27.11.08

Poesia Incompleta

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A notícia da abertura de uma livraria independente é sempre um acontecimento a festejar, mas se essa livraria se dedica em exclusivo à poesia e está recheada de fundos de catálogo e livros raros e esgotadíssimos em todo o lado, isso constitui uma visão do paraíso.
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É o que acontece com a Poesia Incompleta, uma nova livraria dedicada à poesia, que abriu as portas na 2ª feira, na Rua Cecílio de Sousa, nº 11 (entre o Príncipe Real e a Praça das Flores).
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O espaço é pequeno mas muito simpático e acolhedor, a selecção de livros é irrepreensível e o livreiro, Changuito, é mesmo um livreiro a sério, daqueles que informam, aconselham e metem conversa com os clientes. Serei certamente visita regular da casa. Para já, na primeira visita, excedi largamente todo o meu orçamento possível e imaginário ao deparar-me com uma série de coisas que há muito procurava.
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É muito interessante a criação nesta zona da cidade de um pequeno circuito de excelentes livrarias (Trama, Poesia Incompleta, Letra-Livre) todas relativamente próximas umas das outras. Sendo certo que somos poucos os leitores de poesia, fundos de catálogo e outras coisas mais ou menos “marginais”, numa altura em que fnacs e bertrands reduzem drasticamente estas áreas, tenho esperança que sejamos suficientes para manter este circuito.
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Sobre a Poesia Incompleta, o José Mário Silva deixou uma reportagem (com muitas fotos) no Bibliotecário de Babel e a Isabel Coutinho escreveu um artigo para o Público de 3ª feira. Deixo aqui este último:
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"Poesia? Mas isso dá dinheiro?"
25.11.2008, Isabel Coutinho
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Poesia Incompleta é uma livraria de poesia em Lisboa
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Poesia Incompleta é o nome da "primeira livraria portuguesa de poesia", que abriu ontem em Lisboa, no n.º 11 da Rua Cecílio de Sousa, entre o Príncipe Real e a Praça das Flores. A um passo da Assembleia da República e do bar Finalmente, numa casa que até tem um quintal com uma buganvília e uma pequena hera que veio da Grécia pela mão de Hélia Correia. Sala a sala, estante a estante, vamos encontrando livros novos, mas também esgotados e raros. Todos relacionados com poesia ou com poetas, publicados em várias línguas.
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Este é um sítio aonde se vai para comprar livros, mas também para conversar com Changuito, jovem livreiro com sentido de humor aguçado, que aprendeu a gostar de poesia com a avó e também com a mãe, a actriz Maria do Céu Guerra. Numa estante da livraria Poesia Incompleta há uma máquina de escrever muito velhinha e em cima da secretária, que serve de balcão, está pendurado um enorme "poster" com três retratos de Mário Cesariny. O poeta é um dos "super-heróis" de Mário Guerra, ou melhor, de Changuito, como gosta de ser tratado. Há muitos anos a explorar o bar do Teatro da Barraca, onde organiza a animação cultural, teve também um bar na Bica, em Lisboa, onde também vendia livros. Aos 34 anos, perdeu a paciência e farto de ir a livrarias onde lhe diziam "esse livro está esgotado" ou "esse livro não existe", resolveu passar de leitor a vendedor de livros.
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"Poesia? Mas isso dá dinheiro?" foi uma das perguntas que mais lhe fizeram quando começou a dizer que queria abrir uma livraria que vendesse especificamente poesia. "Ah, isso é um acto poético", também lhe disseram. Uma pessoa de quem ele gosta muito reagiu: "Isso é a última aventura surrealista!" Às vezes, diz, olham para o projecto como se fosse uma coisa de malucos. "Que engraçado, então uma livraria de poesia. Mas vai ter só poesia?", perguntam. É verdade que no Porto já existe a Poetria, mas além de poesia também vende teatro.
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Para o projecto ser viável, tem que vender cinco livros por dia e Changuito acredita que isso é possível: "Se houvesse uma livraria destas com a qual eu não tivesse nada a ver, passaria aqui pelo menos uma vez por semana."
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Confessa-se um leitor "caótico, desordenado, laxista, um bocadinho diletante" e quis reunir num mesmo espaço uma parte significativa daquilo que considera ser o melhor da produção poética.O espaço da Poesia Incompleta é limitado fisicamente, mas mesmo que a livraria estivesse coberta de estantes Changuito não teria à venda tudo. A livraria tem a sua marca pessoal. "O nome, Poesia Incompleta, é a única coisa que aqui não é ingénua", diz.
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A inspiração veio da obra Poesia Toda, de Herberto Helder. "O poeta pode ter essa ambição porque aquilo é realmente a poesia toda. Mas uma livraria, ainda por cima de poesia, será sempre manca. Ainda agora chegou aqui um rapaz que me falou de um poeta que eu não conhecia. São muitos mais os que não conheço e os que não tenho. O meu esforço vai no sentido de ter uma escolha inquestionavelmente boa. Não sei se o caminho desta livraria é para a completude. Espero que não, quero que seja um caminho para prestar um serviço bom, mas sempre aberto a incompletudes."A livraria tem tudo o que ele acha que tem qualidade. Livros novos e esgotados, portugueses e estrangeiros, uma secção em crescendo de revistas e de áudio (de poetas a dizerem-se). Os exemplares do esgotadíssimo A Faca Não Corta o Fogo, de Herberto Helder, já têm destino: vão para clientes que os reservaram. Mas um deles está a ser leiloado no blogue da livraria (http://www.poesia-incompleta.blogspot.com/) com uma base de licitação de 15 euros. Os interessados podem fazer propostas por e-mail.
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Do que tem à venda na livraria, destaca o novo livro de Carlos Mota de Oliveira, Logo, em Porto Formoso, e Comércio Tradicional, de Vítor Nogueira, Cobra, de Herberto Helder, o livro mais caro que tem neste momento (500 euros), Para Uma Cultura Fascinante, de Ernesto Sampaio, e um CD de Pablo Neruda a dizer a sua poesia. A Poesia Incompleta está aberta de segunda a sábado, das 10h00 às 19h45. Há livros a partir de 2,5 euros.

26.11.08

2 anos sem Mário Cesariny (9 de Agosto de 1923 - 26 de Novembro de 2006)

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a antonin artaud
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I
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Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.
De cada vez que alguém me chama Mário
de cada vez que alguém me chama Cesariny
de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos
sucede em mim uma contracção com os dentes
há contra mim uma imposição violenta
uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.
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Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus
……….de Vasconcelos?
Porque é que querem fazer passar para o meu corpo
uma caricatura a todos os títulos porca?
Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios
para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas
tão inqualificáveis quanto inadequadas
ao acto em mim sozinho como a vida…..puro
eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito…..eu
não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes…..mais vulneráveis…..da matéria
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Eu estou só neste avanço
de corpos
contra corpos
Inexpiáveis
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O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar «tenebroso
……….e cantante» suficientemente glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito — e creio que digo bem —
nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante
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Por outro lado, se eu tivesse um nome
um nome que me fosse…..realmente…..o meu nome
isso provocaria
calamidades
terríveis
como um tremor de terra
dentro da pele das coisas
dos astros
das coisas
das fezes
das coisas
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II
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Haverá uma idade para nomes que não estes
haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos
dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas
puras
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Ah não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura dos sábios…..nem a razão de ninguém
Não será mesmo quem sabe…..ó único mestre vivo
o fim da pavorosa dança dos corpos
onde pontificaste…..de martelo na mão
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Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas
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Haverá
um acordar
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[Mário Cesariny, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 2004]

25.11.08

Mário Cesariny - excerto do documentário Autografia

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[Autografia (2004), documentário de Miguel Gonçalves Mendes sobre Mário Cesariny]

24.11.08

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[Mário Cesariny Naniôra – Uma e Duas, 1960]

21.11.08

O fim da Byblos

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A Byblos fechou definitivamente as portas, algo que já se adivinhava há algum tempo. O projecto inicial era entusiasmante mas desde a sua abertura, em Dezembro do ano passado, tornou-se óbvio que as coisas não estavam a correr bem.
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Tudo começou pela localização escolhida. Completamente fora dos circuitos tradicionais das livrarias, numa zona pessimamente servida de transportes públicos, com estacionamento muito difícil e num horrível edifício de escritórios, a localização dificilmente poderia ter sido pior.
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Mas o mais grave é que a livraria nunca conseguiu corresponder às promessas iniciais. Com uma dimensão gigantesca, nunca conseguiu ter uma oferta condizente com esse espaço. Nunca teve “tudo o que está publicado em Portugal” nem nada que se parecesse. Embora a situação tenha melhorado desde a inauguração, em muitas áreas a oferta não era muito diferente da FNAC do Chiado, por exemplo. Depois, toda a parafernália tecnológica nunca funcionou devidamente, o site era ridículo, a secção de música e filmes era fraquíssima, o bar era igualmente mau, a zona de revistas e jornais a dada altura deixou de existir e as actividades “culturais” organizadas não passavam, regra geral, da apresentação de um qualquer livreco light. Grave foi também a relação com os funcionários, conturbada desde o início.
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Não é nada frequente que alguém se disponha a investir somas avultadas numa livraria, por isso é de facto uma pena que esta não tenha resultado e que tanto dinheiro tenha sido desperdiçado num projecto cheio de boas intenções, mas com claros sinais de desorganização e amadorismo.

