsas por mérito próprio de montras publicitárias, encaram o livro tão-só como produtor de mais-valias artísticas e culturais, objecto de uma entrega que funde o risco com a projecção política, diga-se poética – ou vice-versa, também vale.”
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[Vítor Silva Tavares, in Luiz Pacheco, 1 Homem Dividido Vale por 2 / Contraponto, Biblioteca Nacional / D. Quixote, 2009]

11.12.09

Belarmino

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Belarmino (1964), de Fernando Lopes, hoje, às 19.30, na Cinemateca.

9.12.09

Entrevista com Fernando Lemos

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Pode ser lida aqui a entrevista com Fernando Lemos que saiu no Ípsilon (suplemento do Público) da semana passada.

7.12.09

Fernando Lemos na Fundação Cupertino de Miranda

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A fotografia de Fernando Lemos está em exposição na Fundação Cupertino de Miranda, em Famalicão, até 26 de Fevereiro de 2010. São apresentadas 140 fotos, realizadas entre 1949 e 1952, sendo algumas inéditas. A entrada é livre.

29.11.09

Luiz Pacheco: 1 Homem Dividido Vale por 2

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Até 27 de Fevereiro, pode ser vista na Biblioteca Nacional a exposição "1 homem dividido vale por 2", com cartas, postais, folhetos, textos avulsos, livros editados e muitos outros materiais de Luiz Pacheco. O catálogo, editado pela Dom Quixote, estará à venda a partir de 7 de Dezembro.

20.11.09

Luiz Pacheco: a entrevista à Visão em 2005

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Em 2005, a propósito do lançamento de Diário Remendado 1971-1975 (Dom Quixote), Pedro Dias de Almeida entrevistou Luiz Pacheco para a Visão (nº 652, de 1 de Setembro). Deixo-a aqui:
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GUERREIRO PACHECO
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Há três anos que não sai do 1º piso do lar da Liga dos Amigos dos Hospitais, no Príncipe Real, em Lisboa. Mas, 80 anos cumpridos, Luiz Pacheco resiste e enfrenta o mundo com os argumentos de sempre: humor, ironia, desassombramentos, inconveniências, liberdade. O libertino, esse, ficou para trás. Os textos inéditos de Diário Remendado 1971-1975 revelam mais sobre um percurso único na história da literatura portuguesa.
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Como companhia recente, Luiz Pacheco tem um novo rádio – «desses chineses, com leitor de CDs». Mas por enquanto só tem dois discos: um de Bach outro de Stravinski. Na rádio gosta de ouvir as entrevistas da TSF e Antena 1 e a música da Antena 2. Como os seus olhos pioram «de dia para dia» e não lhe permitem saídas nem leituras, é a essa máquina, e às conversas com amigos e familiares, que vai buscar uma ligação ao mundo. Nem sequer a janela – com vista, de esguelha, para o Tejo – lhe devolve o entusiasmo pela vida da cidade. Mas, calma, que Pacheco não é dado a saudades, nostalgias – e, muito menos, a arrependimentos. Nas páginas de Diário Remendado 1971-1975 (Publicações Dom Quixote), nas livrarias na próxima semana, uma das obsessões do escritor, editor e tradutor (além da literatura, do sexo, amizades e inimizades...) é a sistemática falta de dinheiro para pagar a renda da célebre «casa de Massamá» no fim do mês. Como se vê nesta entrevista, Luiz Pacheco não mudou assim tanto nestes 30 anos...
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VISÃO: Quando lê estes fragmentos da sua vida em forma de diário reconhece-se ali?
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LUIZ PACHECO: O pior é que não leio, aí é que está a gaita! Já não vou ler nada disso... Isto que vai ser editado é um fragmento, porque o diário começou no dia 1 de Janeiro de 1970, estava eu no Hospital de Santa Marta. Passavam-se semanas em que eu não escrevia nada, depois quando me dava para escrever, escrevia. E nunca lia o que estava para trás. Por vários acasos, há uns três anos, uma senhora de Coimbra trouxe, a meu pedido, uma parte do diário, fotocopiada e passada à máquina. Já não lia muito bem – mas lia melhor do que hoje – e estive aqui a desfibrar... Quando havia uma coisa que me chateava, ou que não tinha interesse nenhum, cortava o dia todo, logo. Reduzi aquilo a duas partes. O meu filho entregou as duas à Dom Quixote e tenho a impressão que meteram no livro bocados da parte que eu cortei... O que não tem grande mal.
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Mas admira esta personagem, o Luiz Pacheco no início dos anos 70?
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Oh pá, há coisas que acho bem, mas há outras que acho muito mal. Tinha nessa altura um problema sério que era o alcoolismo. Estive duas vezes internado no Júlio de Matos e uma vez em Coimbra – desintoxicação a sério, com tratamento. Saía, e estava assim uns meses sem beber, e depois recomeçava. É claro que isto me foi cansando. Mas eu também não bebia bebidas muito finas. Whisky bebi uma vez ou duas, não gosto nada, bagaço fazia-me muito mal, de maneira que era o chamado tintol da taberna e a cerveja. Não são bebidas muito alcoolizadas. É claro que não comendo, e estando a tomar drogas, como o Valium e outras porcarias, havia dias em que não gravava nada, há muitos dias em que não me lembro de nada. Nada. Mas não foi mau de todo, não foi mau de todo...
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Tem saudades desses tempos da «casa de Massamá»?
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Não é saudades, mas eram outros tempos... Tinha menos uns anitos bons. Em Massamá tivemos períodos com muito pouco dinheiro, e a gente ia-se mantendo... Porque era um pessoal, de facto, muito resistente. Havia ali um ambiente de camaradagem, de despreocupação e maluqueira, isso havia. Vivia com o meu filho Paulo. Tentei arranjar para lá um casal, ou dois ou três, para haver uma senhora que fizesse de mãe do Paulo, para ele ter um bocado de companhia.
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O Paulo é, aliás, quem aparece mais neste livro...
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O Paulocas é o pivô do livro. Eu aluguei a casa de Massamá para evitar que ele fosse para a Casa Pia. O [Carlos] Manaças não queria que o miúdo ficasse lá em casa mais tempo... E eu tive que vir à Casa Pia, aqui no Bairro Alto, para autorizar a ida dele, mas lá onde devia assinar a autorização escrevi: «Não quero o meu filho na Casa Pia», e fui-me embora, muito satisfeito! Aluguei então a casa, de quatro assoalhadas, só paredes, sem água nem luz nos primeiros tempos. A água e a luz ainda era como o outro, havia uns truques... Agora a renda era implacável, e era muito alta: um conto e trezentos.
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Arrepende-se muito de alguma coisa que fez, ou que não fez?
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Isso não vale a pena, não vale a pena porque é inútil. Recordo algumas coisas e penso: olha que maluqueira! Mas não me vou arrepender. Isso não me diz nada. O que dá é isto: às vezes estou para aqui a fazer um balanço e a testar a memória, para ver como é que ela está. Começo a dizer os nomes dos reis todos, com as alcunhas, ou o nome dos rios afluentes do Douro e do Tejo... Na minha vida às vezes também penso, e estou aqui a comentar coisas que fiz e que foram um disparate, algumas maldades, claro que fiz algumas...
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Da fama não se livra...
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Ah, isso sei eu... Mas não as sabem todas, não as sabem todas! Tenho uma fama danada. Simplesmente, a fama não me irrita nada. Houve agora um filme aí [Luiz Pacheco, Mais um Dia de Noite, com realização de António José de Almeida]... Eu recusei-me a ver, porque não vou agora desmentir o que eles lá dizem. Chamei àquilo filme-cangalheiro: morte minha e aquilo ia logo nessa noite para a televisão! Mas há para lá muita aldrabice. Recusei-me a ver antes e agora... Mas chegam-me cá os ecos, as marés. Não será de propósito, mas há lá pessoas que também já estão com a cabeça um bocado... O Mário Soares é mais velho do que eu.
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E vai candidatar-se à presidência...
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Pois é, ainda bem. Acho isso muito giro. Eu vou votar no gajo. Ele não vai candidatar-se se tiver muitas dúvidas sobre o resultado, não vai arriscar... E é um bom adversário para o Cavaco. O Manuel Alegre pode ser um grande poeta, bom tribuno e um gajo muito giro, com pinta, mas não tem o prestígio nem o conhecimento de anos e anos de governação do Soares. E o Soares tem muito cuidado com a saúde. Depois de almoço está sempre meia-hora a dormir. É muito cuidadoso. Se formos a ver aquilo como bravata é giro, acho graça, acho graça...
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Como é que olha hoje para a sua família, para a sua descendência? É uma espécie de lastro anárquico que deixou na Terra...
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Também não é tão caótico assim. E não estão mal... Que eu saiba estão todos bem. Há um filho de quem eu não sei nada que é o nº 3. O nº 4, que é o Luís Zé, o que foi educado na Casa Pia, está bem, casado, com dois filhos, está nos seguros... Outra foi para África, depois foi parar à Turquia, casou lá, não faço ideia nenhuma do que é feito dela... Ela nunca veio aqui. Alguns nunca vêm cá. E os que vêm não vêm cá muito, de mês a mês, nos anos... Estão ocupados, não é? E eu também já estou em lares há muito tempo, desde 1996 acho eu. Mas eles dão-se bem. Nesse aspecto foi um bom êxito porque é possível que tivessem más recordações de infância – e tinham mesmo. Mas vá lá, vá lá, não foi tão mau como isso...
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E bisnetos, já tem?
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Não. Tenho uma bisneta que é uma cadela, porra! Porque agora a moda não é ter filhos, é ter cães. A minha neta mais velha, do Montijo, filha do João Miguel, comprou uma cadela siberiana, branca, aliás muito bonita, comprou-a por 60 contos ou não sei quê... Não tenho bisnetos, mas podia ter. É a pílula... Não há mão nos filhos quanto mais nos netos. Os pais que os aguentem...
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A sua vida mais libertina e aventurosa teve muito mais vitalidade nos anos do Estado Novo do que depois do 25 de Abril... É só uma questão de idade?
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Não sei... Mas essa vida de libertinagem era um pouco anti-Estado Novo, era um bocadinho uma forma de reagir ao País que tínhamos. E a bebedeira, também era um bocado isso. Não sei... Não me deu para isso, talvez. E depois um gajo vai amolecendo. Eu já era muito livre antes da liberdade do 25 de Abril.
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Lendo este Diário Remendado dá ideia de que as suas preocupações pessoais o fizeram passar um bocado ao lado do fervilhar político e ideológico do pós-25 de Abril...
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Isso é verdade, é verdade. Mas eu quando vinha a Lisboa a alguma coisa, uma manifestação ou assim, não ia escrever... Mesmo o texto do 25 de Abril foi escrito bastante depois do dia – toda a gente andava a contar «o meu 25 de Abril», aquilo meteu- -me raiva, e também fiz «o meu 25 de Abril»! Limitei-me a contar aquilo que se passou: foi um dia em que saí à rua para beber uma cerveja, estava a rever provas, e o meu barbeiro viu-me na rua e disse-me «Ó Sr. Pacheco, venha cá ouvir a rádio, há revolução em Lisboa!». E, tal como estava, lá fui para Lisboa. Estive no Carmo, depois fui atrás do chaimite que levava o Marcelo – foi uma multidão que foi atrás, andava lá feito massa, inteiramente pateta... Aquele entusiasmo com a mudança do regime, para mim quebrou logo no próprio dia 25, ou 26, quando vi a Junta de Salvação Nacional. Quando vi as caras daqueles gajos... O Rosa Coutinho e o Pinheiro de Azevedo, tinham um ar apagado mas simpático, mas depois o Costa Gomes, o Spínola e o Galvão de Melo, um nazi chapado, e um Neto qualquer que tinha vindo de Angola... Nesse momento caíram-me um bocado os tomates aos pés. Aquele cartel não tinha saída, como de facto não teve. E tudo me parecia uma estupidez: o País não ia mudar por causa de uma merda aqui no Carmo, o País não muda assim de um dia para o outro. Ainda hoje, não mudou tanto como isso. Às vezes parece que há uns golpes de mágica e tudo muda, mas não é realista...
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O funeral de Álvaro Cunhal marcou-o?
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Não. Não quis estar a emocionar-me com isso. Mas se fosse lá tinha-me emocionado, com certeza. É uma reacção natural... Uma coisa que ainda me emocionou foi o enterro dos ‘Tarrafalistas’, os gajos que tinham morrido no Tarrafal, que saíram numas urnas pequeninas da Sociedade Nacional de Belas-Artes para o Alto de São João, num cortejo cheio de gente... Já foi há muito [1978]. Ainda estou inscrito no PCP, tenho as quotas em dia. Mas nunca estive com o Cunhal. O Cunhal não era o tipo de pessoa que se encontrasse a passear no meio da rua. Não era fácil de encontrar...
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E o Nobel da literatura para Saramago deixou-o feliz?
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Com certeza que sim. Fiquei. Aí a raiva de muita gente não foi contra o escritor – que não lêem – nem foi contra o próprio Saramago – que não conhecem de parte nenhuma –, foi contra o comunista que ganhou o Nobel. E também contra o gajo que ganhou cento e tal mil contos! Inveja em estado puro. Eu fiquei muito satisfeito, mesmo. Nem é questão de saber se escreve bem ou não. O Saramago não é um grande escritor. Mas o Nobel não é um prémio literário: premeia a carreira, uma obra, com aspirações sociais. Pode não ser um grande romancista mas é um tipo pessoalmente muito correcto, muito a sério. Lidei com ele no Diário de Lisboa e era de uma correcção como é raro encontrar nos jornais.
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Sacrificou muitas vezes o seu conforto, a sua vida pessoal, em nome da literatura. Hoje sente orgulho por isso?
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Não... Tenho é a vantagem de receber um subsídio mensal. Ou nem podia estar aqui. Hoje recebo 120 contos, é o máximo que dão. E isso devo-o um bocado ao Santana Lopes, é verdade. Quando foi secretário de Estado da Cultura, a Maria João Duarte dizia-lhe muitas vezes que eu tinha um subsídio muito pequeno, e escreveu n’A Capital a dizer isso... O Santana Lopes prometeu que ia pensar no assunto, se podia fazer alguma coisa. E fez, isso é que foi o grande espanto! Na altura não agradeci nada. Mas quando saiu aquela edição bonita da Comunidade mandei-lha para a Figueira da Foz e ele mandou-me uma carta a agradecer. E o Soares também não me deu só 20 paus, como parece que diz no filme, deu-me 650 contos, que é muito dinheiro. E ele não fala disso, podia falar e não fala.
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Como é que gostava de ser recordado na história da literatura portuguesa?
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Como editor é importante. A parte de produção é muito pequena... Um artigo num jornal pode ter impacto nesse dia, mas publicado, em livro, anos depois, já perdeu muita da sua força. Tenho a Comunidade, o Libertino (é um bocado o efeito da Casa Pia ao contrário...), o Teodolito, que acho que é o meu melhor texto... E a razão principal da publicação deste diário agora é porque eu preciso de dinheiro. Estou a pagar aqui no lar uma coisa chamada «mil euros» – mais as fraldas que me põem à noite, e os medicamentos que são caros. E não recebo isso por mês. Tenho que ter umas bengalas...
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Como é a sua vida aqui?
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Estas casas são uma espécie de quartel e de hospital, têm horários, têm turnos, comida muito igual e muito aldrabada... Um dia de manhã fui ali ao jardim [Príncipe Real] e senti-me muito maldisposto não sei porquê, e tiveram que me ir lá buscar de cadeira de rodas. Nunca mais saí. Isso já foi há uns três anos. Nem vou lá abaixo ao rés-do-chão. Estou aqui isolado do ambiente do lar, que não é um ambiente muito elegante... Eu é que já devia estar habituado... Mas é um ambiente pavoroso, só velhos e velhas – e chatos! Quer dizer, isto não estimula nada. Não os querendo ver não vou lá, que eles também não vêm cá. A questão da vista e do ouvido é que é mais pior.
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Qual é, hoje, o seu maior prazer?
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É o arroz de pato, uma vez por mês, mais ou menos. E bem feito! É um prato que tem aí muita fama. O que é que esta gente pode desejar de melhor?

