28.8.07

OS ÓRFÃOS DOS CAFÉS

Tal como Borges escreveu um dia, eu poderia de igual modo dizer: «Nasci noutra cidade que também se chamava Lisboa».

Borges diz que recorda o que viu e também o que os pais lhe contaram. Mas ele sabe que as nossas verdadeiras cidades são sempre as cidades da nossa infância. Por isso acrescenta: «sei que os únicos paraísos não proibidos ao homem são os paraísos perdidos. / Alguém, quase idêntico a mim, alguém que não terá lido esta página / lamentará as torres de cimento e o podado obelisco». A cidade de hoje será a infância de amanhã.

Por tudo isto gosto imenso dos livros de Marina Tavares Dias. Com uma obstinação exemplar, ela tem vindo a reerguer a «Lisboa Desaparecida», isto é, a Lisboa da minha infância e sobretudo a Lisboa dos meus tempos de estudante, mas também a Lisboa dos meus pais e dos meus avós (com o tempo tudo se mistura, e regressamos todos à mesma pátria intemporal, à Lisboa fora do tempo, onde brincámos e aprendemos a amar). Associando a isto duas outras obsessões, mas a verdade é que as duas coisas não estão separadas: Sá-Carneiro e Pessoa, ligados aos cafés que eles frequentaram e aos lugares onde passearam e escreveram.

Num desses livros envolvidos numa aura de bruma, Marina Tavares Dias restitui-nos agora «Os Cafés de Lisboa» (Quimera). Noutro dia Jorge Listopad escrevia que à saída do Teatro São João do Porto me tinha visto, no último café iluminado na noite da cidade, a escrever certamente a crónica para o dia seguinte. Não era por acaso. As crónicas escrevo-as sempre em computador. O resto (que se poderia dizer «o essencial», mas talvez isto nem sempre bata certo), escrevo-o à mão, em cadernos verdes ou azuis, nos cafés ensonados e friorentos que ainda existem pelo mundo fora.

A verdade é que adoro cafés. E que tive em cafés alguns dos mais belos momentos de leitura, encontro, discussão, contemplação, escrita, estudo, violência de olhares, ternura das mãos, de que me posso lembrar. Nesses cafés que a Marina recorda no seu livro: o Monte Carlo, o Monumental, a Brasileira, o Palladium, ou, depois, a Grã-Fina, o Nova-Iorque, o Vává. E entre os motivos que tenho para gostar do Porto estão os cafés que ainda lá existem: cafés rodeados de noite e fumo, com velhos de unhas negras, prostitutas tristes, e adolescentes sufocando a tristeza num bolo de arroz e num leite quente.
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[Eduardo Prado Coelho, in Crónicas no Fio do Horizonte, Asa, 2004]

27.8.07

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O FIM DA CINEFILIA

Quem eram os «cinéfilos»? Segundo um dos maiores críticos da história do cinema, Serge Daney, eram gente que gostava de se apresentar deste modo: nós somos filhos do cinema («ciné-fils»). Isto é, nós vemos o mundo através do modo como o cinema vê o mundo, porque essa é a melhor forma de tremer face ao medo, de olhar uma árvore ao fim do dia, de cantar numa praia nocturna a sonhar com o tesouro dos piratas ou de tocar nos cabelos de uma mulher. E por isso consideramos os filmes não apenas como arte, e elementos centrais de uma história da cultura dos homens, mas também como objectos íntimos, segredos que se passam de mão em mão, rebuçados, fetiches, berlindes, abóbadas de cristal donde a neve cai silenciosamente. Isto teve um tempo, teve lugares para se viver, velhas salas de encontros cúmplices, festivais, cinematecas, refúgios, fotografias coladas na parede, cartazes, Johnny Guitars e Gertruds da nossa vida, imperatrizes orientais de unhas lacadas a vermelho, nosferatus do espanto, monstros de terror – e no entanto, ela só dançou um verão (ela, a cinefilia).

Depois, o cinema começou a ser outra coisa, e iniciou uma deriva: por um lado, entrou nas exposições, nos palcos de teatro, nas cenas de dança, nos vídeos, nas televisões; mas por outro, regressou ao seu estatuto de mera indústria, de cabide para produtos derivados, de produção de entretenimentos leves e fáceis de esquecer, envolvidos em pipocas e luzes psicadélicas.

No entanto… Noutro dia, ao fim da noite, iniciei uma dessas rondas de «zapping» televisivo, à procura sabe-se lá de quê, e de súbito a imagem aparece. Havia imagens antes, às dúzias, mas não havia «a imagem». A imagem: era um homem que incendiava uma casa junto ao mar, e depois corria desvairadamente à volta, corria e voltava a correr, e corria ainda, e ainda, e ainda, e chegavam outros, num carro, que o pretendiam apanhar e ele corria mais, corria sem ter para onde correr, corria para ficar longe de si mesmo, no desespero de quem se enrodilha na própria sombra, e por fim, havia uma árvore, e uma criança serena que lia debaixo da árvore, e era a paz depois do incêndio. Olhei e senti: esta é a terra do cinema, aquela que eu amei tantas vezes (às vezes de mãos dadas). Percebia-se pelo tempo absurdo das imagens que eram imagens não para serem vistas mas para serem vividas. Tratava-se de um filme feito por um homem que ia morrer: Tarkowski, «O Sacrifício».

No momento em que desaparece uma sala de cinema, o São Jorge, eu sei que é mais um sinal que se acumula: é o longo fim da cinefilia, a minha terra perdida.
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[Eduardo Prado Coelho, in Crónicas no Fio do Horizonte, Asa, 2004]

26.8.07

Eduardo Prado Coelho (1944-2007)

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Desapareceu aquele a quem Pedro Mexia chamou, muito acertadamente, o último crítico e o último intelectual dominante, alguém com uma posição em Portugal de certa forma comparável à dos intelectuais franceses há algumas décadas atrás. Hoje, claro, tudo isso se extinguiu e os intelectuais foram substituidos pelos gestores e economistas.
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Podem ser lidas aqui muitas das crónicas que escreveu para o Público.