20.11.08

Entrevista com Vitor Silva Tavares

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Completamente por acaso, dei com esta entrevista com Vitor Silva Tavares publicada por um jornal brasileiro, K Jornal de Crítica, no seu número 17, de Novembro/Dezembro de 2007. Destaque-se, entre muitas outras coisas, o episódio da apreensão do livro O Bispo de Beja, em 1980:
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LETRAS, ATIVISMO E RESISTÊNCIA
Vitor Silva Tavares e a Editora &etc
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Vitor Silva Tavares, jornalista e editor nascido em Lisboa em 1937, trabalhou na Ulisseia (fundada por Abel Pereira da Fonseca) e fundou sua própria editora, a &etc (Edições Culturais do Subterrâneo), que teve origem em um magazine publicado no Jornal do Fundão. Esse magazine tornou-se uma revista (de 1973 a 1974) e, em 1974, pouco antes do 25 de Abril, uma editora, que prossegue muito ativa. Nela, publicou Adília Lopes e Henri Michaux, Alberto Pimenta e Max Ernst, Hermann Ungar e Ana Hatherly, Bataille e Herberto Helder, Sade e Satie, Picasso e Luís Miguel Nava, Nunes da Rocha e Nâzim Hikmet... Trata-se de uma empresa anticapitalista, que não fica com o copyright das obras. Ademais, nunca reedita livros (com exceção do único que foi censurado em Portugal após o fim do fascismo, episódio contado nesta entrevista) - o dinheiro é pouco e sempre usado para livros novos.
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Pouco depois de completar setenta anos, em julho de 2007, Vitor Silva Tavares concedeu a Fabio Weintraub e Pádua Fernandes esta entrevista na sede da editora.
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K - Como surgiu a intenção de ser editor?
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VST - Foi por mero acaso, que uma grande editora portuguesa [Ulisseia] de repente ficou sem orientação e alguém se lembrou de sugerir o meu nome, justamente porque sabia que eu era um leitor compulsivo, tinha adquirido uma razoável cultura literária, e não apenas literária, mas artística (meus interesses se alargavam para o campo das artes plásticas, do cinema e por aí afora). Fui aceito e lá fiquei por mero acaso, aliás, como quase tudo o que ocorre na minha vida. Creio, porém, ser do André Breton aquela frase que diz que a única coisa que não acontece por acaso é o acaso. Parece que tinha que ser.
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K - Isso foi na Ulisseia. Mas antes disso houve o trabalho como jornalista.
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VST - Sim. A minha estréia nos jornais foi da seguinte maneira: um jornal daqui de Lisboa, chamado Jornal do Comércio, abriu um concurso literário a que chamou "A oportunidade 202". Quem ganhasse o prêmio, além da publicação no jornal, recebia 202 escudos. Resolvi concorrer. Só que, em vez de mandar poesia, conto, enfim, literatura de ficção, mandei uma reportagem sobre pequenos delitos. Ali onde agora está a Biblioteca Camões funcionava o Tribunal dos Pequenos Delitos. Fiz uma reportagem sobre um dia de trabalho nesse tribunal. Escusado será dizer que ganhei os 202 escudos. Mais do que isso: ligaram do jornal para perguntar à minha mãe que idade eu tinha e se eu era bom estudante, ao que ela respondeu: "Não, é um vadio". Quando publicaram o texto, fizeram uma pequena nota que revelava minha idade (15, 16 anos), me aconselhava a prosseguir nos estudos e me dizia para não esquecer que eu tinha uma caneta de ouro. Abriram-me então espaço para eu continuar a escrever.
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K - Conte-nos um pouco mais do seu encontro com o surrealismo e com os surrealistas portugueses.
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VST - Tive conhecimento direto, pessoal, dos representantes do surrealismo português. Houve dois grupos, digamos assim, na história do surrealismo português. Um deles era algo folclórico, superficial, epidérmico. Uma cisão no interior desse primeiro grupo veio gerar o segundo, para mim o mais autêntico. Aquele que vem a juntar Mário Cesariny, que havia passado pelo primeiro (e lá continuou em parte), António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Henrique Leiria e outros. Como é que vim a conhecê-los? Sempre através da Ulisseia. Antes de entrar para a Ulisseia, fiz uma viagem a Paris (exclusivamente para procurar autores, livros, editoras) e lá comprei a História do Surrealismo, do Maurice Nadeau. Ao chegar a Lisboa, já na Ulisseia, convidei o Mário Cesariny para traduzir e apresentar o volume. Mal podia adivinhar que não se davam: Cesariny repudiava completamente o historicismo de Nadeau. Os surrealistas portugueses são alheios à historicidade. Não é papel deles se debruçar sobre a história, muito menos sobre a própria história. Portanto, a tradução não foi avante. Em compensação, Cesariny propôs a Ulisseia uma espécie de antologia por ele organizada, que eu publiquei sob o título A Intervenção Surrealista [1966]. Uma antologia muito mais ortodoxa, bretoniana, seguindo a linha dos manifestos. Foi o primeiro livro surrealista que publiquei na Ulisseia. Em Portugal ninguém publicava os surrealistas. Era um pequeno grupo em ruptura com o neo-realismo vigente, que ocupava jornais, editoras em resistência ao fascismo. Ninguém publicava aqueles rapazes algo bizarros que andavam à noite a apanhar gatos em cima dos telhados e a os meter em caixas de papelão e outras coisas assim. Então eu botei a Ulisseia a serviço dos surrealistas portugueses, com quem tive contatos pessoais, nas noitadas, nas boêmias, nos cafés. De resto, há uma história interessante. Certo dia Cesariny chamou-me a um cafezinho para uma conversa. Lá fui eu. Ele, com o ar conspirativo, vozinha baixa, ao fim e ao cabo propôs-me entrar no grupo surrealista, um grupo fechado. Disse-lhe: "Sim, senhor. Mas quanto é que se paga por cota?" O que podia ser entendido como provocação foi logo secundado por uma gargalhada que cimentou um tipo de relação especificamente surrealista. A simples pergunta dava logo uma distância, digamos assim, dialética em relação ao movimento.
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K - A África foi determinante para a formação de suas convicções políticas. Você voltou de lá politicamente diferente. Isso se deveu à sua atuação jornalística?
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VST - Sim, em certa medida. Em 1959 fui a Benguela e, em março de 1961, rebenta a guerra em Angola. Quando começa a guerra em Benguela, os brancos vão à África do Sul comprar armamentos. Essa gente virava-se para mim, mostrava os bacamartes e dizia que, se chegasse ali a guerra, o primeiro a ser abatido seria eu, porque era mais preto do que os pretos. Naquela altura não percebia como tudo aquilo fazia parte da guerra fria, na competição por zonas de influência e por matérias-primas, pelas riquezas incomensuráveis do continente. Tinha ainda uma perspectiva humanista e lírica: via apenas o problema das independências nacionais, de povos que queriam se libertar da tutela de seus colonizadores. Sabia, porém, que os americanos estavam, grosso modo, por trás da UNITA [União Nacional para a Independência Total de Angola.], e sobretudo da UPA [União dos Povos de Angola], que foi o primeiro movimento a pegar em armas e lutar contra o colonizador.
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K - Muito nos impressionou, na primeira vez que estivemos aqui, quando nos contou como eram recrutados os trabalhadores na África, e sua denúncia em relação a isso. Queria que nos contasse de novo essa experiência.
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VST - O primeiro contato que tive com esses tais contratados foi no Porto do Bolito. O navio tinha acabado de atracar, eu ainda estava na amurada, com a pessoa que conheci na viagem - um engenheiro belga que trabalhava nas minas do Catanga, e que regressava ao trabalho. Perto da amurada, no cais, ficavam o capataz, uns sipaios, ou seja, polícias, e um conjunto de 30, 40 estivadores. Esses estivadores vinham presos com cordas nos pulsos e nos tornozelos, presos uns aos outros, numa longa fila. Perguntei ao conhecido o que era aquilo e ele me respondeu que eram os contratados. Eu aqui, no liceu, nos livros de história, aprendera que Portugal havia abolido a escravatura, donde o meu espanto. Mais tarde vim a saber como era o processo. Conheci um indivíduo sinistro, um contratador, digamos assim, conhecido naquelas bandas pela alcunha de "Leão da Anhara", um tipo de leão que ataca, mesmo saciado. Ele pegava uns sipaios e, com uma ou duas caminhonetes, partia para o interior, levando barris com uma mistela de vinho, uma mistura com aguardente para embebedar aquela gente toda. Levava também uns cobertores chamados cambriquitos (as noites são muito frias no interior). Quando chegava na aldeia, distribuía vinho e cobertores. Horas depois estavam todos bêbados. Então ele e os sipaios pegavam os espécimes fisicamente mais fortes e os enfiavam nas caminhonetes. Quando os homens acordavam, estavam a centenas de quilômetros de distância de sua aldeia. Eram então levados aos postos administrativos do Estado onde os brancos fazendeiros, que precisavam de mão-de-obra, os compravam, pagando ao Estado um tanto por cabeça (o contratador recebia uma comissão). Uma determinada porcentagem de prisioneiros logo fugia (os que fossem apanhados eram abatidos a carabina). Suponhamos que o contrato fosse por um ano. Eles iam parar numa fazenda, em que havia somente uma cantina onde se abastecer. Sem noção do que era preço, do que era moeda, os contratados ficavam sempre a dever à cantina, que pertencia ao proprietário. Com isso, tinham que prolongar o tempo de contrato. Se por lei o contrato era de um ano, muitos ficavam por seis, sete, dez anos. Decorrido o tempo do contrato, o Estado comprometia-se a devolver a suas terras os indígenas que sobrevivessem.
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K - Poderia falar novamente do artigo que você fez para O Intransigente denunciando as contratações e o que se seguiu, as pessoas que vieram tirá-lo do jornal?
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VST - Sim, essa é uma cena de western. Não foi a única que tive. Esse episódio que eu contei cruza-se com outro. Não foi apenas eu denunciar uma determinada empresa, fazendeiros, a existência dos contratados. Isso estava consignado em todo o território. Suponho que também nas outras colônias. Já tinha começado a guerra lá no norte. Já os civis tinham partido para aqui e acolá para as tais incursões noturnas de vigilância. Eles atiravam sobre tudo o que se mexia, criando-se assim entre os brancos a idéia de que todo preto era um inimigo para abater. Chegou então ao meu conhecimento a informação de que, numa determinada fazenda, os fazendeiros tinham enfiado meia-dúzia de contratados - supostamente aliados dos terroristas -, em sacos com pedras e que os tinham atirado ao rio, onde eram estraçalhados por crocodilos. E é isso exatamente que eu denunciei, cruzando a questão dos contratados com essa violência suplementar (que, no meu entendimento, caracterizava genocídio).
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K - Ninguém censurou o artigo?