19.11.09

Arquitectura-pimba

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O mono de Troufa-Real que está a nascer no Restelo.

18.11.09

Tomás da Fonseca

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"o livro mais anticlerical de sempre, que desmonta e denuncia a grande e espectacular mentira de Fátima, humilhando a Igreja e a padralhada em geral"
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[Luís Oliveira, editor da Antígona]

16.11.09

Recordações da Casa Amarela

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A não perder hoje, às 19.30, na Cinemateca, Recordações da Casa Amarela, de João César Monteiro.
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Aqui ficam os minutos iniciais do filme:
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13.11.09

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AVÉ AVÔ CESARINY
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Um homem solitário a caminho da praia +
o bulício das intrigas de café +
uma conversa desconexa +
uma fórmula minimal repetitiva +
um sub-real encadeante +
quezílias imorais sociais –
1 poeta e pintor feliz =
Avé Cesariny, positivo e negativo
poetoupeira lasciva
debochado dada
abissalmente graficomposto
agoniado ou bem disposto
lacónico animal subterrâneo
roupa suja para lavar em máquina eclética.
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[Tiago Gomes, in Viola-me Eléctrica, Fenda, 1998]

12.11.09

Manuel Hermínio Monteiro

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Vai passar hoje, às 21.30, na Cinemateca, o documentário de André Godinho sobre Manuel Hermínio Monteiro.
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Entretanto deixo aqui uma conversa de Herminio Monteiro com Rodrigues da Silva, publicada no Jornal de Letras nº 565, de 4 de Maio de 1993:
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UM BICHO DA TERRA
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Dirige a Assírio & Alvim, fala como um poeta e acha que há quem leia de mais… e pense de menos. Vive em Lisboa e o mundo é o seu livro. Mas o seu universo é o campo. Lá longe, em Trás-os-Montes
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Tem 40 anos, mas diz que nasceu no século passado. É Manuel Hermínio Monteiro, o responsável editorial da Assírio & Alvim, e esta de ter nascido no outro século justifica-a ele porque a aldeia donde é natural (Parada do Pinhão, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real), ficava, na altura, tão longe da civilização que dos meninos se dizia, não que eram trazidos pela cegonha, nem que vinham de Paris, mas… do Porto.
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Hermínio, primogénito de uma família de quatro irmãos («quando casaram, a minha mãe tinha dezasseis anos, o meu pai dezassete, e a seguir nasci eu»), passa toda a infância na aldeia, no seio de uma comunidade rural que só na década de sessenta vai assistir à chegada do primeiro automóvel e do primeiro rádio. Hermínio, quanto a ele, o comboio (a vapor) vai vê-lo apenas quando o levam à estação mais próxima (Abambres), para, com mudança na Régua, ir sozinho a caminho do Porto e daí rumo a Arouca, onde, como interno, irá frequentar o Colégio dos Salesianos.
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Tem agora 11 anos de idade, vê pela primeira vez o mar, mas dessa infância de outro século guarda a memória de avós volframistas, gratas recordações e uma fidelidade à terra que ficará para a vida inteira: «Ouvia as histórias dos velhos, divertia-me nos arraiais; hoje percebo que tudo aquilo correspondia a uma cultura autónoma, mas extraordinariamente rica. Não havia homem que não tocasse vários instrumentos, no mínimo gaita de beiços; fazia-se muito teatro, havia festas, representações. Depois, a guerra colonial, a emigração, com a circulação do dinheiro, e, daí a nada, a televisão foram desagregando culturalmente estas comunidades. Isso reflecte-se na construção civil, por exemplo, e no salve-se quem puder».
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A ida para os Salesianos, para, em princípio, ser padre, terá sido o salve-se quem puder do Hermínio? Ele acha que não, que, mais do que uma subida social, os pais, camponeses pobres, viam nisso uma fuga à claustrofobia rural. Só que, no seu caso, a essa claustrofobia outra se iria suceder, a do colégio, sediado como era num convento fundado por D. Mafalda, irmã de D. Afonso Henriques. «Aquilo era medonho, cheio de silêncio e de sombras» – diz ele. Os avós, esses, do neto diziam: «Coitado do nosso menino, a viver sem lume nem vinho».
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Adeus juventude
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Feito o 5º ano do liceu, Hermínio muda-se para o Porto, para, como externo, frequentar o Colégio Almeida Garrett. Dois anos sem história, a menos que a história, num certo sentido, comece aqui: «Vi-me a fazer trabalho social ligado à Igreja. Sou crente, respeito as religiões todas, mas não me revejo na Igreja Católica actual, uma estrutura de poder. Nessa altura, porém, era um campo de acção». Como – acrescenta – as Associações de Estudantes, mais tarde, em Lisboa, cidade aonde Hermínio iria aportar, para frequentar a Faculdade de Direito («eu gostava de poesia e como, nas selectas literárias, os poetas de quem eu gostava eram todos formados em Direito… foi Direito que eu escolhi»)
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A escolha revelar-se-ia absurda, mas traria Hermínio do Norte que é seu («sou completamente transmontano») para uma Lisboa, onde, de início, se sentirá de passagem («nas casa onde vivia, tinha sempre as coisas embrulhadas, à espera de me ir embora; como o imigrante que sabe que um dia há-de voltar ao local de origem»).
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De passagem embora, Hermínio, na capital, continuará a descobrir o mundo. Nem sempre a melhor parte dele. Como irá contar: «Por causa do trabalho nas Associações de Estudantes fui preso pela Pide e levei muita porrada. Depois, como era refractário à tropa, fui parar a Caxias e fiquei uma semana isolado numa cela. Seria solto no Carnaval de 1974, mas, com a prisão, acabou a minha juventude e o período lírico das comunidades onde vivia».
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Do Carnaval de 1974 ao 25 de Abril foi um passo. Um passo que Hermínio iria dar no direita volver do serviço militar, como soldado raso. Com o 11 de Março de 1975, contudo, o soldado Hermínio, colocado, com o seu metro e oitenta e tal de altura, na Polícia Militar, irá viver o PREC em todo o seu esplendor: «Fui eleito para a Assembleia Democrática da Unidade e levava aquilo tudo muito a sério. Se o Exército era para o povo, não podia andar abandalhado. Muitas vezes, na PM, diziam que eu era simpático, mas um bocado reaccionário, porque, com esse sentido de tolerância que aprendi com os velhos da aldeia, achava que era preciso parar para pensar».
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Com o 25 de Novembro, o PREC parou de vez e Hermínio, devolvido à vida civil, pensa regressar a Trás-os-Montes, Mas não regressa. Ligado à Assírio & Alvim, como vendedor, já desde antes do 25 de Abril, na empresa irá continuar. E, na Universidade, troca Direito por Letras, em cuja Faculdade irá concluir o curso de História, tendo como colegas Elísio Summavielle, Nuno Ribeiro, Pedro Borges, António Eloi, Jorge Pulido Valente. De professores recorda outros tantos: Cláudio Torres, Rui Rocha, Vítor Wladimiro Ferreira, Manuel Rio de Carvalho, Piteira Santos.
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Com o canudo debaixo do braço e a média de 16 valores, Hermínio é convidado para assistente. Recusa, para dar aulas, sim, durante meia dúzia de anos, mas no ensino secundário, e sem deixar a editora. Guarda boa recordação dos alunos, não tanto da escola como instituição: «As escolas deviam ser centros de ética. Quanto à História, seria preciso humanizá-la».
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Não só a História (ou o seu ensino), mas tudo o resto – diz Hermínio a cada passo. Assim ou destoutro modo: «Sou incapaz de sobrepor os livros à amizade e acho mesmo que há pessoas que lêem de mais. Deve-se ler o essencial e ter tempo para reflectir, para gerir as ideias novas. A cultura tem de ser uma coisa orgânica e a leitura tudo menos um “passe-vite”. Ora há por aí indivíduos que se estudam uns aos outros como se estivessem num campo de batalha. A vantagem da minha biografia é perceber que há gente analfabeta que tem uma relação equilibrada com aquilo que a rodeia, gente sábia, afinal».
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A «phala» da Assírio
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Qual a sabedoria de Hermínio, como editor? Ele não diz, refere apenas que «apesar da crise», a situação é «desafogada». Paga a horas, não tem dívidas, o resto é o segredo do negócio, um negócio que dá emprego fixo a treze pessoas.
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E à parte isto? À parte isto, há o principal: um projecto editorial que se procura coerente e do qual ele é o rosto visível. E o intérprete: «Tentamos fazer um traço da cultura deste século ao nível da edição. Um traço que vem de Pascoaes e de António Patrício, passa pelos heterodoxos do Modernismo e da Presença, o Ângelo de Lima e o Edmundo Bettencourt, depois pelos surrealistas, a poesia dos anos 60 até à melhor da mais recente, recuperando, pelo caminho, praticamente toda a gente de “O Tempo e o Modo” da primeira fase. Em suma, editamos quem não pertence à estética e à cultura dominante, com ênfase na Poesia».
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«A Phala», a revista da editora, integra-se neste projecto. E na visão que Hermínio tem da vida. No editorial do número, escreve ele, criticando a política cultural do Governo: «Gostaríamos que os livros e os seus conteúdos deixassem de ser para nós apenas uma trincheira». Isto porque o húmus principal da sua actividade vai ele próprio buscá-lo ao contacto com os outros, poetas em especial: «O editor que só consulta catálogos, cava a sua ruína, a menos que só edite best sellers para ganhar dinheiro. É preciso ouvir as pessoas, ter vivências».
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Vivências – o título que Hermínio escolheria para o seu primeiro livro… se o publicasse, e seria de poesia. Mas (para já?) não o publica. Actividade paralela por actividade paralela, tem agora o partido que está a ajudar a fundar: o Partido da Terra. Recusa-se, contudo, a ser político («sou de esquerda, mas nunca pertenci a partido nenhum»). No fundo – diz – «com isto queremos dar oportunidade a independentes de concorrerem às eleições. Emprestamos-lhes a sigla».
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A sigla e uma filosofia segundo a qual «o essencial» está por construir. E o essencial – diz Hermínio – é «o lado mágico da vida, o sentido poético das coisas, a ligação ao cosmos do que há de mais válido no Homem, a solidariedade. Sem isso, a sociedade em que vivemos não passa de um vime soprado ao vento».
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E o vento sopra lá fora, ouve-se no escritório da Assírio, nesta manhã de Abril. E chove também, a bom chover. «Que raio de dia» – desabafo. Hermínio, responde: «Deixa chover, que faz falta no Alentejo e lá para cima no Norte». Pensava eu que estivera a falar com um editor, vai-se a ver e, de princípio ao fim, ele revelara-se o que é e sempre foi: um bicho da terra.