24.8.07

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[Pablo Picasso, Rapariga Lendo um Livro na Praia, 1937]

14.8.07

Luiz Pacheco em entrevista à Kapa (1992)

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Em 1992, Luiz Pacheco deu uma extensa entrevista à saudosa Kapa, no número 22, de Julho. Os entrevistadores foram Carlos Quevedo e Rui Zink. Aqui fica:



PARA DAR O EXEMPLO
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Por Carlos Quevedo/Rui Zink
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FOMOS ENTREVISTAR O MAIOR ESCRITOR VIVO. O MAIS ESCRITOR, O MAIS PORTUGUÊS, O MAIS VIVO: LUIZ PACHECO
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Luiz Pacheco, escritor, sofre de asma brônquica. Calvície precoce. Fractura do úmero devido a tentativa de suicídio na Av. De Berna. Queda de dentes natural quase total. Efizema pulmonar bilateral diagnosticado em 1958, obrigado a uso permanente de botija de oxigénio, à noite e ao levantar. Hérnias inquinais não operadas com uso de funda dupla. Hipersensibilidade ao álcool, o que o conduziu a uma fraudulenta fama de alcoólico incorrigível.
Tratamento de desintoxicação no Centro António Flores, ambulatório e dois internamentos. Miopia e astigmatismo, quase cegueira. Bissexual assumido. Leve surdez do ouvido esquerdo. Andropausa total. Três mulheres reconhecidas. Três estadias no Limoeiro: 1957, 1959, 1968. Duas estadias na cadeia das Caldas da Rainha: 1967, 1968. Prisões ocasionais e breves em esquadras da polícia. Autor, entre outros títulos, de: Literatura Comestível. O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor. Exercícios de Estilo. Comunidade.
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K: Que idade é que tinha quando escreveu o Libertino?
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Tinha 36 anos. Estava à espera que me servissem o almoço na Pensão Oliveira, e enquanto me serviram fui relatando os acontecimentos da véspera. Vê-se que houve pressa de escrever.
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K: Não houve modificações?
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Não, quase não houve. Este texto é o que mais me tem rendido dinheiro, mas também rende famas, rende (risos)… porque eu não estava lá em Braga para andar atrás de magalas. Quanto a mim este é um texto circular, começa na morte e acaba na morte, acaba no fracasso. Há sempre uma ideia, quando se faz um texto, há uma ideia estética por trás. A ideia estética que está por trás deste texto é uma coisa que eu nunca vi que é o chamado cinema verité. É aquele gajo que sai para o meio da rua com uma máquina, não é? e começa a filmar coisas. Mas, é claro, este cinema verité é falso, porque a máquina não filma indiferentemente, a máquina filma para onde ele aponta a objectiva, não tira fotografias, é ele que escolhe os ângulos. Portanto, o cinema verité, que em princípio seria um cinema de verdade, é um cinema de construção como qualquer outro. Aqui um bocadinho por trás do texto, sem se dizer nada, houve a noção isto: «Vamos lá ver onde é que eu andei ontem e, antes que me esqueça, escrever tudo».
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K: Há quem diga que só começou a escrever nos anos 60. É verdade?
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Nos anos 60? Não! Eu comecei a escrever até bastante novo; agora publicaram um texto meu escrito com 20 anos. Não, nos anos 60 já quase não escrevia.
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K: Agora já só faz reedições? Passou à história?
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Ó pá, é muito difícil, no meu estado, escrever capazmente. Um escritor é como um boxeur ou como um futebolista: tem prazo de validade. Há obras que se fazem em ascensão. O Beethoven, por exemplo, vai sempre em ascensão – a 9ª sinfonia, depois seria a 10ª, depois seria a 11ª, se ele aguentasse mais um tempo. E há obras que se fazem um bocadinho datadas. Insistir depois disso seria estúpido. O que me distrai agora é gravar. Mas como não tenho luz, até gravar é difícil. E as pilhas são um balúrdio, as cassetes são um balúrdio, um tipo está a gravar às escuras, de repente já está a gravar por cima de outra coisa… De maneira que agora estou parado, estou reformado. Eu escrevo: escriba/reformado, ou reformado/escriba, tanto faz. Não estou à espera de fazer nada de especial.
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K: Eu pensava que a diferença entre o futebol ou o boxe e a escrita é que eles eram obrigados a reformar-se aos 30 anos e nós podíamos continuar até à vitória final…
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Você está a assistir àquilo que eu chamo escritor/escriba avençado: é um tipo que tem que fornecer à editora todos os anos um original e que portanto vai lá ao fundo da gaveta, sai-lhe a palha e faz um original. Você não acha que o Vergílio Ferreira está já reformado há muito tempo?
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K: Sim.
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Então porque é que publica? É uma questão de taco. Uma questão também de, enfim, sei lá, de hábitos, de vaidade, de poder. O Saramago se tivesse ficado pelo Memorial do Convento não teria ficado melhor? Agora até publicaram os textos macacos que ele escrevia no Diário de Notícias, no Diário de Lisboa, as opiniões que o DL teve, Basta de Censura, uns poemas que são uma calamidade. Contaram-me que agora (não sei se é verdade se é mentira) a Caminho recebeu uma encomenda de Angola de um ministro a pedir 500 exemplares do Manual de Caligrafia e Pintura, porque o homem supôs que era um manual mesmo, uma maneira de ensinar a escrever a pretalhada, em vez de escreverem gatafunhos. Sabia desta?
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K: Não, não conhecia essa anedota.
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Não passa de uma anedota, não é? A má língua aqui é muito grande, e o Saramago hoje tem 99% das invejas nacionais de todos os escritores, porque de facto ele conseguiu uma posição que mais ninguém tem, nem mesmo o Fernando Namora se fosse vivo.
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K: Mas a ideia que eu tenho é que o Saramago vale um pouco mais que o Namora.