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VST - Num determinado período, a censura local ficou sem instruções de Lisboa, pois a guerra havia perturbado os serviços de vigilância na colônia. Aproveitei esse período de desatenção da censura para denunciar a política de contratação e o assassinato dos negros no jornal. Os contratadores também não fizeram por menos: armados, um pai e seus dois filhos, com chapéus sertanejos, foram me prender no jornal, enfiaram-me dentro de um carro, e me levaram aos arredores da cidade, para uma zona mais plana que servia de pista de aterrissagem de aviões de pequeno porte. Por essas alturas, minha ação como jornalista já era conhecida (e em parte apreciada) por algumas pessoas (não muitas) opositoras do regime de guerra. Eram meus protetores, digamos assim. Durante todo esse tempo, nunca usei, nunca trouxe comigo sequer um canivete, nada - eu só tinha a minha caneta. No sítio onde eu morava minha porta vivia aberta e a janela também. Numa pequena cidade onde tudo se sabe logo, assim que meus protetores souberam do que se passou no jornal, imediatamente tomaram providências. Assim é que, quando me meteram para o meio do terreno e me disseram que iam me abater, eu lhes disse: "Sim, sim, que atirem, faz favor, não vou oferecer resistência (e nem podia), me matem, e depois talvez tenham cinco segundos de vida. Olhem". E então olharam. Naqueles morros circundantes dessa pequena pista havia uma dúzia de carabinas de alta precisão direcionadas às cabecinhas deles. "De vocês, não vai sobrar nenhuma falangeta". E assim não morri.
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K - A sua editora surgiu depois do 25 de Abril?
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VST - Não, o primeiro livro, Coisas, é publicado antes de 25 de abril, em março.
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K - Por falar em ditadura, conte-nos da sua peripécia com a ditadura militar brasileira no envio de livros...
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VST - Uma distribuidora brasileira cujo nome já não lembro encomendou uma quantidade razoável do teatro do Picasso. Por quantidade razoável estou a me referir a uns 100, 150 livros, o que para o &etc era uma coisa enorme. A exportação foi um problema. Para além de todas as dificuldades burocráticas, retidos nos correios, na alfândega, os livros foram por fim enfiados em sacos de lona fornecidos pelos próprios correios, conduzidos a uma seção especial de onde seguiram para o Rio de Janeiro. Muitos meses depois, recebo um aviso dos correios para retirar uma encomenda no mesmo sítio de onde haviam partido os livros. Quando fui ver, esses mesmos sacos vinham com carimbos semelhantes aos da censura de cá, com dizeres de "proibido" e coisas assim. Ao abri-los encontro 30 ou 40 livros totalmente rasgados, estragados. Era um monte de papel estragado devolvido pelas autoridades policiais militares brasileiras que tinham, portanto, apanhado os embrulhos na alfândega. Tinham visto na papelada que eram do Picasso - há gente culta, claro, o militar brasileiro é normalmente uma pessoa bastante culta [risos]. Picasso, portanto, comunista. Na verdade, não podiam permitir que um comunista entrasse no Brasil. Ainda que fosse o teatro de Picasso, claro.
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K - Ainda tenho uma pergunta, relacionada ao problema da censura. O senhor disse que, quando publicou o artigo denunciando as pessoas atiradas aos crocodilos, a censura portuguesa estava meio bagunçada. Mas como era nos períodos em que ela funcionava? O senhor submetia seus textos ao censor? O censor ficava no jornal? Havia censura local ou tudo passava por aqui?
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VST - Não, a censura lá era autônoma, como a de cá. O edifício da censura era assim: a cúpula ficava em Lisboa e dependia diretamente da presidência do conselho. Em última análise, dependia diretamente do Salazar. Depois havia delegações espalhadas por todas as cidades do país, pois havia jornais regionais, espetáculos, coisas assim. Os casos mais bicudos, que as censuras locais não sabiam como resolver, eram encaminhados à sede em Lisboa. Nos jornais, a gente escrevia um artigo, o tipógrafo compunha e tiravam-se várias cópias, duas das quais iam logo para o Serviço de Censura. Uma cópia seguia para o responsável pela paginação e outra para os revisores. Por lei, era obrigatório enviar também, além do texto, quaisquer elementos gráficos que acompanhassem o artigo. No entanto, no &etc eu nunca mandei elementos gráficos, mas tão-somente os textos - sabendo que depois poderia sofrer sanções por isso. Posso lhes mostrar o que guardei da revista... não tenho jeito nenhum para organizar, mas... José Cardoso Pires, aqui, autorizado parcialmente.
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"A burguesia intelectual é muito cosmopolita, muito cosmopolita, muito revolucionária, muito revolucionária, mas alimenta uma nostalgia tramada pela pax juris e servida com boas maneiras." [trecho censurado]
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K - E acontecia de vocês conhecerem os censores?
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VST - Não. Quando estive a dirigir o suplemento cultural do Diário de Lisboa, tinha acesso direto ao próprio diretor da Censura. Mas só a ele, não aos censores propriamente ditos. No entanto, houve uma exceção. A história é engraçada e tem a ver ainda com o &etc do Fundão. Ele tinha estado suspenso pela censura durante seis meses. Foi durante esses seis meses que eu, o escritor José Cardoso Pires, e o diretor do jornal, António Pauloro, nos reunimos para ver como é que era possível, quando o jornal retomasse a sua atividade, manter uma folha ou uma parte cultural, pois o jornal tinha estado fechado por causa de uma folha cultural. Para contornar as dificuldades que desde logo se anteviam, decidimos transformar o suplemento em magazine e chamá-lo de &etc, nome que não identificava nenhuma ação cultural determinada. A tática foi esta: "Nós não vamos entrar de leão, vamos entrar devagarinho". Tivemos então que escolher nomes para a primeira página. Para o primeiro número, escolhemos um velho professor universitário de grande prestígio intelectual em Portugal, o Ernani Cidade. Ele já tinha nessa altura quase 80 anos, senão mais. Fui falar com ele, que aderiu à idéia e ficou todo comovido. Quem mais? Havia também um poeta que vim a publicar na Ulisseia: José Blanquis de Portugal. Era um poeta raro, erudito, e que ocupava o cargo de subdiretor dos serviços meteorológicos nacionais. Também era musicólogo - fazia palestras na emissora nacional sobre concertos, música clássica etc. Homem de grande cultura, com espírito e humor muito fino, muito matemático e também já com alguma idade. Fui falar com ele, que também aderiu à idéia. Deu-me um artigo adaptado de uma crônica que ele já lera aos microfones da emissora nacional. Os serviços de censura, bem como a emissora nacional, estavam subordinados à Presidência do Conselho. Mandei compor o artigo do Blanquis de Portugal e enviei-o à censura, que o devolveu completamente retalhado. Corri então para o diretor da censura, a quem disse: "O senhor sabe quem é este senhor? É o diretor dos serviços meteorológicos nacionais e colaborador da emissora nacional que, como o senhor sabe, depende diretamente do Dr. Oliveira Salazar. Ou esses cortes são levantados ou apresentarei imediatamente meus protestos ao Dr. Paulo Rodrigues!" Paulo Rodrigues era o secretário do Dr. Salazar para os efeitos de censura. Como quem tem cu tem medo, o homem ficou passado. Abriu exceção e mandou chamar o censor, com quem me sentei numa salinha. O censor era um velhote, tenente-coronel reformado, grande parte dos censores eram oficiais já reformados. "Qual foi o seu critério, por que é que cortou isto?" O homem não tinha resposta. "O corte é absolutamente arbitrário! Como é que o senhor vai cortar aqui, artigo para a emissora nacional?" Ele então foi levantando os cortes, deixando apenas uns quatro ou cinco, para defender a honra do convento. E é aí que entra a questão dos elementos gráficos. Arranjei uma gravurinha do século XIX - uma mãozinha com uma tesoura - que reduzi e apliquei na primeira página, quatro ou cinco vezes nos lugares onde tinha havido cortes. Aprendemos com a censura a ler os sinais gráficos. Tudo poderia constituir mensagem, subliminar, escondida. Era um jogo de gato e rato.
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K - E depois desse primeiro número, em que havia o artigo do Ernani Cidade e do Blanquis de Portugal, o que continham os números seguintes?
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VST - Depois os números foram se radicalizando, mas apenas quanto ao aspecto ideológico da intervenção. Nunca quis fazer nenhum boletim político, nunca estive ligado sequer ao partido comunista, logo, não tinha de estar a serviço desta ou daquela formação política. No contexto da cultura portuguesa, o magazine foi se radicalizando pela posição totalmente anti-ortodoxa, pelo lado polêmico (nomeadamente contra os medíocres escritores neo-realistas), bafejado com os oxigênios (algo anárquicos, mas muito vivos) que vinham dos maios de 68. Ele foi se tornando muito mais solto de linguagem, com um tipo de humor cáustico, tomando posições que os franceses já chamariam de contracultura. Eu, mais modestamente, utilizando tão-somente a língua portuguesa, dizia que estávamos a "mijar fora do pinico". Isso se repetiu posteriormente na revista já autônoma, que também se caracterizou pelo uso de uma linguagem desenvolta, aberta, não raro contundente; por não reconhecer ídolos intocáveis e, ainda durante a ditadura, por repudiar a autocensura. "Os filhos da puta que cortem" - nós dizíamos - "...e, mesmo assim, vamos protestar". Criamos muitas inimizades, mas também, sobretudo com gente mais nova, conquistamos muitas adesões. Uma parte desse espírito está no conjunto dos livros publicados pela editora. Quando noutras entrevistas me perguntam: "Que linhas segue o &etc do ponto de vista conteudístico?" - tenho grande dificuldade em responder. O mais fácil é apresentar o catálogo e pedir que tirem as próprias conclusões. As linhas de força estão patentes no catálogo. Não é uma, serão várias. Então qual é o denominador comum? O modo de produção. Esse é exatamente o mesmo hoje, como quando nasceu. E é esse modo de produção que é político. Porque é fácil fazer catilinárias contra a exploração capitalista, contra a globalização das multinacionais. Eu, em qualquer café, posso estar a falar três horas sobre isso e entretanto, na minha vidinha, no meu comportamento, cá estou eu. Não é verdade? Ora, aqui temos outro modo de produção - aí está a resposta, a resistência, a resistência política. Aí também se notam certas coisas. O Lafargue que eu publiquei não foi apenas o da Religião do Capital. No ano em que se comemorou o grande centenário do Victor Hugo, publiquei um livro do Lafargue que arrasa com o Hugo...
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K - A Lenda do Victor Hugo...
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VST - ... a que eu pus o título O Anti-Hugo. A gente lê esse livrinho do Lafargue e desaparece o Victor Hugo como pai da humanidade.
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K - Ainda sobre essa questão, o senhor publicou agora a Djuna Barnes [O Livro das Mulheres Repulsivas], que foi uma lutadora pelos direitos da mulher no século XX...
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VST - ... herdeira das feministas americanas. E também dos movimentos gay, lésbico etc. Aliás, nesse aspecto, o &etc também tem uma componente muito forte. Basta ver que até a organização das lésbicas em Portugal tem contatos conosco. Temos no nosso catálogo uma, duas, três, quatro, cinco, seis lésbicas, grandes autoras. Assumidamente lésbicas, grandes minhas amigas. Essa é uma das tais linhas do &etc. Também aqui começamos a publicar a literatura homossexual (ou de homossexuais), numa altura em que ainda de certo modo isso era tabu.