9.11.09

Ruas da Amargura

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Ruas da Amargura, belíssimo documentário de Rui Simões sobre os sem-abrigo de Lisboa, está agora em exibição nas Amoreiras e em Alvalade.

4.11.09

A Comédia de Deus

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A Comédia de Deus (1995), de João César Monteiro, hoje, às 22h, na Cinemateca.

2.11.09

Nas livrarias

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Embora ainda se encontre a edição da Fenda, com tradução de Pedro Támen, a Antígona lançou uma nova tradução dos Cantos de Maldoror de Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont. O tradutor é o poeta Manuel de Freitas e o prefácio é de Silvina Rodrigues Lopes.

30.10.09

DIZIAS QUE GOSTAVAS
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Dizias que gostavas de poemas.
Escrevi-te, numa tarde, mais de cinco.
São muito bonitos, disseste,
hei de mostrá-los ao meu namorado.
Nunca mais confiei nos versos
nem no gosto feminil.
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[José Miguel Silva, in Vista para um Pátio Seguido de Desordem, Relógio D’Água, 2003]

27.10.09

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"Era nesta posição que estava quando o chamei, tendo-lhe explicado em poucas palavras o que queria que fizesse - nomeadamente que examinasse comigo um pequeno documento. Imaginem a minha surpresa, melhor, a minha consternação, quando sem se mexer do seu recanto, Bartleby, numa singular voz branda e firme, retorquiu:
- Preferia não o fazer!
Durante um bocado, deixei-me ficar sentado em perfeito silêncio, tentando recuperar as minhas aturdidas capacidades. De imediato me ocorreu que poderia ter sido traído pelos meus próprios ouvidos ou que Bartleby fizera uma interpretação absolutamente errónea do meu pedido. Repeti o pedido com o tom de voz mais claro que fui capaz. Mas, de forma igualmente clara, veio a anterior resposta:
- Preferia não o fazer."
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[Hermann Melville, in Bartleby, o Escrivão, Presença, 2009]

26.10.09

Nunca fodi. Mas não me importo de morrer sem ter fodido. Apaixonei-me. E ninguém por quem eu me tenha apaixonado se apaixonou por mim. Acho horrível uma pessoa foder sem estar apaixonada. Acho horrível uma pessoa nunca se ter apaixonado. Acho que é o pior que pode acontecer a uma pessoa. Não é nunca ninguém se ter apaixonado por nós. É tão horrível alguém apaixonar-se por nós e nós não podermos corresponder. As paixões desencontradas é como as cabeças trocadas.
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[Adília Lopes, in Dobra – Poesia Reunida 1983-2007, Assírio & Alvim, 2009]

24.10.09

A PERFEIÇÃO? A VIAGEM?
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Eva fica sozinha
com as maravilhas
artísticas do mundo
de que lhe servem
as maravilhas
artísticas do mundo
sem os filhos
e sobretudo sem Adão?
Deus e as maravilhas
artísticas do mundo
não lhe chegam
parte a loiça
da dinastia Ming
bate com a porta
(uma porta maravilhosa)
e chora os mortos
o seu sofrimento
não tem leitor
a menos que Deus a leia
mas para que lhe serve Deus
sem Adão?
Não se suicida
(para quê?)
continua a chamar
Eva precisa de Adão
para se dar bem com Deus
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[Adília Lopes, in Dobra – Poesia Reunida 1983-2007, Assírio & Alvim, 2009]

22.10.09

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Eu quero foder foder
achadamente
se esta revolução
não me deixa
foder até morrer
é porque
não é revolução
nenhuma
a revolução
não se faz
nas praças
nem nos palácios
(essa é a revolução
dos fariseus)
a revolução
faz-se na casa de banho
da casa
da escola
do trabalho
a relação entre
as pessoas
deve ser uma troca
hoje é uma relação
de poder
(mesmo no foder)
a ceifeira ceifa
contente
ceifa nos tempos livres
(semana de 24x7 horas já!)
a gestora avalia
a empresa
pela casa de banho
e canta
contente
porque há alegria
no trabalho
o choro da bebé
não impede a mãe
de se vir
a galinha brinca
com a raposa
eu tenho o direito
de estar triste
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[Adília Lopes, in Dobra - Poesia Reunida 1983-2007, Assírio & Alvim, 2009]

16.10.09

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[Cruzeiro Seixas, A Paisagem Exteriormente/A Paisagem Exterior Mente, 1973]

14.10.09

Paulo da Costa Domingos

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Narrativa, o mais recente livro de Paulo da Costa Domingos, é hoje apresentado na Trama, com leitura de excertos pelo autor, por Jorge Fallorca e por Nuno Moura. É às 22h.

13.10.09

LOUCA DO BAIRRO
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Tolhida, rebusca entre as caricas um sentido
que escorra, final,
de todas as garrafas que mataram
a sede
aos habitantes do bairro.
Traz laços coloridos no cabelo
e defeca com decência no passeio
onde cagam vigiados os cães da vizinhança.
Do seu nariz agudo, nem a rainha do Sabá
saberia falar a Salomão.
Na testa alta, azeitonada, alberga uma ciência
da distância.
Não olha para ninguém, nem mesmo para os pássaros
que com ela dividem o mesmo alô
de sombra solitária.
É verão e tem consigo o frio
do mundo.
Casacos, roupões de luxo
e uma estola traçada pelos desvarios
do tempo.
Não foi, é uma grande senhora,
esta teatral louca do bairro.
E o seu silêncio impõe nobreza tal
que os rapazes da droga lhe trazem do café
rissóis roubados ou um pouco de leitura
aristocrata.
Tolhida como um ícone, mantém uma beleza
doente.
E não há poema, prosa, melífula voz de incenso,
que a faça flutuar na brancura da tarde
Onde o sol reina, indiferente.
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Ela não precisa de tais luzes.
Na sua face enevoada brilha um deus.
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[Armando Silva Carvalho, in Lisboas, Quetzal, 2000]

12.10.09


[Chaim Soutine La Folle, 1919]

8.10.09

Será assim tão complicado?