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É pá! Nem me digas isso, pá, o Namora é abaixo de cão, nem é abaixo de Namora, é abaixo de cão, isso eu escrevi! E, aliás, ainda por cima é gatuno, roubou lá umas coisas ao Vergílio Ferreira. Nesse ponto o Vergílio Ferreira tinha uma posição de grande valor intelectual e bagagem ensaística. Agora foi ultrapassado por este, o Saramago, que é muito mais novo. É inteiramente justo. Eu comprei o Evangelho, ele costumava-me mandar, mas eu comprei: li duas páginas e depois fui ver que faltavam ainda 500 ou 400 e não li mais nada.
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K: O seu filho Paulo é no encarregado do seu espólio?
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Sim, o Paulo está encarregado e tenho a impressão que vai fazer uma grande fogueira aí em casa, ali na varanda ou no guarda-tudo, que ele tem uma procuração legal para me representar junto da SPA; e esta edição já é obra dele, esta edição já pode considerar-se póstuma. Eu vi esta edição assim como ela está agora. Revi com muito cuidado, detesto gralhas, fiz uma ligeira limpeza do género de umas exclamações, umas reticências. Mas o texto está aí integralmente e – há mal em dizer isto? – o que era giro não era publicar isto agora, o que era giro era publicar isto como ele foi publicado em 1970, com a PIDE, com censura, com repressão, isso é que foi giro, publicar em 1970 e depois uma actualização em 73, 72/73, três mil exemplares. Foi debaixo da repressão e nessa altura quem escrevesse isto em Portugal, não havia ninguém, que eu saiba não houve ninguém, parece que há uma coisa do Costa Ferreira, o Costa Ferreira em 68 publicou um texto assumindo a sua homossexualidade, que no Libertino nem está assumido, não é assumida, não se passa nada. Sexualmente falando, bem espremido, o Libertino é uma «nega» pegada, são sopas e mais sopas.
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K: Porquê Braga e não a Buraca?
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Se não fosse em Braga não tinha a mesma importância. Braga, com fedor a padre, era uma cidade de facto perfeita. Eu até era para dedicar isto ao Arcebispo de Braga, mas aí o meu filho e a tipografia acharam mais prudente não o fazer. Era para dedicar isto àquele gajo que nem abortos, nem preservativos, nem mães solteiras nem nada disso. Era para o insultar, porque Braga de facto continua a ser um expoente da pata da Igreja em Portugal. Portanto em Braga há esse desafio, esse desafio D. Juanesco, o tipo que vai lá buscar a noiva ao convento para fazer a sua ofensa a Deus, quer dizer, toma Deus como seu rival. Em 1970, já depois disto escrito, comecei a interrogar-me sobre o que seria libertino e libertinagem e não achei definição. Eu tinha li o Roger Vailland e tinha lido o Sade. A primeira pessoa que editou o Marquês de Sade em Portugal fui eu.
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K: O que é um libertino?
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O libertino para mim, é mais fácil de definir pela negativa. A libertinagem não é o medo, não é a devassidão, não é a tristeza. É o ateu progressista. É preciso não esquecer que o Marquês de Sade, depois de ter saído da Bastilha, pertenceu a um comité do povo, e nesse comité do povo ele fez uma acção humana, que foi salvar a sogra que o tinha perseguido durante 40 anos ou coisa que o valha. Ele não mandou cortar a cabeça da sogra, mas a sogra merecia.
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K: Porque é que o libertino não é um devasso?
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O devasso é o gajo que não tem regras, é o gajo que vai a todas, é um bocadinho o Ribeiro de Mello, benza-o Deus, que já está no outro mundo. A Natália Correia é uma devassa, vocês ponham isso que ela fica toda zangada, mas ela é uma devassa. Por exemplo, ela foi à estreia, não, ela não foi à estreia mas foi lá ver a Comunidade e ela diz: «Afinal de contas o Luiz Pacheco é um pater famílias, a libertina sou eu». Eu, se estivesse lá dizia: «Ó sua maluca, você não é uma libertina, você é uma devassa», é uma estragadona que não respeita pai nem mãe, vai meter-se com o irmão de uma mulher minha, com um tio deste, quando eu estava preso no Limoeiro. Ela meteu-se com uma mulher minha. Quer dizer, abusou da situação de eu estar preso para aproveitar uma rapariga que estava lá em casa por caridade. E depois, quando eu saí, claro que fiz uma guerra, ataquei uma mulher dela, à má fila, para ela saber o que é bom. Portanto vocês têm uma noção de como é o libertino, eu tenho esta que é feita por negativas. O libertino faz da sua vida um espectáculo; ora este texto é um espectáculo, é a tal noção do cinema verité, quer dizer, vai mostrando o libertino a fazer aquelas maluqueiras todas, com o vinho verde, que é um vinho que não dá muita perturbação. Vai mostrando os fracassos, vai-se confessando, mas também há um certo gozo masoquista disso. O que não é tristeza.
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K: Portanto a diferença aí é mais o assumir o que o devasso esconde.
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Sim o devasso esconde e baralha, e…
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K: Em A Comunidade ou outros textos há sempre este jogo autor/personagem e, já agora, há a questão do Limoeiro.
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Quando eu digo que fui para o Limoeiro três vezes, as pessoas podem ficar a supor que matei o pai, matei a mãe, matei a avozinha. Quando fui para ao Limoeiro, por exemplo, por dar um beijo a uma menina de 15 anos! Pregaram comigo no Limoeiro por atentado ao pudor e depois de estar lá um mês, cheio de medo, absolveram-me.
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K: Foi denunciado por quem?
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Fui eu que me denunciei. Fui eu que disse na Judiciária. «O senhor teve alguma coisa com a menor?» «Sim beijei-a». «O senhor beijou-a?» O agente foi excepcionalmente simpático, disse-me: «Eu devo avisá-lo de uma coisa: a sua posição no processo permite-lhe mentir». Mas eu estava armado em D. Juan, em galã, «não, eu não venho aqui para mentir». Claro que também não disse a verdade toda. Não foi só o beijo, está claro. Mas nem o beijo comprometia a rapariga, e mostrava que tinha uma grande paixão por ela. Até tenho uma filha – a irmã mais nova deste chama-se Maria Eugénia por causa dessa rapariga.