Temos cá também, desde o arranque, o Livro Branco do Jean Cocteau (e com todos os desenhinhos, pois). É evidente que isso chocou o meio livreiro. Há pouco tempo, um crítico, a propósito da Adília Lopes, fez uma crônica no jornal em que, a certa altura, dá conselhos a ela, exortando-a a se afastar de uma família devassa da qual fazem parte João César Monteiro, do cinema, Luiz Pacheco, Vitor Silva Tavares, o Manuel João, do Ena Pá 2000, uma família devassa. O que haveria na cabeça - ou nos cornos - desse publicista?
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K - E por falar na resistência a certos livros, Alberto Pimenta, um dos poetas editados pela casa, contou-me da resistência ao Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta, livro que tinha comprometimento político explícito, contrário ao massacre dos iraquianos...
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VST - É um livro maldito. A maior parte dos livreiros não o quis devido ao tema, embora não se trate de uma poesia panfletária. Não há no livro nenhuma retórica demagógica sobre a questão do Iraque. Trata-se de um tema terrível tratado por um poeta de maneira poética. Aquela paca imperialista não está apenas a cometer o genocídio, está a esmagar uma cultura que fazia parte do patrimônio da humanidade. Isto deve ter sido percebido pelas centrais de compras de algumas organizações livreiras. Tenho indicação direta disto e a transmiti ao Alberto Pimenta. Houve, sim senhor, boicote a esse livro. Mas esse é um dos papéis de intervenção de uma editora cultural através da poesia. Pimenta é um autor incômodo (sempre foi), um outsider, alguém fora da redoma dos poetas que se lêem todos uns aos outros, espreitam todos os umbigos uns dos outros. Pimenta está fora dessa campânula, e portanto está muito bem, acho eu. A amizade e a irmandade que nos une não assenta apenas no fato de termos idéias mais ou menos paralelas sobre a literatura e o papel da poesia, não, estende-se, abre-se ao mundo e entre a poesia e a nossa vida há uma interpenetração. Sem o público o que seria a poesia? Seria uma das belas artes, um tricô literário, se quisermos. Há gente que tem muito jeito para tricô literário, há muitos dotados. E a isso chamam poesia. Entendo muito mais a poesia como expressão de uma vivência, essa sim, muito rica e profunda de implicações, e que depois pode ter ou não ter expressão literária. Pedro Oom, um dos próceres do surrealismo português, começa um poema dizendo: "Posso escrever. Posso não escrever". Há centenas, talvez milhares de, chamemos poetas, que escrevem, digamos, poesia, são conhecidos como poetas, publicam livros de poesia, são entrevistados como poetas, fazem viagens pelo mundo para lerem suas poesias. Eu a esses não chamo poetas. Em compensação, eu e o Alberto conhecemos muita gente, poetas de verdade, que não fazem nada disso, porque "pode não se escrever". Quando já para o fim, uma vez entrevistaram o Mário Cesariny e perguntaram-lhe: "Senhor Mário Cesariny, o senhor ainda escreve?" Ele disse: "Não, não, claro que não, a musa pôs-me os cornos, traiu-me como uma puta. Foi juntar-se a outros e a mim pôs-me os cornos." [risos].
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K - E quanto aos autores mais jovens, como Manuel de Freitas?
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VST - Ainda houve autores mais jovens do que ele aqui no &etc. Uma indicação de que a editora não se fossilizou, não se academizou, é a afluência de originais de meninos e meninas que ainda não têm 20 anos. Mas não temos aqui quotas geracionais - tanto publico um rapazinho que tem agora 22 anos como o Pimenta, que vai fazer 70 (eu já fiz). Publiquei até o Diário Íntimo, do Luís Amaro, em homenagem a um homem de 83 anos que levou toda a sua vida ao serviço dos poetas.