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“Uma cidade são cafés e esplanadas, ruas cheias de movimento, lojas bonitas, lojas abertas fora do horário, transportes públicos de qualidade, variedade da população, imigrantes integrados, jovens moradores, parques e jardins, ruas arranjadas, bicicletas e transportes alternativos, estacionamento adequado, moda de rua, livrarias com cafés lá dentro, restaurantes e bares, museus e bibliotecas, exposições e concertos, teatros e clubes, propostas exóticas e ambiente protegido. Uma cidade tem de ter um jardim em cada bairro, população jovem, crianças e velhos, alegria nas ruas, pequeno comércio, oferta cultural, carros afastados do centro. […]
Em vez de mais planos megalómanos e estratégias o que Lisboa precisa é de micromanagement. Serviços decentes, transportes ‘verdes’, proibição de mais centros comerciais e condomínios privados, atracção da população jovem, recolha e reciclagem do lixo, plantação de árvores, incentivos aos novos empresários e comerciantes, regulação do mercado de habitação e escritórios, arquitectura integrada, responsabilidade dos moradores e proprietários no governo dos bairros. Substituir os carros de vez. Será assim tão complicado?”
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[Clara Ferreira Alves, Única (suplemento do Expresso), 12-09-2009]

6.10.09

Clara Ferreira Alves: a Lisboa pimba

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"Já não passeio a pé em Lisboa, porque os carros são tantos que corro o risco do atropelamento ou da intoxicação com dióxido de carbono. Ou será monóxido? Não interessa, respiramos fumo de escape. Ao fim da tarde, o bairro onde moro tapa os ouvidos por causa da sinfonia cacofónica de buzinas e motores a arrancar na grande marcha em direcção à auto-estrada. Durante o dia, alarmes de carros tocam desvairados, e o trânsito nunca pára o seu resfolegar de animal selvagem e enfurecido. O bairro perde a pouco e pouco a vida de bairro, os arrendamentos comerciais substituem os de habitação, não há onde estacionar, o pavimento tem buracos das chuvas e os preços aumentam por causa da fidalguia dos escritórios. Os escritórios andam povoados por meninos e meninas de fato completo de risca e saia-casacos pregueados, camisas e gravatas que discutem com avidez saldos e percentagens por entre duas trincadelas ao almoço, e cujos patrões, ou os serviçais deles, despejam na rua toneladas de lixo de papel que fica a voar todo o dia e ao fim-de-semana. Os caixotões da reciclagem, a transbordar, nunca são despejados, e parecem vir de um Terceiro Mundo a lembrar ao Primeiro que a Câmara tem mais que fazer. A sujidade da rua onde moro só diminui com a limpeza oficial das bátegas do Inverno, e amontoa-se no Verão, deixando no ar um odor a pó e fruta podre. Resiste o Jardim das Amoreiras, belo, sapiente, que os velhos e as crianças frequentam com medo de atravessar as ruas para lá chegar. Os carros, dentro e fora, acima e abaixo, ignoram-nos e quase os atropelam, e vejo muitas vezes no olho esgazeado do ancião, o terror de não conseguir chegar ao outro lado. As passadeiras têm carros em cima, os passeios têm carros em cima e as pessoas têm carros em cima. Nunca consigo escutar o som do silêncio. E já não vejo o rio, cada vez mais caro. Como dizem os agentes imobiliários: com vista de rio são mais dez mil contos.

Lisboa pertence, agora, a duas espécies de gente: os turistas e os suburbanos. Para os turistas, raça mais alegre, Lisboa alinda-se, constrói elevadores, ergue hotéis e patamares, pinta a cara de fresco. Para os suburbanos, raça mais tristonha, Lisboa constrói parques de estacionamento e centros comerciais. A cidade, esventrada e desfigurada, destruída e voltada do avesso, abre-se para acolher os carros, sempre mais carros, para as pessoas poderem andar pelo “centro histórico” como quem anda dentro de um centro comercial. O Camões, o Terreiro do Paço, a Praça da Figueira, o Rossio das minhas deambulações de outrora, perdem-se entre tapumes, canos à mostra, pedregulhos e desalinho, obras inacabadas, passos perdidos, e o fantasma de Pessoa desertou o Cais do Sodré, atormentado pelo ruído dos caterpillars e os bares e restaurantes da moda. Lisboa moderniza-se, desenvolve-se, enriquece, abastece. Abastarda-se. Estaciona-se. Parece que querem destruir as árvores do Príncipe Real, e fazer um estacionamento subterrâneo. Não posso acreditar! E até o Patriarcado, li algures, vai prudentemente explorar um parque de estacionamento no Alto do Parque Eduardo VII, ao lado do Corte Inglês. Lisboa fica a ter mais um shopping para passear aos domingos.

Lisboa envelheceu mal, e fez o lifting errado. Gorda, inchada e rica, toda orgulhosa das suas lojas de luxo ao Chiado, enquanto vai matando os cafés e poluindo as fachadas dos prédios com placas dos bancos e caixas Multibanco. A decadência e a pobreza espreitam nos intervalos e rasgões no pano do novo-riquismo, e muita desta arquitectura ostensiva, mastodôntica e sul-americana no porte e na forma, contribui para dar à cidade o tom de uma Caracas melhorada.

Nos dias de chuva, quando o sol deixa de iluminar a fisionomia urbana, Lisboa mostra a sua face hedionda, o seu abandono, o seu desordenado plano. Sem habitantes por dentro, cheia de escritórios e assalariados que dela saem ao fim do dia, Lisboa não tem uma cultura de bairro e de comunidade, não tem uma Baixa, não tem um lugar de encontro e de passeio. Sem querer ser como as cidades italianas, Lisboa poderia ter tido, ao menos, a preocupação de não destruir a sua qualidade meridional. Lisboa amontoou-se em equívocos urbanísticos e projectos metropolitanos de dinheiro fácil. E os cidadãos de Lisboa, estirados, poluídos, desarranjados, não a amam nem a estimam. Despejam com gestos bruscos os cinzeiros dos carros nas ruas, enchendo o passeio de beatas, e deixam à porta saquinhos de supermercado com lixo, que nunca, oh nunca, cabem nos contentores camarários. Num dia de feriado, que seja pardo e de aguaceiro, Lisboa é lixo e cicatriz, é solidão e decrepitude, é melancolia e neurastenia. O sol não a liberta do Sentimento de um Ocidental. Lisboa repassada dos versos de Cesário Verde, sem a grandeza poética e sem o destino entrevisto no horizonte. Soturna e cheia do absurdo desejo de sofrer.

Eu detesto esta Lisboa moderninha e apressada, desumanizada, que vai expulsando o passado e os seus habitantes e construindo casas estrangeiradas, modas importadas, blocos de cimento, grandes superfícies. A cultura do automóvel matou Lisboa, e o condomínio fechado sobrepõe-se à arquitectura do bom-senso. É uma Lisboa pimba, um folheto de publicidade, um jogo da Lego.

Podia ter sido tudo tão diferente."
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[Clara Ferreira Alves, in Cidadania e Qualidade de Vida Contra a Exclusão, BE, 2001 (texto completo aqui)]

2.10.09

Pedro Ornelas: porque é que Campo de Ourique funciona e outros bairros não?

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"porque é que Campo de Ourique funciona e outros bairros não? Arrisco algumas hipóteses.
Primeiro, Campo de Ourique é suficientemente pequeno para ser percorrido a pé, e suficientemente grande para ter uma população apreciável (mais de 25 mil habitantes, se incluirmos a freguesia de Sta. Isabel). Esta 'massa crítica' é essencial para que os atributos da vida urbana funcionem -- anonimato qb, possibilidade de cada um ter a sua vida sem ser controlado, de encontrar potenciais amigos/as, namoradas/os com quem nos identifiquemos. É também essencial para viabilizar um comércio variado, que num bairro mais pequeno teria dificuldade em subsistir por falta de clientes. E o facto de poder ser facilmente percorrido a pé confere unidade ao bairro.
Segundo, Campo de Ourique tem um centro relativamente bem definido, um vago quadrilátero centrado no Jardim da Parada e que vai até às ruas principais Ferreira Borges e Saraiva de Carvalho. Ou seja, uma zona de sociabilidade mais activa, onde há todo o comércio que é preciso e que propicia o estabelecimento de relações.
Terceiro, o bairro obedece ao tradicionalíssimo esquema de malha ortogonal com quarteirões, com uma relação razoável entre a altura dos edifícios e a largura das ruas, e com o comércio estabelecido nas lojas dos prédios. Até prova em contrário, esta é a melhor forma urbana até hoje inventada.
Quarto, Campo de Ourique demarca-se facilmente do resto da cidade, sem que, ao mesmo tempo, haja uma descontinuidade. E é razoavelmente bem servido de transportes, embora não tenha metro (no entanto, interrogo-me se a ausência do metro não terá contribuído para manter o carácter residencial e evitar a terciarização que aflige outras zonas da cidade).
E pronto. Não me parece que haja grande mistério no sucesso de Campo de Ourique. Foi um bairro bem planeado, é tudo. O triste é que parece evidente que o urbanismo da segunda metade do século XIX era muito melhor que o de hoje."
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[Pedro Ornelas, O Céu Sobre Lisboa, 21-11-2005]

1.10.09

Miguel Sousa Tavares: o elogio de Campo de Ourique

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"Um bairro para viver tem de começar assim: com um mercado que é uma festa para os sentidos, um regresso aos sabores e aos cheiros que nos educaram. Campo de Ourique começa assim e continua depois, com tudo aquilo que faz deste bairro quase um milagre de espaço urbano perfeito: ruas largas, onde se passeiam casais, carrinhos de crianças e empregados no intervalo do almoço; comércio tradicional e personalizado, com algumas lojas ainda conhecidas pelo nome dos donos - a florista, o cabeleireiro, a loja de comida feita, o electricista, o oculista, a loja de ferragens, a papelaria-tabacaria, a casa das fechaduras, a loja de surf; e os cafés, com esplanadas conquistadas ao passeio e ao Millenium-BCP, com os seus quiosques de jornais cujos donos nos conhecem já tão bem que os dias nem sequer começariam sem o bom-dia deles. Campo de Ourique tem tudo isso, mais o jardim central, os seus pequenos restaurantes de culto, os seus excêntricos ou loucos já familiares a todos. Outras coisas felizmente não tem e muito do prazer de andar nestas ruas deve-se a essas ausências: prédios em altura e de fachadas preconceituosas, porteiros e seguranças de prédios, polícias de trânsito a tentar tornar a vida impossível. Aqui funciona como que uma auto-regulação da via pública, com um sentido natural de comunidade, em que ninguém se mete com os outros e toda a autoridade se torna dispicienda graças ao respeito mútuo pela liberdade de cada um.
[...]
Pensando na explosão de ódio e de revolta que agora se vive à roda das cidades francesas, naquelas comunidades inteiras de populações imigrantes que não se sentem ligadas cultural e afectivamente aos locais onde vivem, que vêem o bairro como uma prisão e a rua como um terreno de confronto, dou-me conta até que ponto Campo de Ourique (não sei se por gestação espontânea, se porque alguém planeou e previu bem as coisas) é um bairro modelar, em termos de integração social interclassista e intergeracional, de justo equilíbrio entre comércio, serviços e habitação, entre espaços públicos e privados. E, afinal, este tão raro exemplo de harmonia e qualidade de vida urbana não precisa de nenhuma grande construção de referência, nenhuma urbanização de encher o olho, nenhum centro comercial (antes pelo contrário, o segredo é não o ter), nenhuma piscina municipal nem pavilhão gimnodesportivo, nenhuma rotunda com canteiros e estátuas pseudomodernas, enfim, nada que encha o olho e que mostre dinheiros públicos ou fortunas privadas. Apenas bom senso, sentido de equilíbrio e proporção humana. Depois, as pessoas fazem o resto: andam na rua sem pressa nem atropelos, param para conversar à porta das lojas, saúdam-se nas esquinas, passeiam as crianças, os velhos ou os cães, namoram ou lêem o jornal nas esplanadas, almoçam a horas certas na sua mesa de sempre dos seus pequenos restaurantes, numa palavra, vivem a cidade, não se limitam a sofrê-la ou a passar por ela. Certamente que aqui também há gente triste, sozinha, com vidas terríveis. Mas, pelo menos, a rua não os agride: conforta-os, distrai-os e, acima de tudo, dá-lhes um sentido de pertença a uma comunidade - que hoje é coisa tão rara e tão preciosa numa cidade, como o são o peixe, a fruta e os legumes do mercado de Campo de Ourique.
Sei que este texto pode parecer um bocado absurdo, no meio desta eterna agitação em que vivemos. Mas trata-se de uma dívida de gratidão para com o "meu" bairro, que eu precisava de saldar um dia. E também, já agora e aproveitando a oportunidade, trata-se igualmente de um apelo que faço a quem manda e a quem pode: por favor, não estraguem Campo de Ourique! Não é preciso muito: basta não fazerem nada."
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[Miguel Sousa Tavares, Público, 11-11-2005]