Portanto, quando se fala em Limoeiro não vão julgar que eu andei para aí a esfaquear pai e mãe. Por exemplo, eu fiz coisas muito mais perigosas cá fora pelas quais nunca fui preso. Fui para ao Limoeiro e à cadeia das Caldas das Rainha duas ou cinco vezes.
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K: E também esteve num sanatório, não foi?
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Fui parar ao sanatório de Torres Vedras. As pessoas diziam: «Então este gajo é tuberculoso, tiraram-lhe um pulmão. Terá um cancro?» Não, fui parar ao sanatório porque não tinha onde dormir, não tinha onde comer e pedia. E como tinha a asma, lá ia para o sanatório com diagnóstico de tísico. Fui para ao Rego duas vezes com diagnóstico de diabetes descompensada. Ora eu nunca tive diabetes, eu pedia era à médica para me meter lá um mês ou dois no Rego a comer e a beber e dar-me injecções, que eram uns tónicos. Diabetes descompensada! Nunca tive diabetes na minha vida.
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K: Então as duas prisões foram sempre por atentado ao pudor?
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Atentado ao pudor não, estupro, primeiro, atentado ao pudor, e depois outra vez atentado ao pudor. Com a mãe daquele foi pior, foi por rapto e estupro. Não raptei nada. Bem, estupro, faz favor, nasceram três, nasceram dois e meio pelo menos.
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K: Porquê «meio»?
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Porque acho que esteve metido outro gajo.
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K: Comunidade foi muito depois de Libertino?
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Comunidade é posterior. O Libertino foi escrito quando eu estava com a Maria do Carmo e a Comunidade foi escrita quando eu já vivia com a Maria Irene, aqui em Setúbal. Não foi escrita em Braga. Separa a Comunidade cinco anos: outra mulher, outra situação. Que me leva a um texto para mim falhado, porque aquilo queria ser um texto ofensivo e não consegui.
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K: E porque queria fazer um texto ofensivo?
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Era para mostrar que era possível a felicidade com as condições materiais mínimas. Queria mostrar àqueles senhores tipo Natália Correia, que eles não são mais felizes do que um casal que se dá bem na cama e que tem os filhos à volta e que está a progredir. E depois há o caso contrário. Eu tinha um texto que era o anti-comunidade, que não acabei: O Caso do Bife Voador, que é a mostrar o desagregar da comunidade. Por isso é que de repente aparece o sete e meio, a rapariga (era a mãe deste) tinha 17 anos, já tinha dois filhos, estava a criar dois sobrinhos, os tais da Maria do Carmo, que era irmã dela, e de repente achou um rapazinho que vivia lá em casa. Eu estava a ver aquilo há que tempos mas fui para ao hospital e ela à cama do outro.
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K: As suas mulheres eram todas assim tão novas?
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Sim, eu gostava delas mais novas. A Natália foi minha testemunha num julgamento e disse: «Ele procura a pureza, a inocência». Ah, qual pureza e inocência. Hoje já não procuro nada, nem novas nem velhas. Nesse ponto estou inteiramente reformado. Mas era uma questão de opção, é muito curioso o amadurecer do sexo, numa rapariga ou num rapaz de 14, 15 anos. Talvez fosse uma devassidão minha mas aconteceu de facto. Ora aí não quero julgar nada…
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K: Mas ainda hoje a lei diz…
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Sim, mas está muito modificada, o caso de estupro era um caso de Direito Público, o queixoso retirava a queixa e o Ministério Público não consentia. Hoje é um caso de Direito Privado. Por exemplo, na primeira vez que fui para ao Limoeiro, a questão era esta: eu queria casar com a rapariga, e ela também queria. Ambos éramos menores. Eu emancipei-me, mas ela tinha um problema com a mãe, que fugira, andava pelas feiras aos tirinhos, e o pai tinha-se enforcado com outro nome. Era preciso constituir um conselho de família.
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K: Enforcado? Quer dizer tinha-se casado?
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Não, não, tinha-se mesmo enforcado. O pai era casado com outra. Antigamente fazia-se isso, dava-se um nome que não coincidia, por exemplo, chamava-se Manuel Alves e dava o nome de Simão Pereira… E não coincidia o morto… E havia o problema da mãe, que também era menor quando a teve…
Essa coisas hoje estão muito atenuadas. Em qualquer parte do país se vê. Não é preciso ir a Lisboa: vejo um casal no jardim nas grandes sarrafadas. Antigamente vinha logo um polícia, «hep, estão a pisar relva!»
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K: Nunca se tentou suicidar?
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Tive dois ameaçozitos. De um ameaço salvou-me o Cesariny e o Carlos. De repente estive para me mandar para dentro de água…
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K: Chegou a atirar-se?
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Não, eles seguraram-me a tempo. E tive outro caso, mas estava bastante embriagado. Tinha uma vida muito difícil. Hoje não me admiro nada, tenho uma grande resistência. Agora é que eu me sinto muito enfraquecido, ando à procura de quarto e vêem um tipo com uma botija de oxigénio, já assim velhadas, e depois pensam que vou morrer lá para casa. Eu queria ver se entrava para um asilo, um lar, antecâmara da morte. Fomos ver um mas são caríssimos e tratam mal as pessoas. Eu até disse ao Paulo para vos convencer a não vir cá porque estou diminuído com esta história do quarto. Estaria muito mais bem disposto se já tivesse alugado o quarto hoje de manhã. Olha, não viessem.
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K: Eu não imagino Lisboa dos anos 50 e a sensação que tenho sempre em relação a Portugal é que a tradição do século XX em relação a escritores é que, primeiro são todos de boas famílias, e depois acabam por ter dinheiro. O Luiz Pacheco não tem…