Tendo sido ele funcionário da editora Portugália, e depois, muitos e muitos anos, Secretário de redação da Colóquio/Letras, dedicou sua vida à poesia dos outros. Tão parco, tão pudico foi com sua própria obra, que subalternizou sempre o próprio trabalho, dedicando cuidado, atenção, carinho, ajuda a gerações de poetas em Portugal. Então o &etc publicou, no ano passado, a obra poética do velho Luís Amaro, independentemente de se poder dizer que é uma poesia que já não se faz. Mas o que é isso? Escolas literárias? Ah, são como as ondas. Vem uma, depois vai abaixo e aparece outra, volta atrás, avança...
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K - Foi com esse espírito que o senhor publicou a Eufonia, do Berlioz?
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VST - Sim, senhor. Essa é outra das linhas do &etc: procurar pequenas preciosidades ou curiosidades literárias de autores que se notabilizaram por outras vertentes da criação artística. É o caso do Berlioz, conhecido como compositor romântico. Foi para mim uma grata surpresa poder publicar uma obra de ficção, ainda por cima futurista, do senhor Berlioz. A mesma coisa com Douanier Rousseau. O senhor Douanier Rousseau, o pintor, também tinha pecinhas de teatro. Publiquei então essa coisa deliciosa que se chama A Vingança de Uma Órfã Russa. E o lemos com um sorriso giocôndico, o mesmo com que vemos a sua pintura. Do mesmo modo o Picasso, que também escreveu teatro, e até poesia. Ou então são obras que os próprios autores, digamos assim, atiraram para uma espécie de gueto. Assim é que, de autores portugueses como João de Deus, publicamos, na contramarcha, um livro chamado Criptinas. Ora, João de Deus foi um herói da grande poesia lírica portuguesa. Ele compôs um livro de iniciação à leitura, para a escola primária, uma cartilha chamada Cartilha Maternal. Foi enterrado com pompa nacional. Grande poeta lírico, amigo das crianças e tal. Esse livro Criptinas é um livro de poesias eróticas... e quão eróticas, quem havia de dizer... A mesma coisa com o Guerra Junqueiro, o poeta da República, da pátria, dos símbolos, o Victor Hugo português, que também deixou um livro de poesias eróticas publicado por nós - A Porra do Luz Soriano.
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K - Gostaria de aproveitar a sua menção à presença de peças de teatro no catálogo para que o senhor nos contasse um pouco da sua relação com o teatro.
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VST - Havia comprado uma edição francesa de A Formação do Ator, do Constantin Stanislavski... Pelo cinema já sabia muito bem o que era o Actors Studio - o senhor Strasberg e o senhor Kazan foram adaptar o método Stanislavski ao modo americano, somando-lhe Freud. Essas coisas eu já ia sabendo, e tive uma paixão assolapada por aquele faz-de-conta, que cresceu muito quando a Casa da comédia decidiu montar uma peça do Almada [Negreiros], Deseja-se Mulher, escrita há mais de 50 anos e jamais representada. Uma peça que ele, Almada, havia lido pela primeira vez num café de Paris, para ninguém mais ninguém menos que o senhor Federico García Lorca. E vim a trabalhar intimamente, diariamente, com o doutor Amado e com Almada para fazer esta peça. Foi um momento muito alto da vida do Almada. Ao cabo de cinqüenta anos, ele via finalmente sua peça em cena. A maneira de o Almada se comunicar fazia com que muita gente o temesse - aqueles olhos enormes, aquele carão, a maneira tão recortada de dizer as coisas faziam com que ele parecesse um monstro. Não era. Era um menino. Em conversa comigo, certa vez falou-me (acho que deixou isso escrito em algum lugar) que um dia, quando ele era pequeno, o pai perguntou-lhe: "Filho, o que é que tu queres ser quando fores crescido?". Ele respondeu: "Quero ser pintor". E o pai: "Pintor é vagabundo". Ele: "Então, se não posso ser pintor, quero ser menino". [risos] Vou contar-lhes um pequeno episódio. Uma vez fui à casa dele. Ele fumava uns cigarros muito ordinários chamados Definitivos, que vinham na seqüência de uma outra marca, chamada Provisórios. Nessa altura ele fumava Definitivos, que nem tinham filtro. Ele então pega o maço, tira o cigarrinho e diz: "Vou te contar a história da minha vida. É muito simples: eu antes fumava Provisórios, agora fumo Definitivos. Quer dizer, já cumpri o serviço militar". [risos] Vai daí, puxa da caixa de fósforos para acender o cigarro. Mas a caixa estava vazia. Dei-lhe então a minha. Ele a abriu, acendeu o cigarro, e quando ia ma devolver, eu disse: "Mestre, fique com ela". O homem ficou comovido até as lágrimas. Porque eu lhe tinha oferecido uma caixa de fósforos. Não era o valor das coisas, mas o gesto. Uma oferta é uma oferta, uma generosidade é uma generosidade; não se quantifica. Era como se lhe tivesse dado uma salva de prata ou qualquer coisa assim. Ficou comovidíssimo.
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K - Como foi o seu primeiro contato com a literatura brasileira?
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VST - O primeiro poeta brasileiro por quem tive uma grande paixão na altura dos meus 15 anos foi Catulo da Paixão Cearense. Pouco ou nada sabia da literatura brasileira, mas tive uma namorada que trabalhava na Livraria Barateira, onde havia de tudo e mais alguma coisa. Um dia apanhei ali um livrinho e achei curioso o nome do autor: Catulo da Paixão Cearense. Nessa altura eu já gostava do Luís Gonzaga, que tocava no rádio coisas como "Vem cá, cintura fina/ Cintura de pilão / Cintura de menina/ Vem cá, meu coração". Creio que por causa de canções desse tipo me aproximaram da métrica do Catulo. Por causa do Catulo, fui depois comprar um livro pequenino, edição brasileira também, do Manuel Bandeira. Só mais tarde é que tive mais informação dos escritores, de pintores como Cândido Portinari (que teve uma influência extraordinária no arranque do neo-realismo português). Conheci depois Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto... Lembro de uma montagem no Teatro Tivoli de Morte e Vida Severina, do João Cabral, com estudantes de uma Universidade brasileira. Com eles estava o Chico Buarque de Holanda. Houve problemas com a censura e com a PIDE por causa dessa apresentação. Isso alertou muita gente para a obra de João Cabral de Melo Neto. Inclusive no Jornal do Fundão, que tinha muita saída entre os imigrantes portugueses no Brasil. Era uma ponte cultural com o Brasil. Tanto assim que, quando o Presidente Juscelino Kubitscheck veio a Portugal, foi convidado pelo António Pauloro a visitar o Fundão. De outra vez o convidado foi João Cabral de Melo Neto, que tive a ocasião de conhecer. Nessa altura, anos 1960, eu editava o Suplemento &etc do Jornal do Fundão. Já tinha passado para o Diário de Lisboa, trabalhando no caderno de cultura, quando o José Cardoso Pires me disse que, na direção do Instituto Alemão, estava um homem muito culto chamado Curt Meyer-Clason, que havia passado muitos anos no Brasil. A ele se devia a divulgação internacional de um tal de Guimarães Rosa. Ora bem: tinha eu também comprado, por mero acaso, um livrinho chamado Primeiras Estórias, a primeira edição brasileira. Descobri então um grande autor da língua portuguesa, brasileiro, brasileiríssimo, mas também, em termos de linguagem, apesar das audácias estilísticas, um português vicentino puríssimo. Que encanto foi reencontrar a língua portuguesa através, finalmente, de um autor brasileiro e regional, digamos assim. Só depois é que veio o Grande Sertão: Veredas. Mas comecei por esse Primeiras Estórias e fiz publicar no magazine &etc um conto pequenino chamado "Famigerado". Mas, voltando ao Meyer-Clason, o José Cardoso Pires marcou um encontro e fui falar com ele. Além de amigo íntimo do Guimarães Rosa (e seu biógrafo) Curt era, sobretudo, seu tradutor. Por esses acasos do destino, estava finalmente a falar com o homem que, na Europa culta, mais contribuiu para que Guimarães Rosa fosse conhecido. Esse Curt Meyer-Clason acabou por ser muito maltratado não pela intelligentsia local, mas pelo próprio governo alemão, em conivência com certas autoridades portuguesas. Na verdade, ele imprimiu ao Instituto Alemão uma dinâmica cultural (e sociológica, e política), que fez com que as autoridades alemãs e portuguesas acabassem por lhe puxar o tapete, insinuando que o homem estivera ligado na juventude ao Partido Nacional-Socialista alemão. Há muitas maneiras de assassinar um homem, e esta é das mais cruéis, das mais insidiosas. Ele nos deu a conhecer Brecht, Kurt Weil e coisas assim, o que não combina muito com o nacional-socialismo, não é?
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K - No livro Metamorfoses do Vídeo, de Alberto Pimenta, há um poema que se refere a batidas na porta: em determinada hora, é a leitaria, em outra, são pedintes, e em certo horário, pode ser a polícia, que tem uma outra forma de bater. E se refere à apreensão do livro O Bispo de Beja, publicado pelo &etc em 1980. Achávamos que em 1980 o fascismo já havia acabado...
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VST - Que eu saiba, foi um caso único no Portugal pós 1974. Foi assim: eu tinha publicado umas obrazinhas subterrâneas, soterradas nas bibliotecas, no pó do olvido, entre as quais havia um velho opúsculo que serviu para a propaganda republicana. Era um poema satírico que tratava literariamente de um caso escandaloso, que envolvia um tal de Bispo de Beja, acusado de homossexualismo. Parece que a população de Beja tinha-se rebelado contra o Bispo, que teve de fugir para a Espanha. A Igreja Católica estava entrosada com o regime, que os republicanos queriam mudar. Esse escândalo, portanto, forneceu material para uma sátira anticlerical, que punha também em causa a própria monarquia. Ao apresentar o livro, cheguei a dizer que, neste aspecto da temática sexual, se tratava de um livro reacionário. A visão do autor sobre o homossexualismo era reacionária. Tomamos essa precaução de apresentar o livro como mais um modelo da poesia satírica, mas vendo desde logo que os objetivos eram propagandísticos. Ora bem: estava eu aqui sentadinho e, de repente, vi entrar por aquela porta nada menos do que cinco pessoas: quatro cavalheiros e uma senhora. Aproximaram-se, perguntaram onde é que estava o livro O Bispo de Beja. "O que é que se passa?" "Somos da polícia judiciária e temos um mandado de busca e apreensão desse livro". Vocês podem ter idéia da minha estupefação. Para o meu bem e para o meu mal, já tinha tido longa experiência do que eram as apreensões de livros pela PIDE. Na Ulisseia, foram dezenas de títulos apreendidos. Mas daí a acreditar que, já no Portugal pós-abril, pudesse acontecer coisa do gênero era de se espantar. Então, por causa da minha experiência anterior, a primeira coisa que fiz foi pôr-me de pé (os polícias estavam de pé e não queria vê-los de baixo para cima). Sentei-me em cima da secretária e disse: "Tratem de se identificar. Quem é que me diz que são da polícia judiciária? Pode ser um bando de gangsters que vêm roubar livros". Identificaram-se. Prossegui: "Agora, o mandado de apreensão. Quem é que o expediu?" Os senhores apresentam-me um documento do Ministério Público. Li-o atentamente, para ganhar tempo, e lhes disse: "Vocês não têm vergonha? Estão a imitar os vossos colegas da PIDE". Então o chefe protestou: "Alto lá! Isso é ofensivo. Nós não somos da PIDE." "Mas estão a agir como se fossem", retruquei. Não podia aceitar aquilo de modo algum. Se nos anos anteriores ao 25 de abril enfrentei a PIDE, como é que agora, em situação de liberdade, ia aceitar uma coisa dessas? Estava a passar isso, estavam ali, sentados naqueles degrauzinhos, o Herberto Helder e o Paulo da Costa Domingos, que nessa altura trabalhava comigo. Lancei um olhar ao Paulo da Costa Domingos que, rapazinho, tinha me acompanhado várias vezes à censura. Eu tinha alguns pacotes, que estavam ali atrás, onde eu havia um divã. O Paulo logo apreendeu o sentido do meu olhar e empurrou com o pé os pacotes para baixo do divã. Perguntei então: "E se eu não entregar os livros?". Ao que respondeu o inspetor: "Escaqueiro-lhe esta merda toda". Sim, senhor. Quem falava assim não podia ser gago. Telefonei para o Diário Popular. Estava lá um prosador, escritor e grande jornalista, ainda vivo, Batista Bastos. Disse-lhe: "Oh, Batista, tenho aqui na minha frente cinco agentes da polícia judiciária, decididos a apreender um livro que eu publiquei, O Bispo de Beja". O outro começou aos gritos a zoar, não queria acreditar: "Como pode ser?". "Exatamente como nos tempos da PIDE", respondi. "Vou já tratar disso." E desliga o telefone. Volto-me para os policiais: "Um momentinho, vou lhes dar os livros". Mas antes liguei também para o Diário de Lisboa, onde eu havia trabalhado. O chefe de redação, Acássio Barradas, era meu amigo. Repeti-lhe o que eu dissera ao Batista Bastos. A essa altura, os gajos da polícia, que tinham entrado de leão, já estavam mais conciliadores e dialogantes. Perguntei-lhes então de onde partira a denúncia. E me disseram que não sabiam ao certo, mas supunham que de Beja. "Já basta!", disse-lhes eu, "Vou lhes entregar os livros. Mas podem ter a certeza de que não ficarei por aqui. Entendo essa apreensão como um assalto, um roubo. Vou requerer os livros de volta, nas mesmas condições em que os levam". No dia seguinte a imprensa deu grande destaque ao assalto à pequena editora &etc. Ainda estava fresca a memória da censura. Apareceu aqui uma equipe da televisão a quem eu disse ter ouvido um boato de que a denúncia que gerou a apreensão teria partido da cidade de Beja. No dia seguinte, no telejornal não saiu nada, o que eu creditei a alguma espécie de censura interna. Em auto-entrevista para o Diário de Lisboa, atribuí o ocorrido ao momento político que atravessávamos: em 1980 tínhamos um governo de coligação da direita chamado AD, Aliança Democrática, que se apresentava como uma democracia musculada. Como sabem, tenho pouco músculo e não gosto muito de democracias musculadas. Passaram-se quatro ou cinco dias, e me ligaram da emissora de televisão para a qual dera a entrevista. O chefe da equipe que me entrevistara tinha ido a Beja, onde filmaram as declarações do denunciante, que terminaram por localizar: um padre. Concederam-me direito de resposta. Enfiei-me num táxi para os estúdios da televisão e lá fui ver a entrevista com o padre, a dizer que estava perfeitamente bem com a sua própria consciência e que voltaria a fazer as mesmas coisas. Eles ainda pretendiam lançar essa peça filmada no telejornal, com a minha resposta ao vivo. Mas ordens superiores vetaram a transmissão ao vivo. Filmaram a minha resposta ao padre, que me valeu um processo por abuso de liberdade de imprensa. Fui chamado várias vezes à Polícia Judiciária. A certa altura, comecei a exasperar-me com as perguntas. O delegado do Ministério Público nunca estava satisfeito. A Polícia Judiciária mandava o relatório dos interrogatórios, que foram ajuntados ao processo, o qual foi encaminhado a uma determinada vara do Tribunal da Boa Hora, aonde fui examiná-lo. Ao solicitar os autos para consulta, descobri que o processo havia se extraviado. Então ameacei os funcionários do tribunal aos berros: "Ou o processo aparece dentro de 24 horas ou vou outra vez para a televisão. Que mistério é esse no Portugal democrático onde processos que nem sequer foram julgados desaparecem dentro do próprio tribunal?". Vinte e quatro horas depois, milagrosamente, o processo reaparecera. Li-o. O padre, que havia visto o opúsculo numa livraria qualquer de Beja, foi à polícia prestar queixa. A polícia aconselhou-o então a falar com o Bispo, que o aconselhou a mandar as coisas para Conferência Episcopal de Lisboa. A Conferência Episcopal, por seu turno, manda o caso para o Cardeal patriarca, que também não sabe o que fazer. Nenhuma dessas entidades, portanto, aparecia como acusadora. Mas a polícia de Beja pega no livrinho e manda para o comando de Lisboa, que o encaminha ao Ministério Público. O Ministério Público, que tinha ali um jovem delegado, em princípio de carreira, vê no caso uma grave ofensa à Igreja Católica e ao homossexualismo, e resolve levar o processo a termo. Mas não havia acusação formada tecnicamente, pois as entidades supostamente ofendidas haviam tirado as mãos para não ser escaldadas. Certa manhã, fui informado pelo meu advogado de que, estando a decorrer audiência de julgamento no Tribunal da Boa Hora (sediado num velho convento), decidiram regar os tais livrinhos com gasolina e atear fogo a eles, produzindo uma fumarada negra que fez muita gente tossir das salas da audiência.
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K - Queimaram os livros em pleno tribunal?
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VST - Sim. Como foi caso único, desde o 25 de Abril até agora, essa é uma das medalhas desta pequena editora. Parece impossível que coisas assim aconteçam por aqui. Uma editora sem grande expressão, sem grande nome, nada disso. O &etc nunca fez reedição nenhuma. Exceto essa. Estava ainda a correr o processo contra mim por abuso de liberdade quando decidi reeditar o livro. O primeiro nem tinha nenhuma alusão ao caso passado em Beja. No entanto, para essa segunda edição, resolvi utilizar na capa a caricatura de um renomado caricaturista português, se não me engano Francisco Valença, que mostrava o dito Bispo caracterizado como Madame Pompadour, com meias de senhora e rendinhas, empoando-se diante de um espelho. Era uma caricatura que datava de 1910, início da ditadura. Usei-a na capa alegando que já havia sido usada em jornais no início da República. Além disso, acrescentei, à guisa de apresentação, a história do delegado do Ministério Público e as posições tomadas pelos jornais. Um editor solidário veio me propor uma co-edição de cinco mil exemplares, o que recusei imediatamente (não queria explorar comercialmente um escândalo desses). Tratava-se de um caso político. A reedição é uma reincidência, um desafio às autoridades. Nessa altura ainda havia jornalistas nos jornais, e a maioria dos quais tinha sentido na pele a censura. Se fosse agora, desconfio que não contaria com a solidariedade da classe, pois os jornalistas já foram metidos na prateleira, amordaçados, ou atirados para outro emprego.
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Fabio Weintraub é poeta e editor, autor de Novo Endereço (Nankin) e Baque (Editora 34).
Pádua Fernandes é professor universitário, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Como autor, publicou o livro de poemas O Palco e o Mundo (Lisboa: &etc., 2002) e organizou a antologia poética de Alberto Pimenta, A Encomenda do Silêncio (São Paulo, Odradek, 2004).