30.9.09

José Vitor Malheiros: os passeios de Lisboa

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"Não sei exactamente há quanto tempo, mas já foi há anos a primeira vez que um automobilista me buzinou, a mim, peão, para que eu me afastasse do lugar onde estava (de pé no passeio, na Praça do Areeiro, em Lisboa) porque ele, automobilista, queria estacionar o seu carro ali, onde eu estava parado, no passeio. Eu estava no caminho, a atrapalhar, e ele deu um toquezinho de buzina, só para me avisar que ele queria ir para ali, precisamente para aquele sítio onde eu, peão, estava, no passeio, a atrapalhar.
A partir daí, as coisas não pararam de... como dizer?... de "evoluir"?
Os carros foram invadindo os nossos passeios, em geral estreitos, em geral esburacados, já ocupados selvaticamente por sinais de trânsito, caixas da EDP, semáforos, postes de electricidade, candeeiros públicos, sinalizações diversas, caixotes de lixo, parquímetros, etc.
A esmagadora maioria dos nossos políticos nunca deu por isto - incluindo os presidentes das câmaras - porque há muitos anos que não anda a pé. Têm motoristas com ordens para não respeitar os limites de velocidade porque eles estão a tratar de coisas importantes que não podem esperar. Andar a pé é para os pobres e eles, graças a Deus, não são pobres. Ou já não são - graças a Deus. Fica bem dizer na televisão que vão "devolver os passeios aos peões" mas no fundo nem sequer percebem qual a necessidade, porque afinal os peões conseguem contornar os carros ou ir para a estrada se for preciso, não é? É verdade que os velhos têm menos mobilidade, mas mesmo esses até ficam mais bem servidos (os políticos dizem "melhor servidos" porque já não são pobres mas a educação nem sempre fica muito bem colada às meninges) se andarem na estrada pois toda a gente sabe que a calçada "portuguesa" se gasta e fica escorregadia.
[...]
A "evolução" dos carros no passeio levou a que, há dias, um amigo meu tenha sido atropelado. Atropelado por uma camioneta quando estava... no passeio.
A camioneta estava estacionada no passeio (parece que era um sítio mesmo bom, à sombra e tudo), decidiu fazer uma manobra e zás, atropelou o meu amigo, que teve de receber tratamento no hospital.
Há vários pormenores picantes: um deles foi o comentário de um dos ocupantes do camião, que disse ao atropelado que a culpa tinha sido dele porque estava distraído no passeio (de facto, estava a tirar uma fotografia). O outro é o facto de a camioneta, de uma empresa privada, estar ao serviço da Câmara Municipal de Lisboa quando teve lugar o acidente."
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[José Vitor Malheiros, Público, 28-10-2008]
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foto do Cidadania Lx

29.9.09

Casa da Achada

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Começa hoje a semana de abertura da Casa da Achada - Centro Mário Dionísio. Programa completo aqui.

28.9.09

Está a chegar

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Dobra, a poesia reunida de Adília Lopes, na Assírio & Alvim.

25.9.09

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[Raúl Perez, sem título, 1988]

23.9.09

Quando um pobre nos quer lamber as botas, devemos ou não untá-las previamente?

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“A coisa passou-se num ponto de Hábitos Suíços. O Doutor escreveu no quadro os dados do problema:
«Quando um pobre nos quer lamber as botas, devemos ou não untá-las previamente?
Em caso afirmativo, justifique a resposta.»

Como eu estava sentado ao lado do melhor aluno, decidi aproveitar esse acaso para lhe perscrutar as qualidades racionais: fingindo escrever, olhava de soslaio o ponto dele. Não tardei a ficar completamente absorvido pelo que aquele fedelho magro ia transportando dos miolos para o papel. Lembro-me perfeitamente, era assim:
1.1 Se o pobre me lambe as botas, espera que eu espere isso.
1.2 Se eu untar as botas com nada, o pobre pode pensar que eu sou ou
distraído ou
desconhecedor dos costumes ou
desprezador da miséria.
1.3 Qualquer destes três pensamentos pode fazer zangar o pobre, ou seja, levá-lo a cometer algum pecado.
1.4 Para impedir o pobre de pecar é pois necessário untar as botas que ele vai lamber.
2.1 Se eu untar as botas com qualquer dos produtos com que habitualmente elas se untam, o resultado pode ser idêntico ao de 1.2, com as nefastas consequências de 1.3.
2.2 Visto que devo untar as botas com um produto que me atrevo a chamar
não-botoso, há que saber se este deve ser salubre ou insalubre.
2.3 Se o produto foi insalubre, o pobre pode apanhar uma doença e morrer. Ora, não se deve matar pobres, porque cada um deles representa esmolas possíveis, quer dizer Boas Acções. Como dizia o Poeta, «os pobres são os degraus da escada que conduz os ricos ao Céu.»
2.4 O produto deve, portanto, ser salubre, a fim de preservar a saúde dos pobres, a qual é a garantia físico-química da salvação dos ricos.
3.1 Se o produto foi muito salubre, isso pode ter as seguintes consequências:
3.1.1 robustecer demasiadamente o pobre;
3.1.2 atrair um numero excessivo de pobres à lambedela.
3.2 A consequência 3.1.1 é de evitar, porque um pobre muito robusto decide-se a deixar de ser pobre, o que é um mal pela razão apontada em 2.3
A consequência 3.1.2 também é de evitar, pelo mesmo motivo e ainda porque, quando o número de pobres lambedores aumenta muito, a paciência do rico lambido diminui bastante.
3.3 O produto deve, pois, ser moderadamente salubre, até porque a moderação é a principal qualidade a exigir a um pobre.”

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[Nuno Bragança, in A Noite e o Riso, 4ª ed., Dom Quixote, 1995]