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Paulo, tens de ir lá acima buscar o livro de família para eles não julgarem que eu sou de famílias ruins. A minha família era uma família da pequena nobreza rural. Vamos, não nasci em berço de ouro, mas também não nasci no orfanato. A família já era uma família em decadência, veio de Elvas para Lisboa. Os coronéis acabam-se, este professor, este Mário Pacheco, poeta/professor morre em Viseu. O meu pai era um borguista, é preciso ver as coisas no seu tempo. O meu pai era um gajo da Belle Époque, estava-se marimbando para o dinheiro, tocava piano e tinha um ouvido excepcional. Mas em vez de se empregar num bar ou numa boite para ganhar dinheiro, não: punha-se à tarde a tocar piano para ele. Fiz o liceu no Camões até ao 7º ano e depois ele disse-me: «agora não te posso dar mais». Mas eu quis continuar e continuei mais um ano como aluno fantasma. Pedi aos professores se podia assistir às aulas e deixaram-me, mas não me esqueci da matéria, fui lendo, li o Fernão Lopes todo, o Gil Vicente todo. Nos intervalos ia para a biblioteca. Quando cheguei à faculdade fui o melhor, é natural, tinha tido um ano inteiro de prática. Depois desnorteei-me com umas saias e não acabei o curso. Fui para empregado de agente fiscal da Inspecção de Espectáculos ganhar 600$00 por mês. Depois apareceram-me um filho, outro filho, depois comecei a sair da minha mulher, arranjei outra, quartos, pedi a demissão da Inspecção de Espectáculos, que foi uma estupidez. Foi uma estupidez? Bah!... Na altura até foi bom. E aí comecei a vida de saltimbanco.
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K: E a par com a vida de saltimbanco veio a tertúlia intelectual? Ou não? Porque uma coisa parece que tem a ver com a outra.
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Não, isso eu já desde 1945/46 que me dava com uns rapazes. Do Camões eram dois: o Jaime Salazar Sampaio e o José Cardoso Pires, do qual eu ia sendo cunhado, ia casando com a irmã. Fui explicador dela e do irmão mais novo. Vocês leram o Hóspede de Job? Ele dedica «ao meu irmão António Nuno», como se lhe tivesse um grande amor. Ele dava porrada no irmão! E depois falava dele como se fosse uma vítima da guerra. Não era nada, era maluco. Era piloto, pôs-se a fazer loopings por cima da casa da namorada, ali em Loures e, claro, foi parar à capoeira das galinhas. E depois o mais giro é que n’ O Século dizia assim: «aviador morre carbonizado num desastre de aviação». Ficou reduzido a um chouriço, coitadito… E o jornalista continuava com um ar muito indignado: «Estes aviadores que arriscam o material de guerra do estado deviam ser severamente castigados» (risos). Agora o Cardoso Pires é um cínico do diabo. Cada êxito do Saramago, ou prémio, o Cardoso Pires emborca três garrafas de Whisky (risos). Eu sei, escuso de ver. Deve ficar com uma penca enorme. Deve ter uma inveja do Saramago! Outro dia o tipo d’ O Jornal disse-me: «O Cardoso Pires é um tipo que não admite a sua idade». Ora, ele deve estar quase com setenta… E tem uma vida muito mais mexida do que a minha, muito mais movimentada, muito mais bebida e muito mais comida, com mulheres e viagens, etc. Eu, desde que tenho a reforma estou retirado. Porque vocês reparem numa coisa: também o subsídio e a reforma são castradores, porque dão a chamada disponibilidade económica. Porque é que eu vou escrever para aqui e para acolá, para ganhar um conto ou dois, quando eu tenho por mês que chegue para a minha vida? Não faço. Dá as tais vantagens inibidoras. Porque escrever por necessidade dá para escrever muita asneira, mas também dá para escrever coisas boas, de repente, sai coisa séria.
Agora há também outra coisa: há outra maneira de escrever. Eu não posso escrever como faz o Miguel Esteves Cardoso. Há outra maneira de humor, de escrever, há outra maneira de chegar a um público novo que eu conheço mal. São estas raparigas, estes rapazes da geração das cassetes e dos vídeos. Essa geração para mim é um bocadinho alheia, o contacto que tenho ainda é com este (o Paulo), e às vezes pergunto-lhe «epá, viste este filme?» e conversamos um bocado. É o meu único contacto com esta geração, porque este tem 29 anos, eu tenho 67, são mais 38 anos.
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K: Que pensa dos novos escritores-jornalistas?
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O Fernando Dacosta… Nunca li nada do gajo, a não ser umas crónicas bem feitas, bem esgalhadas. Agora os livros não li, e ele tem uma pretensão… Agora esta Pedrosa é uma estúpida. Conhecem a Inês Pedrosa?
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K: Mal.
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Deve ser muito estúpida. Li umas coisas dela horrorosas, completamente idiotas. É claro que essa malta se protege uns aos outros… É uma máfia. É uma geração que está a avançar, e portanto protegem-se.
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K: Mas na sua época também havia máfias, não?
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Aí é que está. A minha geração, o Cesariny, o Virgílio Martinho, o António Luís Forte, eu, o Manuel de Lima, o Manuel de Castro…
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K: O Gonzalez…
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Não. Isso já é miséria… Não é por ser mais novo, o Gonzalez é mesmo uma miséria. Não, a nossa geração era muito agressiva, mazinha. Não havia panelinhas… E tanto que nos zangávamos todos uns com os outros. O Cesariny e o Lima de repente detestavam-se. E o António Maria Lisboa zangou-se, o Mário Henrique Leiria zangou-se… Porque essa geração, a do Café Gelo, éramos muito maus uns para os outros. Dizíamos nas caras uns dos outros, escrevíamos coisa uns contra os outros…
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K: Mas essa geração não teve poder. O Cesariny é hoje consagrado porque tem uma editora que o suporta muito…
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Não, mas ele tem público.
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K: Mas não tem poder.