19.11.08

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“1948: o meu pai foi às Finanças fazer um requerimento, e como de costume fez questão de que eu o acompanhasse. Para “aprender a vida”.
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Em casa explicou-me minuciosamente a fórmula e o motivo do requerimento. No fim, meteu dentro da folha uma nota de 50 escudos, e disse-me: – Esta é a parte mágica da fórmula. Quando tiveres um pedido a fazer, já sabes, o segredo é este.
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Passados uns meses enviei a minha primeira declaração de amor e, como 50 escudos era muito para as minhas posses, juntei uma moedinha de 2$50.
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Nunca tive resposta, decerto foi por ser tão pouco.”
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[Alberto Pimenta, in Repetição do Caos, & etc, 1997]

18.11.08

Requiem para D. Quixote: a apresentação


As primeiras 29 páginas do livro podem ser lidas aqui.

14.11.08

A Naifa "Filha de Duas Mães"

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[in Uma Inocente Inclinação para o Mal, 2008]
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filha de duas mães
adoro vesti-las de igual
tenho andado à tua procura
para te amar
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sobre a mesa posta
sem nenhuma vaidade
ensinar-te-ei meu amor
a praticar a caridade
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nunca direi saudade
ligo pouco ao que se diz
mas não levo muito a mal
a ideia de ser feliz
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_m.r.t.

13.11.08

Os dois melhores livros da literatura portuguesa do século XX

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Os Livros Ardem Mal anda a perguntar a uma série de escritores, críticos e jornalistas quais os melhores e os mais importantes livros da literatura portuguesa do século XX. Responderam até agora Frederico Lourenço, Luís Mourão, Nuno Júdice, Rui Lage, A. M. Pires Cabral, Helena Buescu e Fernando Guerreiro.
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O Henrique Fialho fez aqui o apanhado das respostas.