17.9.09

Alexandre O'Neill: a entrevista ao Jornal de Letras em 1982

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Fernando Assis Pacheco entrevistou Alexandre O'Neill para o Jornal de Letras em 1982 (nº 36, 06-07-1982). Aqui fica:
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ALEXANDRE O’NEILL: “SEMPRE ‘SOFRI’ PORTUGAL”
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«Portugal / meu remorso» – é ele a falar do País. «Eu queria um jàzinho que fosse / aquijá / tuoje aquijá» – é também ele. Alexandre O’Neill, 57 anos, diante do seu fantasma, o tempo. Trinta anos de versos estão reunidos em volume e o «JL» quis ouvir este lisboeta com nome de aristocrata irlandês, recuperado de uma «panne» onde todas estas coisas mais doem, que é no coração.
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«Sempre ‘sofri’ Portugal», diz Alexandre O’Neill ao «JL» nesta breve – porém laboriosa: já lá vamos – entrevista com o pretexto na publicação das suas Poesias Completas. O sofrimento deve entender-se, acrescenta o autor de Feira Cabisbaixa, «tanto no sentido de não o suportar como no de o amar-sem-esperança», fórmula onde se descobriria, arrisca o poeta ecoando velhos versos parnasianos, um intenso, verdadeiro amor.
Foi Vasco Graça Moura que o convenceu a reunir a obra poética. Trinta anos de escrita, do Tempo de Fantasmas a As horas já de número vestidas, com exclusão apenas daquilo que O’Neill arruma formalmente sob a designação de ‘crónicas’. Mas dá-se o caso de as Poesias Completas incluírem precisamente alguns textos elaborados de raiz para jornais e que ao entrevistador pareciam resolver-se como prosa. Também sobre isso fala Alexandre O’Neill. Que entretanto, anfitrião simpático, irá buscar ao frigorífico uma garrafa de água mineral sem gás – ele não bebe bebidas alcoólicas – e pedirá a Laurinda, na hora de esta chegar a casa, «ora arranja lá um chá para nós três».
A casa é na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa, a curta distância desse Jardim do Príncipe Real que entrou por direito próprio na poesia de O’Neill. Paredes recamadas de estantes, e estas ajoujadas ao peso de livros: a poesia em força, mas também artes visuais, antropologia, política, religião, enciclopédias. Uma aparelhagem de alta fidelidade do lado esquerdo do estirador-secretária. Máquina de escrever «HCESAR». Cinzeiros. Luz sem excesso.
Entro às 10 da noite e saio quatro horas depois. A última hora, porém, gastamo-la a ouvir Laurinda contar como foi um ‘show’ de José Afonso em Oeiras e a comentar a ‘gaffe’ de dois jornais brasileiros que aqui há semanas deram Octávio Paz por morto.
A entrevista fez-se com duas máquinas de escrever: o repórter do «JL» batia a pergunta, tirava a folha, estendia-a ao entrevistado, este batia a resposta, perguntava «está bem?», o repórter respondia «está, claro», e assim por diante.
Para a ficha do poeta: 57 anos de idade, lisboeta, redivorciado, dois filhos, um matulão, Alexandre, outro pequeno, Afonso; trabalha na Lápis – Estudos Promocionais, Lda., à Travessa da Condessa do Rio; andou pela TV como ‘pivot’ de vários programas e jurado da infausta Prata da Casa, que deu mosquitos por cordas; é tão bom conversador como sovina nas respostas dactilografadas, o que se perceberá lendo a continuação; sempre ‘sofreu’ Portugal, e sempre se gastou à velocidade de um fósforo, e sempre foi vítima de nervosos miudinhos; tudo junto, (en)fartou-se e poisou o canastro na UTIC de Santa Maria, a reparar avarias cardíacas; recuperado, ri com os dentes todos.
Começámos assim:
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«Surrealismo? Está tudo contado»
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«JL» – reunir trinta anos de poesia tem algum significado especial para si? Digamos, sente-se etiquetado, arrumado, com um bilhetinho por cima a dizer «trinta anos»?
Alexandre O’Neill
– De modo nenhum! Trinta anos é apenas para passar para outra coisa. Para dizer a verdade, estava farto de tudo o que tinha escrito até à publicação destas Poesias Completas. Você sabe o que é conviver demasiado com o que se vai fazendo, não sabe?
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P. – Calculo o que seja. Agora falando de biografia: você é de Lisboa, é um O’Neill Vahia de Bulhões (cheira-me a Santo António, desculpará) e no dizer do Cesariny em 1945, «no Café ‘A Cubana’, da Avenida da República», travou conhecimento com ele ou ele consigo. Essas aventuras surrealistas ainda têm alguma coisa que valha a pena contar? Dá-me a impressão de que vários surrealistas portugueses quiseram rasurar, a partir de certa altura, o nome «Alexandre O’Neill». Responde a esta longa pergunta?
R.
– Houve um especialista em hagiografia e, particularmente em Santo António, que me disse, para grande desgosto meu, que essa de o Santo se chamar Fernando de Bulhões era uma grande lenda. Claro que não me revelou o verdadeiro nome, de modo que eu continuo a aguentar a lenda e a dizer que sou… parente do Santinho, o que me dá uma certa audiência junto das devotas que conseguem uma especial atenção do referido (e simpático!) milagreiro… Quanto às aventuras surrealistas está tudo contado, precisamente pelo Cesariny, que deve ter um baú quase tão grande como o do Pessoa. A rasura deveu-se à circunstância de eu ter abandonado a actividade grupal do surrealismo para me dedicar à política, calcule você! À política, mas naquele sentido estrito da militância nos movimentos juvenis por onde já o Cesariny tinha andado. Depois, ao publicar o primeiro livro, introduzi-lhe uma nota proeminal que demonstrava o fervor ridículo de todos os neoconvertidos e que dava pancada nos surrealistas ficantes chamando-lhes aventureiros, o que era perfeitamente desnecessário…
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P. – Exacto, e os que você apelida de «ficantes» mandaram cá para fora um papel basto feroz intitulado Do Capítulo da Probidade. Parecia tudo, pois, uma família com as partilhas feitas. Mas em 1961 na Antologia surrealista do cadáver esquisito, para espanto dos observadores, o Cesariny não esteve com mais aquelas e antologiou-o mesmo. Dá para entender?
R.
– Dá, dá! O Cesariny não me cita uma única vez no Surreal-Abjeccionismo, que é de 1963, mas já me inclui na Antologia, que você refere porque eu ajudei muito (e com muita honra!) a fazer cadáver.
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O advogado falhado
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P. – Passemos a outra família, a sua. Nos Poemas com endereço o O’Neill escreve: «Estou no murmúrio de desgosto da minha família / da minha família imóvel diante de mim / (…) / da minha família espiando amorosamente ferozmente os meus mínimos gestos / pronta a saltar-me em cima a reduzir-me / a mais um da família.» O jovem poeta foi mal aceite? Ou foi aceite, mas em transe pejorativo?
R.
– A minha mãe (que já lá está, coitada!), quando apanhava um poema meu – melhor seria dizer versinhos – rasgava-o logo. Provavelmente com a intenção caritativa de fazer de mim o oitavo advogado da família dela, de me transformar num causídico, como se dizia lá por casa (casa onde estive só até aos 16 anos). No fim da vida, já sentia um certo prazer em ser a mãe do poeta O’Neill, mas eu fingia que não a percebia, quando a questão era abordada…
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«Vá de metro, Satanás!»
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P. – Profissionalmente você está – para mim, que o conheço há uma dúzia de anos, sempre esteve – metido nas publicidades, sendo considerado inclusive um óptimo «copy-writer». Passe por cima do adjectivo «óptimo» e diga-me rapidamente o que é isso do «copy-writer», pode ser?
R.
– Pode. Ser «copy-writer» é uma actividade engraçada pelo lado da invenção de «slogans», por exemplo. Só é chata quando o cliente não percebe as nossas intenções e acha que está tudo mal. O jeito para o jogo de palavras, trocadilhos, etc., vive comigo há muito tempo e tem-me prejudicado razoavelmente na poesia, embora agora já esteja melhorzinho. Eu descobri a publicidade através do cinema publicitário. Propus uma vez a alguém (por brincadeira, claro) que oferecesse um «slogan» ao Metropolitano de Lisboa. O «slogan» era: «Vá de metro, Satanás!» Esta brincadeira ia-me custando o emprego. Mas também fiz um, a sério, que foi muito conhecido e ainda hoje é usado (que pena não o ter registado!): «Há mar e mar / há ir e voltar.» Os bêbados pegaram logo nele, o que é uma verdadeira consagração: «Há bar e bar / Há ir e voltar…»
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«Quandonde foi?»
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P. – De vez em quando o O’Neill aparece a colaborar em jornais. Para mim é uma complicação, porque eu tendo, numa primeira leitura, a ler «crónicas» onde não havia nada disso, mas poemas. Por outras palavras, dessas pretensas crónicas há algumas lançadas nas próprias Poesias Completas, como poemas em prosa. Ajuda-me a descalçar este escarpim?
R.
– Dê cá o pé! O que acontece é que eu não sou, a bem dizer, um cronista. Escrevo (ou escrevia, melhor) textos para os jornais que, depois, reconheço, muito naturalmente, como textos poéticos. Então incluo-os nos livros. Nem todos, claro. Há uns que não ultrapassam o efémero da crónica. Outros, que lhe podem parecer prosaicos, são (ou melhor, serão) poemas em prosa, digamos, que é muito diferente da prosa-prosa. E também me posso enganar ou apressar, e tomar por poema o que não é…
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P. – Eu diria, socorrendo-me aliás de leitores mais atentos do que eu, que você tem um tema dominante, Portugal (a Feira cabisbaixa aparece em italiano, na versão de Joyce Lussu, como Portogallo, mio rimorso, e muito bem), e um fantasma omnipresente, o tempo (cá vai uma de O’Neill entre aspas «Quandonde foi? / quandonde será? / / eu queria um jàzinho que fosse / aquijá / tuoje aquijá»). Concorda?
R. –
É verdade. Sem pieguice, digo-lhe que sempre sofri Portugal, tanto no sentido de não o suportar (como todos nós, aliás), como no sentido de o amar-sem-esperança (como disse um parnasiano qualquer: amar sem esperança é o verdadeiro amor…). Eu tive a grande alegria de ver poemas meus completamente desactualizados depois do 25 de Abril. Mas afinal não estavam nada desactualizados, não. Como se pode ver. Quer dizer – o que é um péssimo sinal relativamente à minha capacidade para vaticinar – que a realidade fez de mim, novamente, um poeta actual. Até no fantasma do tempo a que você se refere. Espero que isto um dia acabe e eu fique bem desactualizado e para todo o sempre.
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Herdeiro de…?
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P. – Quando se começa com o jogo do acerta é fatal: O’Neill herdeiro de Nicolau Tolentino e do abade de Jazente (quando não de Junqueiro, mas essa já eu não levo a sério). Em 1982, repetido o dito até à exaustão, que pensa você? Um tolentinista, um jazentista?
R.
– Nem herdeiro de um, nem de outro. A minha excelente prefaciadora diz que tanto o Tolentino como eu temos em comum fazermos uma poesia do feio. Mas se tudo é feio à nossa volta, por que havia precisamente de ser o Tolentino a inculcar-me o feio? Quanto ao Jazente, há uma coisa que pouca gente sabe: eu conheço perfeitamente Padornelo, o Marão (o do lado de cá) e aquela paisagem é-me bem familiar. Familiar no sentido exacto: a minha família materna é de Amarante, o concelho de que Padornelo é freguesia (ou era).
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P. – Eu por acaso, ao ler agora as Poesias Completas, fui outrossim sensível à insistência com que você refere os espanhóis, do Século de Ouro (Lope, Góngora) ou contemporâneos (António Machado). E também vi claramente visto como o O’Neill se entusiasma – exagero meu? – com brasileiros com o Manuel Bandeira ou o João Cabral de Mello Neto. Resultado: a sua família poética é um bocado mais complexa do que se tem escrito. Estou a sair dos carris?
R.
– De modo algum. Lope e Góngora sempre gostaram um do outro através de mim… Machado é um poeta que releio constantemente, tanto na poesia como na prosa. É um universo. E gosto dele em boa parte pelo que tem de «velho» (isto demoraria muito tempo a explicar, mas um dia sempre explicarei). Bandeira só é grande poeta menor, como disse a minha amiga Luciana Stegagno Picchio, para quem estiver distraído. Mello Neto é um velho amigo e um altíssimo poeta (sem saída aparente, diga-se). Não se esqueça que eu fui o curador da edição da «Quaderna» em Portugal, que se não foi a 1ª foi a 2ª do livro.
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A morte, essa trivialidade
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P. – Morreu agora um dos seus «amigos pensados», o Belarmino Fragoso. Boxeou com ele? Hm… Conheceu-o bem, suponho. Como era?
R. –
Não conheci. Foi o Fernando Lopes que me pediu um poema para o programa de lançamento do filme «Belarmino». Sei que o Belarmino leu o poema e achou que eu era maluco…
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P. – E eu à espera de um perfil com luvas! Essa, O’Neill, é um «uppercut» na barbela! Bom, não o maçando mais, sempre queria saber como reagiu você quando o levaram, faz anos (poucos, creio), à UTIC do Hospital de Santa Maria com uma «panne» cardíaca. «É trivial a morte»? (in Abandono vigiado)
R.
– Quando se está com «panne» cardíaca o universo mingua e um sujeito «desliga». Passa para a categoria de «bom doente» para ver se salva o canastro, mas não tem propriamente medo. Só tem medo que se enganem nos remédios e lhe enfiem os que são para algum vizinho… De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta a casa, se sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à normalidade. Nem com um jornal na mão se pode andar. Nem se pode caminhar contra o vento. Nem… Nem… Nem… Até que um dia um sujeito se sente de repente melhor que novo e recomeça a fazer asneiras…

15.9.09

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INTERVENÇÃO

Antigamente, tinha demasiado respeito pela natureza. Punha-me à frente das coisas e das paisagens e deixava-as estar.
Acabou-se, a partir de agora intervirei.
Estava em Honfleur e aborrecia-me. Então, decididamente, pus lá camelos. Pode não parecer o mais apropriado. Não interessa, era essa a minha ideia. De resto, executei-a com a maior das prudências. Comecei por introduzi-los nos dias de grande afluência, ao Sábado, na praça do Mercado. O engarrafamento tornou-se indescritível e os turistas diziam: «Ah! Fede que tresanda! Que porcas são as pessoas aqui!» O cheiro chegou ao porto e começou a competir com o dos camarões. Saía-se da multidão cheio de pó e de pêlos e não se sabia de quê.
E, à noite, só queria que ouvissem o som das patas dos camelos quando eles tentavam passar pelas comportas, gong! gong! gong! no metal e nas tábuas!
A invasão dos camelos fez-se com continuidade e determinação.
Já se começava a ver os Honfleurenses a semicerrarem os olhos a toda a hora com aquele olhar desconfiado tão característico dos cameleiros quando inspeccionam a caravana para ver se não falta nada e se podem seguir caminho; mas tive de sair de Honfleur ao quarto dia.
Lancei também um comboio de passageiros. Partia a toda a velocidade da Grand’Place, e avançava decididamente para o mar sem se importar com o peso do material; deslizava em frente, salvo pela fé.
Foi uma pena ter de me ir embora, mas duvido muito que a calma volte rapidamente àquela pequena cidade de pescadores de camarões e mexilhões.
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[Henri Michaux, in Antologia, Relógio D’Água, 1999]

10.9.09

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[Giorgio de Chirico, Ariadne, 1913]