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Não quer. Ele fez aquelas pinturas, mas isso é para poder gastar umas coroas ali com os meninos do Rossio. Também deve pagar muito caro porque ele está com uma cara!... Outro dia vi o gajo no Tal & Qual com o Mário Soares… Ele já não tinha os dentes desde muito novo, mas agora tirou a dentadura e está com um queixinho de velha, aquilo vai-lhe até ao nariz, coitado… O Mário teve aqui um problema chato por causa de um magala. Depois foi para Paris, onde havia tudo especializado: boites especializadas, tabelas, pensões… E o Cesariny era um poeta dos urinóis. Chegou a Paris, ia com esse hábito e botou a mão à sarda de um homem que estava a mijar – resultado, foi parar à cadeia. O chefe da esquadra perguntou-lhe: «Então como é isso la-bas? E ele disse: «É como cá»; mas não era, porque o chefe da esquadra disse: «Então você tinha para aí tantas pensões para fazer isso, era preciso ir para o urinol deitar a mão à gaita do outro?»
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K: Como é que explica que em França os surrealistas fossem praticamente homófobos, e o grupo surrealista português tenha uma forte presença homossexual?
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Não, aqui não havia tantos como isso. Por exemplo, este texto. O Libertino, foi um espanto para o grupo do Café Gelo. Ficaram espantados como é que de repente aparecia aqui atrás de um magala. Eu era considerado um pai de família, tinha dois filhos, tinha casa.
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K: Mas isso é a tradição homossexual portuguesa.
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Sim, isso é para tapar. Casam-se. É o caso da Natália Correia, já vai no 4º marido para tapar, ela não gosta de homens (eu sei lá do que ela gosta ou do que não gosta!). Não, esses casamentos de conveniência para tapar os vícios ocultos, acho que há em todo o lado.
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K: Nunca saiu do país?
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Estive em Itália só uma vez, ia fugir para o Egipto. Em relação a esses tipos, o Cardoso Pires, o Saramago, o Salazar Sampaio, eu sou um atraso de vida, porque sou um gajo de 1800 e tal 1900. Olha, nunca andei de avião. Estive em Roma e fui num comboio e vim noutro. Eu queria ver se ia para o Egipto para fugir a uns processos, porque eu tive mais processos-crime. Cheguei a ter cinco processos ao mesmo tempo: o processo do Marquês de Sade, o processo da Natália Correia com a Antologia, o processo da mãe deste, da menor, o processo da dona de casa…
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K: Confesse. Não foi ao estrangeiro por snobismo…
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Não, foi por opção. Como é que eu podia ir para fora sem dinheiro nenhum? Os paizinhos dos outros tinham dinheiro… O pai do Mário tinha dinheiro, o António José Forte casou com uma rapariga do Congo Belga com dinheiro, foi para a Bélgica porque tinha dinheiro.
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K: O Cesariny tinha dinheiro?
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O pai tinha. Mas vamos lá a ver. O Cesariny era um tipo extremamente dotado. Pode pintar muito mal, mas pinta. Foi aluno de piano do Lopes Graça e pode tocar mal, mas toca. Eu não sou capaz disso. A gente tem de ter noção das distâncias. O Cesariny, esteticamente, é um tipo muito mais rico do que eu, muito mais polifacetado do que eu na sua actividade. Eu reconheço isso, tanto que editei o Cesariny antes de me editar a mim.
Agora há é outra coisa que não se compra nas lojas, que é o carácter. Ele não tem carácter nenhum, e as perseguições de carácter homossexual do Cesariny deitaram-no muito abaixo. Também foi uma vítima da repressão.
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K: Não era só a polícia eram também os neo-realistas. A acusação dos neo-realistas aos surrealistas não era «cambada de maricas»?
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Sim, mas eles tinham lá o Ary dos Santos, não me comeces a puxar pela língua!...
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K: Não estamos aqui para outra coisa.
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Chamavam «cambada de paneleiros». Eu tinha fama de bêbado, bêbado incorrigível. Epá, eu whisky bebi dois na vida, com três cervejas no bucho já fico assim troque-troque. Então isso é que é bêbado? Eu tinha era já o fígado como o do Cardoso Pires, que deve ter um fígado que nem para isca serve. Não, essas famas criam-se de propósito para aniquilar e sabes que os neo-realistas é que eram uma verdadeira máfia: o Vergílio Ferreira, o Namora, o Mário Sacramento, o Óscar Lopes ainda hoje eles são uma força. Eu sei que não me gramam e quando falam é assim lá para baixo. É preciso ver que eu fui sabotado, porque quando comecei a desancar A, B, C, D, os gajos não perdoaram. Ainda agora o João Paulo Guerra contou ao Paulo que o Miguel Urbano Rodrigues disse, quando era director de O Diário: «o Pacheco aqui não entra, porque ele diz mal da minha família». Isto é um conceito revolucionário!
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K: O facto de ter sido simpatizante do PC nunca lhe facilitou…
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Não. Nunca, eu até acho que fui saneado, não sei porquê, paguei ontem a quota de Junho. Não me deram o cartão este ano, convencidos que eu me importo com isso. Eu continuo a votar no PC. No PC, na CDU, nessas coisas, mais ou menos por uma questão de simpatia. Não fui para o PC para arranjar empregos. Eles tiveram lá a minha ficha mais de seis meses. Eu tinha posto 100$00 de quota, acho que é o mínimo que se pode pôr, e ao fim de seis meses perguntei o que se passava, disseram que a tinham perdido e pedi outra e pus 200$00 de quota e admitiram-me e tive o cartão. Agora este ano tinha que o renovar. Ontem fui lá e passaram-me para a DORS de Setúbal e desculparam-se com o computador… e eu disse que não pagava mais até vir o cartão, já lá vão seis meses…