12.11.08

Cotovia por Luís Quintais

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Para comemorar os seus 20 anos, a Cotovia preparou o livro Não será por acaso, 20 anos, reunindo textos de alguns dos seus autores e colaboradores. Um dos textos é de Luís Quintais, que o deixou n'Os Livros Ardem Mal. Fica também aqui:
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"Mapa de afectos. Idos anos noventa. Princípios, certamente. A minha descoberta da Cotovia coincide com uma espécie de existência pessoana que atravessava então os meus dias e que constitui hoje uma das mais gratificantes memórias que tenho de Lisboa.
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Trabalhava na Rua do Loreto com os meus tios e primos numa pequena empresa de contabilidade e auditoria que já não existe. Os meus vinte e poucos anos eram uma demanda pelas ruas da cidade, entregando trabalhos concluídos, recebendo outros que teriam por destinatários os exímios mestres contabilistas, os meus tios Fernando e Gabriela, o meu primo João e o magnífico leitor de Proust que era o João Pedro Carreira. Uma existência pessoana ou walseriana, porque, de algum modo, o escritório da Rua do Loreto (que dava para o Bairro Alto numa iluminação tranquilizadora digna de Vermeer que fiz celebrar num dos meus poemas de A Imprecisa Melancolia) era uma espécie de Instituto Benjamenta, mas onde a crueldade tinha sido substituída integralmente pela ironia, uma arte cultivada com o rigor e a probidade com que se assentava numa linha de um livro de balanço. A rua, todas as ruas que na Rua do Loreto encontravam um centro irradiante, transportavam-me para formas de onirismo indisciplinado que nunca mais voltei a conhecer. Como se o meu Instituto Benjamenta (lugar de ofício, ironia, e extremo bom senso também) – o escritório do meu tio Fernando – tivesse um contraponto nessa encruzilhada de símbolos que habitavam a superfície do quotidiano. A minha vida era uma forma espacializada de «abandono vigiado», a usar um título de O’Neill que é, como se sabe, todo um programa. Um contraponto numa encruzilhada de símbolos e de lugares como, por exemplo, a belíssima Livros Cotovia na Rua Nova da Trindade, aí, numa das fronteiras invisíveis da cidade, aquela que coincide com as Escadinhas do Duque e que dá acesso ao Rossio – essa sempre eterna despedida da vida, como me recorda António Maria Lisboa – e à linha de fuga que é o Terminal ferroviário onde história, violência e margem vinham hibridizar o meu mapa de afectos.
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Como flâneur e leitor descobri a Cotovia naqueles primeiros anos da década de noventa. E o que lia eu naquela altura? Poesia, sobretudo. E através da poesia descobri uma revista magnífica que a Cotovia fazia publicar. Refiro-me à entretanto desaparecida (uma das memoráveis desaparições da minha vida de leitor) As escadas não têm degraus. Descobri também um dos escritores da minha vida, Edmund Jabès. Não me esqueço nunca de A obscura palavra do deserto, uma poesia que me parece longe, bem longe daquilo que motiva uma parte significativa dos poetas contemporâneos mais canonizados entre nós, e talvez ainda bem porque Jabès será sempre coisa de poucos, enigma de muitos, e o ruído e a sobredeterminação das glórias literárias sempre me aborreceu infinitamente. Depois vieram outros, tantos, que o catálogo da editora discretamente descreve, revela.
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A Cotovia é uma editora que permanece, pelo seu catálogo, pelo rigor com que trata os seus autores e os seus textos, fora daquilo que é o mundo editorial português, e não só. Dir-se-ia que, como o Jabès, permanece fora daquilo que convencionamos hoje por literatura ou por edição, e com isso ensina-nos como se pode sobreviver sem beneplácito nem usura. Um dos grandes méritos é nunca ter confundido livros com literatura. Outro dos méritos é ter enobrecido, pela sóbria singularidade do desenho do seus livros, a literatura, como provavelmente muito poucas editoras o fizeram. Como se não misturasse livros com literatura, mas soubesse perfeitamente onde está o lugar – an Italy of the mind, escreveria certeiramente Wallace Stevens – onde literatura e livros se encontram, se encontrarão sempre.
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Tudo isto pode ser atribuído, com inteira justiça e justificação, a André Fernandes Jorge. Aí está alguém que dispensa elogios ou encómios, mas de quem é um privilégio poder reconhecer entre os nossos amigos mais admirados, por mim, por todos aqueles que o conhecem e que com ele têm colaborado. Porque a amizade é ainda um dos poucos círculos iluminados de lealdade que conheço. Parabéns Cotovia, parabéns André!"

11.11.08

Um Dia por Lisboa: a Baixa e o Chiado

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Vai decorrer hoje mais "Um dia por Lisboa", no Teatro São Luiz, desta vez sobre a Baixa e o Chiado. Vai ter a presença de António Costa, Manuel Salgado, Elisio Sumavielle, Biencard Cruz e Luís Patrão, entre outros. Começa às 18h e a entrada é livre. Mais informações aqui.

10.11.08

Novo McShade

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Já está nas livrarias Requiem Para D. Quixote, segundo livro de Dennis McShade, de 1968 e há muito esgotado. A editora é a Assírio & Alvim.

8.11.08

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AMIGOS PENSADOS: BELARMINO
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Tiveste jeito, como qualquer de nós,
e foste campeão, como qualquer de nós.
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Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?
Também na poesia não se janta nada,
mas nem por isso somos infelizes.
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Campeões com jeito
é a nossa vocação, nosso trejeito.
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Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante
- e a gente levanta-se, pois pudera, sempre.
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Mas do miudame levámos cada soco!
Achas que foi pouco?
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Belarmino:
quando ao tapete nos levar
a mofina,
tu ficarás sem murro,
eu ficarei sem rima,
pugilista e poeta, campeões com jeito
e amadores da má vida.
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[Alexandre O'Neill, in Feira Cabisbaixa, 1965]

7.11.08

Belarmino

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Belarmino, grande filme de Fernando Lopes, de 1964, vai passar hoje às 19h na Cinemateca. Absolutamente imperdível, embora esteja disponível em DVD a um preço acessível (pelo menos na Fnac). Mas em grande ecrã é outra coisa.