7.9.09

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A minha Preguiça
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… Seja o que oxalá quiser.
Da última vez que esbocei parir umas palavritas sobre a preguiça – não o geral da preguiça mas o particular da minha – foi-se-me o instante de graça, risquei, amachuquei o papel, arremessei-o, fumisquei cigarro, levantei-me, saí à rua, virei à esquerda e depois outra vez à esquerda, segui em frente e às tantas cá estava eu num banco do Alto de Santa Catarina a contemplar os barcos no Tejo singrando com tempo e sem pressa rumo ao cherne da Ode Marítima. Fica para depois. E se depois vazio no besunto, ou lá onde seja, também não há morte de homem. Esta vida são dois dias e este já ninguém mo tira. Deixo pois para amanhã o que não me apetece, ou não posso, ou desisto fazer hoje. E se amanhã continuar a não me apetecer, não bater o oxalá à porta para entrar, paciência. Não me forço a formiguinha ladina – até vai contra os meus princípios, se é que os tenho assim, tão exclusivos. É quase de letargia o meu estado natural, este pulsar do sangue como o fluxo das águas do Tejo. São pausadas, beatíficas, voluptuosas as minhas preguiças. O tempo fica meu amigo. Então não o pressiono, ele não me pressiona, damo-nos como deus com os anjos.
Se há coisa que aprendi (sem esforço – será preciso dizê-lo?) nas minhas deambulações africanas, foi justamente o modo como me relacionar com o tempo. Tive primeiro que descobri-lo – cá pelas exauridas, decadentes europas, a noção de tempo é pautada pelo ditame “time is money”, ou seja, pela neurótica imposição do económico –, depois, pouco a pouco, vi-me a desacelerar até que me encontrei sintonizado com o seu esplêndido fluir, eu dentro dele, ele dentro de mim, ali, naquele espaço que apeteceria chamar de “coração do mundo”, ancho, generoso, pulquérrimo, não fora a incomensurável ganância dos predadores humanos. De tudo o que por lá vivenciei, não recordo um único momento de frenesi ditado pelo relógio. Por mais de uma vez, e sem literaturas a baralhar-me o espírito, deparei com a morte a olhar para mim, face a face – e achei natural que tivesse chegado o tempo de desocupar o espaço do meu corpo e dissolver-me no tempo já não meu. Aprende-se muito com momentos assim.
Regressado ao berço, fechado o ciclo, permaneço resguardado das pressas – até daquelas em que, ai de mim!, por vezes me vejo envolvido.
Como na conhecida anedota, até gostarei de trabalhar – mas domino-me. Ele há preguiças bem mais criativas que a língua de fora do trabalho atlético.
Quanto tempo demorei a esgalhar isto? – Sorte a minha, nem dei por ele. Sou mesmo um preguiçoso a tempo inteiro, Uau!
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[Vítor Silva Tavares, in P.R.E.C. (Pensa, Rosna, Estica, Corta) nº1, 2006]

4.9.09

Bairro do Arco do Cego

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Foi lançada uma petição que pretende a reabertura do processo de classificação do Bairro do Arco do Cego, que o IGESPAR arquivou, deixando em risco este importantíssimo conjunto arquitectónico dos anos 20 e 30.
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É este o texto da petição:
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O Bairro Social do Arco do Cego, construído entre 1919 e 1935 à base de alvenaria mista, reboco pintado, cantaria de calcário, estuque, ferro forjado e madeira, e gizado pelos Arquitectos Edmundo Tavares, Adães Bermudes e Caetano de Carvalho em 45 quarteirões rectangulares segundo eixo ortogonais, é um dos exemplos mais bem conservados da construção social em Lisboa, denotando uma certa arquitectura de cariz ecléctico, de que relevam, arquitectónica e funcionalmente, o antigo Liceu D. Filipa de Lencastre, da autoria do Arq. Jorge Segurado, e as escolas primárias que o ladeiam -centro nevrálgico do Bairro -bem como as praças fronteiras à alameda central da Av. Magalhães Lima, bem arborizadas, e respectivo mobiliário urbano, de que se destacam as elegantes colunas de iluminação, típicas das Avenidas Novas.
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Estas características, aliadas ao facto da esmagadora maioria do edificado, embora apresentando algumas alterações de pormenor, mantinham, e mantêm, as características arquitectónicas, volumétricas e estéticas, ao tempo da construção do Bairro, levaram a que fosse aberto no IGESPAR um processo de classificação do Bairro Social do Arco do Cego, processo que teve despacho de abertura em 27 de Março de 2007 e que decorreria conjuntamente com a classificação individual do antigo Liceu D. Filipa de Lencastre.
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Tal facto pressupunha uma mais-valia para o Bairro: todo o projecto de alterações, ampliação e/ou demolição que fosse submetido à CML só poderia ser aprovado se tivesse como propósito a conservação do edificado e/ou a reposição de materiais e morfologia do mesmo, para os casos em que, pontualmente, tivesse já havido alterações significativas.
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E assim foi até 18 de Junho de 2009, altura em que o Conselho Consultivo e a Presidência do IGESPAR acordaram no arquivamento do processo de classificação, alegando «banalização» das classificações e impotência perante a instalação de empresas nas vivendas «periféricas» da Av. México e Av. António José de Almeida, facto que acarretou alterações significativas na morfologia das mesmas. Pelo facto, o IGESPAR deixa aberta a possibilidade da CML proceder, ou não, à classificação do Bairro como Imóvel de Interesse Municipal.
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Por acharmos que as justificações apresentadas pelo IGESPAR não colhem, e porque recearmos que o arquivamento agora decidido corresponde, a breve trecho, à delapidação efectiva de um importante legado arquitectónico e social da cidade de Lisboa, pela “via verde” que o mesmo possibilita aos promotores imobiliários, e aos proprietários menos esclarecidos, para desenvolverem projectos de alterações profundas e demolições no edificado, solicitamos:
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1. Ao IGESPAR, a REABERTURA do processo de classificação do Bairro Social do Arco do Cego como Imóvel de Interesse Público.
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2. À CML, à semelhança do que foi feito para o Bairro Azul, a ABERTURA, com carácter de urgência, do processo de classificação do Bairro Social do Arco do Cego como Imóvel de Interesse Municipal.

2.9.09

Henry Miller e Anaïs Nin

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Sucedem-se este ano as (re)edições de Henry Miller: depois de Trópico de Câncer, Trópico de Capricórnio, Dias Tranquilos em Clichy (todos na Presença) e Sexus (Asa) chega agora a correspondência entre Henry Miller e Anaïs Nin, com o título Cartas de Amor, numa editora que desconhecia, a Caleidoscópio, e uma nova tradução, de Tiago Marques. No entanto penso que ainda é possível encontrar a edição do mesmo livro (com o título Cartas a Anaïs Nin), da Difel, também com a introdução de Gunther Stuhlmann, mas com tradução de Manuel João Gomes.
É bom ver Miller a regressar às livrarias, mas é pena que não seja de forma mais cuidada (as capas destes 5 livros são, sem excepção, pavorosas) e em editoras mais interessantes...

1.9.09

Os filmes de João Bénard da Costa

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Durante os meses de Setembro e Outubro, a Cinemateca vai homenagear João Bénard da Costa, passando cerca de 30 dos seus filmes preferidos. Os filmes de Setembro podem ser consultados aqui.