Não fiz nada, a não ser que dei 1000$00 para a nova sede aqui de Setúbal do PC e disse: «Há lá um tijolo que é meu», e eles agora vão transformar a sede num centro comercial e vão alugar aquilo para lojas e casas de família. Então o meu conto foi mal empregado, mas calculo que seja isto, eu andar ali em Setúbal com um rapaz das FP-25, que todos os fins-de-semana tem que se apresentar em Azeitão, à polícia. Esteve cinco anos preso como autor moral de um crime de delito comum. Eu também não vou perguntar, quando chegarem as eleições ponho lá o meu voto. Não se pode julgar um partido pelo Comité que de repente é um desastre não é? Também não podes julgar a igreja pelo padre da Madeira, ou pelo padre do Alentejo que fez lá o desmancho à rapariga. Se um tipo tem simpatias, tem uma tendência por uma religião ou por um partido político, mantém! Essas repressões a título pessoal, a título de dirigentes, basta ver o que deu na Rússia e nestes lados todos. Ai não querem? Está bem. Agora enquanto não vier o cartão não pago mais quota nenhuma. Eu fico na mesma, para mim o PC ainda é o partido que se aproxima mais da classe trabalhadora – muito aburguesado, muito isolado mundialmente, mas ainda é a coisinha melhor que há aí para mim, como pessoa. Eu até talvez arrisque um bocado esta bolsa da SEC, a dizer que sou comunista. Bah! Também se a SEC me tirar os 50 contos vou para um asilo ou meto-me debaixo de um comboio… Ou então este gajo (o Paulocas) que me sustente!... (risos)
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K: Em que momento é que se zangou com o Cardoso Pires?
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Começou muito cedo. Ele era um tipo muito consciencioso a escrever e mostrava-me sempre primeiro. Um dia ele estava a ler-me um texto e eu mostrei-me desinteressado, e ele disse: «Tu não estás a ligar nenhuma!» E eu respondi: «Não estou, porque não estou a gostar.» Ficou todo chateado. E depois ele chegou-se muito aos comunistas, para ter apoios, para ter público… Este último livro o Alexandra Alpha já nem li, e a Balada da Praia dos Cães é um disparate. Há um livrinho do cabo, um livrinho de memórias, bem não tem valor literário, mas é um documento muito mais giro que a Balada da Praia dos Cães.
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K: e como surgiu a ideia de fazer um livro a partir de um conjunto de cartas?
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No tempo do fascismo , a epistolografia era considerada um género menor, mas como não havia censura às cartas, eu gostava muito, porque não tinha medo que mas abrissem. Escrevia tudo o que me apetecia. O Pacheco vs. Cesariny é um documento para quem quiser estudar uma certa época literária portuguesa. Literária e não só…
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K: Mas as pessoas não se chatearam de lhes publicar as cartas?
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Alguns sim. Mas eu não podia publicar as minhas cartas e as dos outros sem pôr os nomes. Isso sempre foi um hábito meu, dar o nome aos bois. Depois um dia apareceu o Listopad a dizer que nunca mais me ia escrever nada, porque eu podia publicar as cartas dele, e eu respondi-lhe que estivesse descansado, as cartas dele não tinham nenhum interesse literário. Só me interessava quando tinham um cheque lá dentro. Também, nunca eram mais de 100 ou 200 paus…
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K: Viver à margem foi…
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Ninguém quer marginalizar-se, ninguém quer viver mal, ninguém quer passar mal. Só uma pessoa com aberrações mentais, um louco.
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K: Você acha que não teve outra alternativa?
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Sim, não tinha outra alternativa. Sim, teria, agora não vou dizer que tinha ou não tinha, agora já não vou a tempo. Mas há uma descida económica, há um sair do carreirismo literário, e há também um empurrão para isso. Por exemplo, quando eu publiquei o Vergílio Ferreira, publiquei uns contos dele, chamada a fase sangrenta. Os surrealistas ficaram desesperados comigo, porque tinham-se convencido que eu era o editor só deles. Quando eu publiquei o Herberto Hélder, o Cesariny ficou desesperado comigo, porque estava convencido que eu era editor só para ele. Ora, francamente, um gajo se quer ser editor e tem uma noção estética do que está a fazer, estética e ideológica e política e de intervenção, não vai ficar limitado a um único autor, até porque esse único autor está a inflingir uma zona que não lhe interessa. Fui buscar o Herberto Hélder, fui buscar o Vergílio Ferreira, fui buscar outros autores, por isso é que a minha editora se chamava Contraponto. Eu levei meses a achar o nome de Contraponto, meses.
Não tenho assim uma grande formação musical, mas ainda sei o que é o contraponto na música.
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K: Mas você alimentou um bocadinho o mito do marginal…
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Eu não precisei de alimentar o mito, ele cresce por si. Por exemplo, o Mário Alberto diz que eu fiz uma acção heróica, que fui levar uma coisa ao Presidente da República. É tudo aldrabice (riso), é tudo aldrabice, então eu ia alguma vez entregar uma coisa ao Américo Thomaz, ou à mulher? Ia logo preso. Mas ele diz com um ar tão importante: «Mostrou aí muita coragem». Não mostrou coragem nenhuma! Eu assinava tudo no tempo do fascismo, já sabia que o gajo que era encarregado de levar aquilo à PIDE, não ia lá, já sabia que ele rasgava a lista a toda a pressa.
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K: Mas o estatuto de louco ajuda sempre…
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Há o estatuto do louco, o estatuto do bêbado, o estatuto do estroina, há o estatuto do vagabundo, do homossexual…
Esses estatutos são rótulos que nos colam em cima. Depois, para um tipo arrancar essas peles, isso é pior do que O Silêncio dos Inocentes quando o gajo queria fazer o fato com a pele das mulheres. Esse estatuto está colado. Por exemplo, vocês podiam agora ir tirar fotografias no meu quarto e ficavam logo com uma impressão muito diferente de mim.
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K: Ouve notícias? Tem interesse pelo que se passa?