3.11.08

Entrevista com André Jorge nos 20 anos da Cotovia

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A Cotovia, uma das melhores editoras portuguesas, está a comemorar os seus 20 anos e está de parabéns. Na semana passada (29-10-2008) saiu no Público esta entrevista a André Jorge, feita por Alexandra Lucas Coelho:
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“SOU FEITO DO AVESSO”
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A Cotovia faz anos. É uma pequena editora. Publicou 700 livros. Com muitos perdeu dinheiro. Com uns pagou outros. Perde tempo com todos, de Homero a guias de vinhos. O homem por trás dos livros preferia não ser visto.
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Há 20 anos, dois irmãos juntaram-se para editar livros. Pouco tempo depois zangaram-se, até hoje, mas a editora continuou. Agora, ao longo de Novembro a Cotovia vai comemorar com livros novos, cursos, palestras e leituras. Num volume que reúne textos de autores e colaboradores, Luís Miguel Cintra lembra que o nome mãe não é Editora Cotovia, mas Livros Cotovia, e “não será por acaso”.
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A Cotovia é a casa da Odisseia ou da Ilíada, mas também de dezenas de poetas, ficcionistas, ensaístas e dramaturgos contemporâneos, portugueses e traduzidos.
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Quando começou, era um tempo em que as livrarias ficavam com 30 por cento do preço dos livros. Agora as cadeias ficam com mais de 40.
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Volta e meia, André Fernandes Jorge, 63 anos, paga para editar.
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Esta é a segunda-entrevista-e-meia que dá na vida, e quanto a fotografias, o que ele gostava era que só aparecesse a gata Maravilhas. Porque a Cotovia é uma casa lisboeta com gata, chá e, conta quem lá trabalhou, pão-de-ló.
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Como é que a Cotovia começou?
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Resultou de conversas entre mim e o meu irmão [o poeta João Miguel Fernandes Jorge, JMFJ].
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Queriam fazer a mesma coisa?
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Queríamos, mas sempre tivemos alguma conflitualidade, que resulta de sermos irmãos, e os únicos irmãos. Talvez sejamos demasiado parecidos para nos podermos dar bem por tempos prolongados. E estou já a dizer isto porque dois anos depois nos zangámos, e uma zanga que perdura. Hoje somos homens com mais de 60 anos, civilizadamente conversamos quando é preciso, mas só por razões especiais. Isso eu lamento, mas a partir de certa altura as coisas são irreversíveis.
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O que fazia antes da Cotovia?
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Nada em particular. Tinha vindo da Guiné, onde estive como cooperante para a cooperação holandesa, dois anos e tal. E voltei a colaborar, como antes, nos negócios do meu pai. Ele tinha uma farmácia, onde praticamente eu não tocava, e depois uma série de actividades na vila, o Bombarral, estabelecimentos e alguma agricultura – coisa que nos passou sempre ao lado [a André e a JMFJ]. O fundamental nessa primeira fase da Cotovia foi a revista As Escadas Não Têm Degraus. O resto foi um pouco a medo.
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Revista que era feita pelo seu irmão, por Joaquim Manuel Magalhães e por António M. Feijó. Mas a editora era sua e do seu irmão?
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Exactamente. O Joaquim fazia parte, como faz parte da família. As Escadas… foram sempre feitas pelo meu irmão e pelo Joaquim. O António colaborou, mas a coordenação foi deles. Sendo que obviamente eu estava de acordo com as escolhas [dos autores e textos]. Não foi por isso que nos zangámos. Também não vou dizer porque foi. Já nem eu sei.
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Quais eram os seus autores? O que é que lhe interessava mais, poesia, ficção?
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Poesia, sobretudo. Na juventude, como muitos outros, fui muito sectário. Houve uma fase em que achei que só os surrealistas eram bons. Houve um período em que teve influência a vivência política, mas na literatura não tanto. Nunca vivi bem com o neo-realismo português. Os poucos que achava bons era porque tinham lido Camilo.
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Mas não está a pôr o Carlos de Oliveira nos neo-realistas.
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Nunca pus. Os mais neo-realistas eram mais ou menos medíocres, e os outros partiam dali para coisas boas. Mas quem me pôs a ler prosa, porque eu sou um bocado preguiçoso, foi de facto o Camilo, que me acompanhou, numa série de volumes, quando fui fazer o serviço militar para Angola. Levei uma biblioteca só Camilo. Leio-o de trás para a frente, é um autor que me dá sempre gozo ler, e se estiver extremamente cansado, sob pressão, que era o caso, não conseguia ler outras coisas. E, logo a seguir, um autor que foi sempre maltratado em Portugal, e que eu adoro, o Georges Simenon, sempre mal editado, com péssimas traduções.
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É muito mais francófono?
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Completamente, tive sempre um problema com o inglês.
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A ideia de várias colecções na Cotovia existiu desde o princípio?
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Sempre. Ficção, ensaio, poesia traduzida. Nos primeiros anos não havia poetas portugueses porque o meu irmão e o Joaquim eram dois poetas, publicavam noutro lado, não queriam publicar aqui e não queriam fazer escolhas.
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O André queria?
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A partir de certa altura achei que se devia começar. Mas é muito difícil e arriscado. Aparecem propostas de coisas muito frágeis, de imitação. Vi aqui muitos originais influenciados, sobretudo pelo Eugénio de Andrade. Creio que há alguns que querem ser influenciados pelo Herberto, mas dá asneira, é mais difícil de imitar. O Eugénio é um autor de que gostei muito nos primeiros livros e depois deixei de gostar. Mas influenciou tanta gente, mesmo na prosa.
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Qual foi o primeiro livro da Cotovia?
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Não saiu um só, mas o primeiro terá sido uma tradução da Christiane Rochefort, que saiu com tantas gralhas que não saiu. Foram 2000 livros guilhotinados. Lembro-me de os ter recebido, ia partir de fim-de-semana, e sentei-me na mesa de cozinha a ver. A dada altura fui buscar uma caneta e comecei a marcar. Quando cheguei ao fim do livro tinha centenas de gralhas. Felizmente nunca mais aconteceu. Perdemos muito tempo com os livros antes deles saírem, estamos sempre atrasados.
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Quando se dá a separação? Em 1991?
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Tenho ideia que sim.
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Pensaram acabar com a editora?
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Esse era o ponto de vista do meu irmão, que é muito mais de rupturas, qualquer coisa é para apagar, para riscar. E do Joaquim. Ele não fazia parte da editora, mas era uma presença desejada. Para além de haver amizade, havia admiração e respeito pelo poeta e intelectual. O resto é a zanga. Foi aí que o Joaquim não quis que a revista continuasse, e que não saísse um livro dele [de poemas, que estava em provas]. Continuei sozinho. Eu tinha vontade. Também me tinha entregue completamente a este trabalho.
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Descobriu que era a sua coisa.
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Era, se calhar não podia voltar a trás, já tinham passado 40 anos. Tenho 63 hoje.
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Perdeu autores?
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Não.
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Os autores africanos foram coisa sua?
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Foram. Comecei por publicar um autor que já não publico, o Manuel Rui.
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Por motivos políticos [acusações de envolvimento no 27 de Maio de 1977 em Angola, quando retaliações do MPLA levaram a milhares de mortos]?
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Não! Nunca segregaria um autor por motivos políticos. Por motivos pessoais.
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Não tem a ver com o 27 de Maio?
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Não, absolutamente, e tenho dúvidas quanto a acusações que lhe são feitas. São questões pessoais. Aquela ideia do porreirismo lusófono acho que só prejudica.
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No livro comemorativo da Cotovia, Não Será Por Acaso, várias pessoas dizem que só publica o que gosta e lê tudo o que publica. É assim?
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Quase. Originalmente não leio em inglês nem em alemão. Leio através do francês, raras vezes através do castelhano. Mas portugueses, brasileiros sempre. No inglês tenho uma ajuda excepcional, porque a Cotovia tem outra editora, a Fernanda Barros. Algumas áreas que desconheço, como os autores da colecção Raposa, aquele romance tradicional inglês, a colecção Outono-Inverno [sobre a velhice] são escolhas da Fernanda. O que não decidimos aqui perguntamos a amigos.
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Recebe muitos originais?
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Sim, é uma depressão. São dezenas por mês. Há meses em que chegam diariamente.
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Sobretudo poesia?
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Já não. Mas talvez ainda seja maioritária. O resto é ficção. Na poesia continua a ser o adolescente. Na prosa, apareciam muito as recordações da guerra colonial, e donas de casa que, criados os filhos, escrevem as suas memórias. Hoje são predominantes os jovens em que se cria a ilusão de que têm um lugar na literatura, que nos cursos de literatura aprendem algumas técnicas.
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Publicou autores chegados pelo correio e que ninguém lhe tivesse recomendado?
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Sim. Mas muito raro. Um foi o José Pinto Carneiro [autor de O Estranho Caso da Boazona que Me Entrou Pelo Escritório Adentro], que depois não publicámos mais.
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Não correspondeu às suas expectativas.
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De maneira nenhuma. Esgotou rapidamente. A Teresa Veiga não veio pelo correio, mas veio pessoalmente e desapareceu. Não a conhecia de parte nenhuma.
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Mas é complicado dizer que não.
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É muito difícil e geralmente digo da pior maneira. Ando tanto tempo para dizer não que as pessoas têm uma justificação para estar zangadas, se era para dizer não podia ter dito logo. É por isso que eu digo que é uma depressão, fico mesmo angustiado com a carrada de originais.
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Já lhe aconteceu enganar-se? Recusar e perder um autor interessante?
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O caso a que não prestei devida atenção, por estar num período complicado da vida, foi o do José Eduardo Agualusa.
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O que teve dele que não publicou?
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A Estação das Chuvas.
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Quem gostava de editar?
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Alguém que certamente não me queria como editor, o Lobo Antunes, gosto bastante.
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Porque é que ele não havia de o querer?
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Não sei, ou nem eu o queria. Com aquele feitio dava asneira. Gosto muito da escrita dele, como gosto do Mário de Carvalho. Há um autor a que não dei a atenção devida, e de quem tive originais, é verdade.
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O Gonçalo M. Tavares?
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É verdade. Estiveram aqui O Livro da Dança, Um Homem Ou é Tonto Ou é Mulher e um terceiro. Eram registos completamente diferentes e eu estupidamente irritei-me com aquilo. Pareceu-me que havia presunção. E esta decisão foi influenciada. Houve uma pessoa por quem tenho estima que me fez chegar os originais, pessoa essa que tinha um cargo com relativo poder. Isso para mim é mortal. É que não consigo descolar.
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É muito avesso ao poder, não é?
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Sou feito do avesso.
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O braço-de-ferro que fez com a Bertrand… [em que para não cederem a margens altas de lucro para o livreiro, os Livros Cotovia deixaram de vender em todas as Bertrand].
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É uma teima.
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Uma editora como a Cotovia tem muito a perder em não estar numa cadeia com livrarias em cada capital de distrito.
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São 50 e tal.
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É preciso coragem. Como é que pode fazer isso?
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Não sei se é coragem ou teimosia. Custou-me caro, evidentemente.
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Isso significa o quê?
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Nos últimos tempos acabámos com a distribuição própria. E a razão principal é que não consigo dialogar com pessoas arrogantes e agressivas. Custa-me tanto pôr uma gravata como aturar um idiota que do alto da sua função tenta esmagar – “Este vem aqui porque precisa de vender, então vou impor as regras.”
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Isso é um retrato do mercado editorial hoje?
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Pelo menos daquele que mais me cega. Incomoda-me muito. E também o discurso da cultura dos agentes do livro. Acho péssimo invocar o nosso trabalho como cultural. Isso é usado sobretudo quando querem favores do Estado. Tanto somos agentes culturais como económicos.
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A poesia continua a vender como sempre vendeu?
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A poesia, algum teatro, são estáveis. 500/600 exemplares. Vendem-se durante anos, não esgotam
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Alguma vez reimprimiu um livro de poesia portuguesa?
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Não
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O mercado mudou muito em 20 anos. O caminho é este, editoras pequenas, que fazem o que gostam, para leitores estáveis?
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Esse caminho vai continuar. Há uma vulgarização da leitura e dos livros. Edita-se e vende-se mais, mas não estou a falar de literatura. Não concordo que estejam a fazer leitores. Estão a fazer aqueles leitores, ficam feitos, não têm nada a ver connosco. O que esperamos é que algumas livrarias possam sobreviver e especializar-se. Quando houver umas quantas com uma determinada orientação, como nós temos… Que uma Pó dos Livros [em Lisboa] sobreviva. Que Braga mantenha a Centésima Página, que Leiria tenha uma Arquivo…
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Tem funcionado bem a BI [colecção de bolso para a qual se juntaram a Cotovia, Assírio & Alvim e Relógio D’Água]?
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Razoavelmente. Foi muito bem recebida. Tivemos um stand na feira do livro de Lisboa – a pior feira de sempre – e correu bem. Com cerca de 40 livros editados, tudo com preços baixos, mesmo em vendas vendeu tanto como um stand normal das nossas editoras. Até ao fim deste mês teremos 60 livros.
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Isso é possível por serem amigos?
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Não. Não somos amigos. Sou amigo do Manuel [Rosa, editor da Assírio] há muitos anos, mas não é nada fácil. Todos temos feito um bom esforço. Somos individualistas. Eu e o Francisco [Vale] não tínhamos sequer relações. Cortei, desde o momento em que ele recebeu o meu irmão e o Joaquim como editor. Mas não ficaram reservas e o Francisco é de todos nós o mais lúcido, se calhar, o mais arguto. O Manuel tem a habitual dedicação, trabalhando como um louco, responsável por todas as capas e grafismo, e não dá a terceiros. Executa, mesmo que seja às três da manhã. Agora, não é por sermos amigos que nos juntámos. Percebemos que é preciso fazer alguma coisa para não perder de todo a visibilidade.
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Perde dinheiro com muitos livros?
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Sim, uns pagam os outros. À partida tenho a esperança de pagar os custos, mas nem sempre acontece.
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Como é que uma editora como a Cotovia consegue contornar isso?
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Trabalhamos muito por pouco dinheiro. Primeiro, pagamos mal aos colaboradores e recebemos mal. E tenho recorrido a dinheiro pessoal para suprir certas situações, desde sempre. Não é todos os anos, mas este ano foi um desses. Mas há anos que compensam. Não se pode é estar nesta actividade sem capital. É preciso de vez em quando insuflar.