24.8.09

Al Berto: a entrevista à Ler em 1989

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A propósito do lançamento de Lunário (Contexto, 1989, reeditado posteriormente pela Assírio & Alvim), Francisco José Viegas entrevistou Al Berto para a Ler nº 5 (Inverno de 1989). Deixo aqui a entrevista:
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Al Berto é um nome indispensável na poesia portuguesa contemporânea. Publicou recentemente Lunário, ficção (na Contexto). E fala da noite, da vida das gerações, da paixão.
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Alberto Pidwell Tavares nasceu há mais ou menos quarenta anos, o que não tem muita importância para o facto de o conhecermos por Al Berto – nome do autor que em 1988 recebeu o prémio do PEN Clube de poesia pelo conjunto da sua obra, publicada sob o título de O Medo (Contexto Editora). E nome, também, do autor de uma vasta obra poética onde encontramos títulos como À Procura do Vento num Jardim de Agosto (1977), Meu Fruto de Morder, Todas as Horas (1980), Trabalhos do Olhar (1982), Três Cartas da Memória das Índias (1985), Salsugem (1985) ou esse notável e belíssimo livro que é Uma Existência de Papel (1985), entre outros muitos textos publicados ou inéditos, em português ou em francês. Viveu fora do país entre 1967 e 1976. Por ele passam as referências de uma geração (e é tão estranho falar de geração a propósito de Al Berto) que não encontra neste reino as suas referências ou as usas circunstâncias. Eterna e crepuscular meditação sobre a amizade (de que nos falam alguns dos poemas de Uma Existência em Papel: «eis o retrato do meu único amigo / a quem tudo revelo / o que me cresceu no coração» ou a tentação de «nomear-te / para recomeçarmos juntos a vida toda»), sobre o desaparecimento, a fuga, a pureza, a impureza, o excesso e o ser tão rara e simples a vida, a obra de Al Berto confronta-se, também, com os lugares de um caminho por onde passam referências à Beat Generation, ao que resta de algumas das tradições dos anos sessenta, a um vago lugar mediterrânico onde existe a voz do conforto e da limpidez de tudo.
Polémica, controversa, a sua figura de escritor é agora chama à autoria de Lunário, sua primeira experiência no domínio da ficção, ou do romance, que também o leva a sair de Sines, onde habitualmente vive.
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Vamos começar por uma espécie de banalidade: este é um romance ou um texto sobre o desaparecimento ou a perda. De valores, de sentidos, de pessoas…
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– A ideia da perda é uma ideia vaga, que nos dá a certeza de estarmos vivos. Vamos criando uma memória, ao longo disto tudo, deste caminho. Ora, a memória é a prova dessa perda. Que é o que é a vida.
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A vida é só perda?
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– Não, claro que não é. Tanto não é, que as personagens do livro têm relações entre eles e com pessoas de fora do seu grupo. Nem eu próprio sei se é só perda. Se calhar é. Há uma coisa neste livro que, depois de o reler, me chamou a atenção: é que a memória deles, que os leva à nostalgia, a uma certa nostalgia sem arrependimento, é uma memória da mesma coisa, de um mesmo personagem…
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Como a imagem de um pai?
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– Provavelmente sim, mas sinto que tudo aquilo, todos os personagens, a sua vida nocturna e a saudade de uma vida onde não existe noite mas só manhãs claras, cheias de sol, de mar, de orvalho, são desdobramentos meus naquelas figuras. Como se eu fosse quase todos os personagens. A ideia é que toda aquela gente teve experiências (droga, sexo, álcool, de um lado, e aquele maravilhamento infantil ou adolescente, do outro lado) que eu próprio tive.
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É um romance autobiográfico?
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– Em parte, é. A primeira referência, para qualquer coisa que se escreve, é sempre uma referência autobiográfica. A Fernanda Botelho já o disse, de outra maneira, talvez melhor. Outra das razões reside no facto de que só foi possível escrevê-lo muitos anos depois de tudo ter acontecido, porque há coisas que nunca interiorizamos senão muitos anos depois. É a minha memória dos anos que vão entre 1967 e 1976. Regresso agora desses anos. Estou sentado, vejo com os olhos fechados o que se passou na altura.
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Mas não é outra coisa completamente diferente da poesia que conhecemos até agora…
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– Pois não. Creio que os sintomas disto já estão na forma como aparece O Medo.
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Mas de outro ângulo…
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– Sim. Mais directo e menos despojado. É evidente que só se escreve um livro, que esse livro inicial (inicial no sentido de profundo) se prolonga para quase sempre.
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Mas há diferenças entre a poesia e a prosa…
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– Entre a minha poesia e a minha prosa, talvez não haja. Os dois primeiros livros estão muito ligados à prosa. Sempre escrevi uma poesia muito narrativa. Pelo menos dizem isso. Como sou um tipo excessivo e maximal, os meus poemas andam à volta de histórias e é óbvio que não sinto que Lunário seja um romance. Um romance-romance. Essa referência nem aparece no livro.
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O que é um romance?
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– É aquilo que o autor quiser que seja. O Herberto Helder tem razão quando diz que está tudo misturado: não se sabe quando é que a poesia não dá origem a um romance, quando é que um ensaio não é um romance, quando é que no interior de um ensaio não aparece um poema… Não vejo por que é que essas coisas hão-de ser catalogadas. Há páginas de grandes romances que são grandes páginas de poesia. Bom, mas isto é mais um pressentimento que uma certeza, que o início de uma teoria… É uma interrogação. O meu problema é que sempre li mais prosa que poesia. Na verdade, a poesia aborrece-me mais. Não é bem isso… é no sentido de que ocupa um espaço muito menor nas minhas leituras. A poesia é assim: abro um livro, leio este poema, leio aquele, depois arrumo, um dia volto…
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Há uma certa marca disso no fascínio, por exemplo, por Tahar Ben Jelloun…
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– Sim, sim… Porque o Tahar Ben Jelloun é um caso curioso, sobretudo o de La Reclusion Solitaire, é curiosíssimo, com aquela luz mediterrânica.
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Mas há mais referências na prosa, claro…
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– Muitas. Durante anos li Virgílio, sobretudo as Géorgicas, A minha ligação à terra e à natureza é feita assim. Pelo Virgílio. Mas, se me mandassem escolher os meus livros, não saberia ao certo o que levar comigo para a eternidade. Claro que o Malcolm Lowry. O Lowry de Debaixo do Vulcão. Bataille, Genet (todo), Loti (O Pescador da Islândia), Rimbaud, Baudelaire, R. L. Stevenson. Claro que o Melville. O Moby Dick, de Melville. É o meu livro de cabeceira. E Faulkner. Cada vez tenho mais prazer em ler Faulkner. E Herberto Helder, Cesariny, algumas coisas de Eugénio de Andrade, à mistura com Sinais de Fogo de Jorge de Sena, com esse grande livro que é o Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio. E, sem dúvida absolutamente nenhuma, o Para Sempre de Vergílio Ferreira. Depois… Duras e Marguerite Yourcenar.
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Quando está em Sines e quando está em Lisboa? Por que razão se divide entre Sines e Lisboa?
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– A noite tem a ver com o Genet. A fuga, com Rimbaud. O lado místico com Bataille. Sade, com o imprevisto. O lado excessivo (as drogas, o álcool, embora esteja muito calmo desde há dez anos…), com Baudelaire. Um dia vou para um convento. Visto um hábito branco, muito branco, e entro para um convento. Vai ser o meu futuro: para um convento que tenha uma escola de canto gregoriano…
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Mas como é a sua vida em Sines?
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– Estou em Sines e sinto-me bem. E estou lá, também, porque não tenho outro sítio nenhum para ir. Cheguei a um ponto da minha vida em que não há sítio no mundo para onde se possa ir viver e ser feliz. Sines é um lugar onde tenho conforto, onde me protejo, onde ninguém me aborrece, onde posso ter uma vida diferente, sem ser autor… Sou pelo profissionalismo do escritor e da edição… mas preciso de recarregar baterias, de me proteger do mundo, também. E, lá, nada me interrompe a vida. Mas tanto se me dava viver em Sines como no deserto.
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Mas como é essa vida de Sines?
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– Surpreendente e super-pacata. Não é nada do outro mundo. Tenho hábitos normais, ponho os pés junto da lareira, trabalho no Centro Cultural. Gosto de dançar (é a minha única ginástica), saio, bebo, ando por lá…
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E Lisboa?
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– Em Lisboa é terrível. O telefone não para de tocar, janto fora muitas vezes, a noite é cheia de «pecado» (há em todo o lado, mas em Sines é muito mais discreto). Lisboa é a inquietação, e, como já não tenho pruridos, perco-me sempre. E isso vai ao encontro do tema do livro.
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Lisboa é o lugar do livro?
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– Talvez. São cenas de amizade, de limpidez. E outras de estúrdia, de excesso. E isso tem a sua beleza. Uma espécie de beleza maldita.
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São essas cenas, essa dualidade, que fazem a memória do autor de Lunário? De que é que se lembra, sobre a vida?
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– Lembro-me de uma cena de caça, com o meu pai, de como ele estava vestido (um pouco antes de ele morrer), lembro-me de ver como apontou a arma, de como o pato caiu. Lembro-me da primeira vez que me chamaram maricas – foi a minha avó. Lembro-me de Barcelona, de estar num quarto e de, de repente, se abrir uma janela e de um rosto espreitar lá para dentro. Há muitas coisas que eu lembro, algumas quero perdê-las, outras conservo-as. Como uma vez em que eu estava muito apaixonado por um rapazinho que vendia cigarros na feira de Málaga e não conseguia vender nada… então eu fui ter com ele, descalcei-me e fui eu pela feira fora, a vender cigarros, com o tabuleiro de madeira.
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É necessário o lado sórdido das coisas?
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– Pode distinguir-se o que é muito belo, depois.
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Mas é necessário?
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– Para mim é. Não quero dizer que o seja para as outras pessoas.
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Mas magoa, a sordidez?
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– Claro que magoa. É óbvio que magoa. Só magoa. E, se calhar, tudo isso é inútil, a sordidez. Se calhar, essas experiências são completamente inúteis. Mas, será que nos resta muito depois disto tudo, destes dias assim, deste não-futuro que a gente vive?...
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Provavelmente também há outras vias…
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– Bom, tudo seria mais fácil se eu tivesse um curso, um motorista a conduzir o meu carro, e usasse gravatas sempre. Às vezes uso, mas é diferente usar uma gravata no pescoço e usá-la na cabeça. Tudo aconteceu a partir do momento em que eu perdi a noção dos valores. Todos os valores se me gastaram, mesmo à minha frente. O dinheiro gasta-se, o corpo gasta-se. A memória. Por isso é que no Lunário não há lugar para a criação de uma nova moral.
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Atrai, essa vertigem?
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– Sim. Não me atrai ser banqueiro, ter dinheiro. Há pessoas diferentes. Atrai-me o outro lado da vida, o outro lado do mar, alguma coisa perfeita, um dia que tenha uma manhã com muito orvalho, restos de geada… De resto, não tenho grandes projectos. Acho que o planeta está perdido e que, provavelmente, a hipótese de António José Saraiva está certa: é melhor que isto se estrague mais um bocadinho, para ver se as pessoas têm mais tempo para olhar para os outros.
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Mas há perigos. Perigos graves, penso eu. Perigos de morrer. A mim, pessoalmente, desagrada-me a ideia de morrer já…
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– Claro que tudo isto é perigoso. Mas as pessoas aproveitam-se disso para serem pérfidas. A questão da SIDA, por exemplo, quando se procura moralizar a questão. Para quê moralizar o problema – só porque é uma epidemia incurável com origem no sexo?
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Mas não há um problema moral na SIDA?
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– É capaz de haver. Quem apanhar SIDA está estragado, claro. E de hepatite, de cancro, de atropelamento? Ninguém está a tirar o peso ao problema. Mas não moralizem. Não criem novos leprosos. Em vez de se avisar as pessoas, começaram a condenar grupos particulares, com o desejo de regressar aos bons costumes… As campanhas são mal feitas, quase terríveis. Espero que, se isso me acontecer alguma vez, eu tenha a coragem de desaparecer definitivamente. Como a Marilyn…
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Bom, mas a propósito do Lunário, se quisermos, não podemos pôr de parte o facto de existir uma moral do sexo.
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– Claro que há uma moral do sexo. Ou volta a haver. O facto de as pessoas terem a possibilidade de escolherem um parceiro sexual implica uma moral? Agora, mantêm-se com um apenas, e têm medo, mesmo assim… Que andámos a fazer durante anos? Eu trabalhei bem para isso (risos). Nunca fiz militância sexual, e acho isso deplorável, andar a defender causas sexuais. Não tem sentido nenhum, porque, por mim, nunca percebi bem as distinções todas que se fazem. Sou um homossexual que se sente mais homossexual que alguns heterossexuais a sentirem-se heterossexuais… Mas isso não tem sentido nenhum…
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O que é que tem sentido?
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– Não quero dizer isso… Quero é dizer que isso, sozinho, não tem sentido nenhum. Há outras coisas.
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Claro que há. Há o medo das coisas. Que importância tem o medo?
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– Não se pode viver sem medo. Há duas formas de conceber isso: o medo que nos faz estar de pé atrás, e o medo interior, que tem a ver com a escrita. Tenho medo de escrever. Cada vez mais, aliás. O acto de escrita passa por uma coisa assim, desse tipo, medo. Uma pergunta que aparece sempre: «o que é que lá vais pôr, na folha?»
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Isso tem a ver com o lado religioso da escrita?
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– Eu acho que isso está ligado com a descida aos infernos. Fui educado num colégio católico e acreditei nisso tudo durante muito tempo. De repente, por motivos vários, ou apenas um, não sei… passou a ser tudo falso. Perde-se Deus e é como se fosse o princípio do fim. Abre-se um buraco muito grande, tudo o que estava programado deixa de existir, de ter sentido. Tudo é posto em causa. O que é que se pode fazer a seguir para encontrar Deus? Descer aos infernos. Fazer o percurso ao contrário…
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É essa, de certo modo, a perda de que falávamos há pouco e que aparece no Lunário, sobretudo na forma como termina o livro, daquela forma reconciliada e feliz, terna. A imagem de um cardo que sobreviveu à geada, do azul do lírio… É isso que se perde, essa imagem que está no final do Lunário? E que também aparece como uma recordação, quando surge aquela frase que é mais ou menos assim: «devo ter visto o mar quando ele era criança, por isso lembro-me dele»
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– Tem a ver com isso, claro. E tem a ver com o redimensionar todas as questões que colocamos sobre a vida e o seu sentido. Qual é a nossa relação com isto tudo? É preciso repensar a nossa vida. Repensar a cafeteira do café, de que nos servimos de manhã, e repensar uma grande parte do nosso lugar no universo. Talvez isso tenha a ver com a posição do escritor, que é uma posição universal, no lugar de Deus, acima da condição humana, a nomear as coisas para que elas existam. Para que elas possam existir… Isto tem a ver com o poeta, sobretudo, que é um demiurgo. Ou tem esse lado. Numa forma simples, essa maneira de redimensionar o mundo passa por um aspecto muito profundo, que não tem nada a ver com aquilo que existe à flor da pele. Tem a ver com uma experiência radical do mundo.
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Que experiência?
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– Por exemplo, com aquela que eu faço de vez em quando, que é passar três dias como se fosse cego. Por mais atento que se seja, há sempre coisas que nos escapam e que só podemos conhecer de outra maneira, através dos outros sentidos, que estão menos treinados… Reconhecer a casa através de outros sentidos, como o tacto, por exemplo. Isso é outra dimensão, dá outra profundidade. E a casa é sempre o centro e o sentido do mundo. A partir daí, da casa, percebe-se tudo. Tudo. O mundo todo.