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Sim, agora tenho lá um aparelho que pifou anteontem, não sei. Acho que são as pilhas. É muito pequenino, só apanho a Rádio Azul, a rádio de Setúbal. Agora não posso comprar jornais, porque estou na eminência de ter que pagar de quarto 30 000$00. Já fico um bocadinho coibido, não é? Eu tenho uma alimentação muito fraca, estou mesmo no osso, pele e osso, mas vou ao INATEL e pago 475$00 por um almoço, e depois não como durante quase todo o dia, tanto mais que por causa da hérnia esofágica não posso comer muito, tenho de tomar remédios, tenho que tomar uma espécie de cimento. Agora já estou mais ou menos bem, já vi aqui o meu neto a andar, que o gostava de ver andar, e quero ver se vejo este gajo formado. Eles têm aqui um encargo grande de 60 contos de juros à Caixa Geral de Depósitos, 60 contos, 20 por cento sobre 3 mil contos. Esta coisa custou, sabes quanto custou esta coisa? 6 mil contos, e agora estão a pedir por iguais, aqui no Pinhal Novo, 14 mil contos e depois eles abatem por mês 2 contos e pagam por mês de juros 60 contos, olha que é um disparate, abaterem na dívida 2 contos por mês e pagarem de juros 60 contos que é para os gajos fazerem aquele grande edifício da Caixa Geral de Depósitos e para mamarem o mais possível. E a vida tem aumentado muito mais que os tais 8 por cento ou 9 por cento da inflação. Vocês não compram remédios como eu compro, eu compro muitos remédios.
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K: Há quanto tempo está sozinho, sem mulher?
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Caramba, isso desde 1967.
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K: Que está sozinho?
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Sim, sozinho em quartos alugados, uma aventura assim ou outra, e tal, não teve consequências nenhumas. Não, isso já estou habituado, estou habituado a estar sozinho, a gravação é uma espécie de distracção, falo ou ouço e depois de repente meto uma gravação antiga e torno a ouvir. .
K: Como Krapp, na Última Banda de Bekett…
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É, é um bocadinho isso, passam-se dias em que não vejo ninguém, não entra ninguém naquele quarto, a mulher não liga absolutamente nenhuma, não faz a cama, não mexe uma palha.
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K: Vamos ter outra guerra?
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Vamos ter já outra guerra? Não, não vamos ter outra guerra, no meu tempo não vai ser, com certeza. Não, o que me parece é que se gerou a mania das nacionalidades, os ucranianos independentes, os moscovitas independentes, os croatas independentes, os romenos independentes, para aqui e para acolá. Isso foi provocado evidentemente com muito dinheiro, muito dinheiro andou para ali a mexer na Polónia, e agora estava-se a formar uma federação em que essas nacionalidades eram diminuídas, e esta coisa da Dinamarca veio mostrar que afinal as pessoas não querem isso. A Alemanha tem a moeda mais forte, mais capacidade de trabalho, e eles ainda estão agora a reconstruir a parte de lá, que estava toda feita em cacos. Quando eles tiverem aquilo tudo reunido, vamos a ver. Ou alguém se convence que os croatas, de repente, têm tantas armas e dinheiro vindos do nada? Vêm através da fronteira da Áustria, da Itália, da Alemanha. Ouvi outro dia uma coisa sublime, o João de Deus Pinheiro a dizer: «Nós delegamos na Alemanha, para convencer os Estados Unidos a assinarem este protocolo, porque sempre são os sete ricos, e os ricos entendem-se melhor entre si». Estão isto é ele a abdicar da presidência portuguesa, e reconhecer a importância portuguesa. Eu não estou muito informado, mas tenho o mínimo de curiosidade pelo que se passa em volta. E já que não leio o Saramago, com alguma coisa me hei-de distrair.
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K: Portugal é o seu remorso, como era para o O’Neill?
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Epá, o O’Neill é aquele gajo do Há mar e mar, há ir e voltar, é uma frase bonita, sabes que os tipos da publicidade têm bons achados, é um bom achado.
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K: Porque é que preferiu sempre a prosa?
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Eu poesia nunca tentei. Acho que é uma predisposição particular. Nunca tentei, a não ser assim umas quadras. Tive uma menção honrosa nuns jogos florais com uma quadra, coisas infantis. O Mário sim, o Mário e o Herberto eram grandes poetas. Por exemplo, o Eugénio de Andrade nunca li, não gosto, quer dizer, o que li não gostava. Não gosto dele, é o tal homossexual disfarçado que não se casou mas, também, não precisa de se casar, não e?
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K: E o Mário Cláudio?
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Não o conheço pessoalmente, mas li uma coisa dele de que gostei muito. Ele era-me antipático, em entrevista, li uma coisa dele sobre a Rosa Ramalho. Aquilo é muito giro, é muito bem feito, muito hábil. Também é preciso ver uma coisa: a gente de repente inicia-se num certo gosto de geração. Eu estou muito viciado na poesia do Cesariny, do Herberto. Outra poesia qualquer já é deformação geracional, e é difícil fugir a isso. Agora de repente há também isto, de repente um tipo começa a ficar isolado. Se eu não tivesse os filhos e os netos, sentia-me num isolamento total. Porque morreu aquele, morreu o outro, o outro está a morrer, o outro está com um cancro. De repente a gente começa a ficar isolada, outros que nunca mais se vêem ou que se detestam, e de repente a gente começa a ficar isolada. A morte é um bocadinho isso. No Pau do Mar, do Italo Calvino, vem um capítulo sobre a morte. Tirei fotocópias e guardei.
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K: Gosta de Beckett?
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Sim, sim. Por exemplo o À Espera de Godot… Mas o Beckett vai cada vez descendo mais, mais sintético, aquilo acaba num silêncio total. Ele ainda é vivo?
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K: Não, morreu faz três ou quatro anos. Aceita que lhe digam que é um escritor preguiçoso?
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Sim. Quer dizer, preguiçoso… aí está, de acordo com a minha actualidade de não competição essa coisa de escrever por competição para ser melhor que o outro, escrever porque o outro ganho um prémio, essa é a tal literatura de casino. Quer dizer, eles agora já não querem escrever só, querem ganhar os prémios todos, todos, todos. Economicamente não precisam de nada disso. Porque é que o Vergílio Ferreira quer ganhar um prémio de dois mil contos? