30.9.10

“Hesito em tudo, muitas vezes sem saber porquê. Que de vezes busco, como linha recta que me é própria, concebendo-a mentalmente como a linha recta ideal, a distância menos curta entre dois pontos. Nunca tive a arte de estar vivo activamente. Errei sempre os gestos que ninguém erra; o que os outros nasceram para fazer, esforcei-me sempre para não deixar de fazer. Desejei sempre conseguir o que os outros conseguiram quase sem o desejar. Entre mim e a vida houve sempre vidros foscos: não soube deles pela vista, nem pelo tacto; nem a vivi essa vida ou esse plano, fui o devaneio do que quis ser, o meu sonho começou na minha vontade, o meu propósito foi sempre a primeira ficção do que nunca fui.
Nunca soube se era de mais a minha sensibilidade para a minha inteligência, ou a minha inteligência para a minha sensibilidade. Tardei sempre, não sei a qual, talvez a ambas, a uma outra, ou foi a terceira que tardou.”
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[Bernardo Soares, in Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, 5ª ed., 2005]

29.9.10

“Já chega de salas de coca-colas, perdemos as salas todas. No centro do Porto, não há uma sala de cinema; em Lisboa, só em centros comerciais. É preciso criar dignidade no cinema. […]
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As salas de cinema já não são dignas dos filmes?
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Não. É uma coisa para aventuras infanto-juvenis. A maioria das pessoas que vão ao cinema são miúdos. Os adultos têm mais relação com as séries televisivas americanas, onde há mais cinema clássico, do que em filmes com três mil planos. Hoje, ir ao cinema é consumir, tanto faz comprar sapatos como ver um filme. Desapareceu a ideia da sala escura, a dignidade do espectáculo.”
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[João Botelho em entrevista ao Ípsilon (suplemento do Público), 24-09-2010]

28.9.10

Filme do Desassossego

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Estreia amanhã, dia 29, no CCB (às 21.30), o Filme do Desassossego, de João Botelho, baseado no Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa/Bernardo Soares.
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O filme não terá a habitual distribuição em salas de cinema. Depois da estreia, estará mais três dias no CCB (1, 2 e 3 de Outubro), percorrendo depois todo o país: Porto, Arcos de Valdevez, Famalicão, Guimarães, Braga, Montalegre, Lamego, Vila Real, Figueira da Foz, Coimbra, Estarreja, Cascais, Beja, Leiria, Odivelas, Viseu, Funchal, Castelo Branco, Guarda, Covilhã, Santarém, Sintra, Portimão, Almada, Évora, Tavira, Ponta Delgada e outras localidades.

21.9.10

Lisboa Domiciliária

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Lisboa Domiciliária, excelente documentário de Marta Pessoa, chegou agora ao circuito comercial (está no cinema Alvalade).
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Trailer:

20.9.10

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“… por muito desenfadado o tom destas conversas críticas à lareira elas não revelam menos por isso de um intenso conhecimento do meio literário e de um plano fundamentado e premeditado. O qual seja, para não estarmos aqui com embustes ou ambiguidades escusadas: fazer o que geralmente não vejo que se faça, isto é, aclarar publicamente tramas que se ocultam, apontar flibusteiros das Letras, pondo-lhes a careca à mostra embarrilando-os pela gargalhada: sempre que preciso, denunciar os compromissos de vária ordem em que se atolam os nossos pseudointelectuaizinhos que por aí andam a governar-se à larga, seguros da sua impudência e da sua impunidade mercê das circunstâncias. Quem me conheça um tanto, sabe que outra coisa não tenho tentado durante vinte anos de editor, sacrifícios muitos e as consequências por vezes molestas, mas cá me vou aguentando, embora lhes pese. Não parti com muitas ilusões (isto desde 1945) nem as mantenho hoje muito menos, mas aposto que alguma coisa se conseguiu. E por meu intermédio, gente honesta e franca, de bom-senso e bom gosto, riu à vontadinha de contrafactores tão declaradamente cómicos como eram e são os drs. Urbano, Salema, Nemésio, David e mais espantalhos quejandos.”
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[Luiz Pacheco, Notícias Luanda, 17-10-1971, in Figuras, Figurantes e Figurões, O Independente, 2004]

16.9.10

Já está nas livrarias

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N.º 14 da Telhados de Vidro, editora Averno.

13.9.10

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SUPERMERCADO
para a Ana Paula Inácio
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Tenho 38 anos e sei finalmente o que
quero. Basta olhar para o cesto
de compras: bolachas Leibniz, papel
higiénico Renova, leite com chocolate
Agros, uma garrafa de Famous Grouse
e pelo menos seis latas de Superbock.
Discos já tenho que cheguem, por muito
que me desminta, e não viverei o suficiente
para ler todos os livros que me ocupam a casa.
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É um bocadinho banal, eu sei, mas é a minha
prestação diária enquanto consumidor, o meu fado
simples, enxuto, quase isento de lágrimas & remorsos.
Acordo para almoçar no Doce Lindo (ou Doce Belo, ainda
não houve rotina que me fizesse decorar o nome),
passo pelo supermercado, onde desejo ou nem por isso
todas as ternas e voláteis isildas deste mundo perfeito
- e volto a subir devagar as escadas de madeira rombas.
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Só muitas horas depois, quando as luzes
me garantem que o bairro inteiro dorme,
escrevo poemas como este, versos em que
inutilmente vos digo que sou um homem feliz,
un roseau pensant, o mais belo cadáver de Lisboa.
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[Manuel de Freitas, in A Nova Poesia Portuguesa, Poesia Incompleta, 2010]

10.9.10

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“Nenhuma relação existe entre a minha profissão e os versos que faço. E não é esse o mal. O mal está no carácter desapaixonado, frio, mecânico do trabalho; na ausência de uma participação da inteligência e da sensibilidade na maioria das actividades profissionais; na servidão implacável do homem instalada no próprio cerne de uma civilização que se propõe, justamente, abolir a servidão. O mal é a ausência do homem. «O deserto cresce», dizia Nietzche. O deserto não cessa de crescer. Numa sociedade alienada até à medula, como a nossa, só a vagabundagem tem a força e o prestígio de um destino; mas vagabundo parece que não chega a ser profissão, salvo quando se tem conta farta no banco. Como não é o meu caso, e a poesia não dá para pagar o almoço, o jantar, e outra vez, e outra vez, até ao fim do mundo, parece não haver saída. Enquanto se não descobrir como há-de viver o poeta sem comer, não haverá solução para estas cigarras que persistem em sonhar alegria até ao seio da morte. A não ser que se ponha em prática o que Platão já aconselhava na República: desterrá-los, simplesmente. «Para quê poetas em tempos de indigência?»”
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[Eugénio de Andrade, in Rosto Precário, 6ª ed., Fundação Eugénio de Andrade, 1995]

7.9.10

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[Fernando Lemos, Luzes do Chão]

2.9.10

“Há uma certa necessidade cultural de travar um combate persistente contra a máquina de editoras de vocação hegemónica, tentando dominar o mercado do livro português, jogando para isso no plano das próprias distribuidoras tentaculares. Os autores portugueses empenhados nos processos da mudança, que são sempre os das propostas literárias mais actuantes, deviam recusar-se a serem editados por empórios para os quais o livro é objecto da mais descarada mais-valia.”
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[Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos, A Regra do Jogo, 1981]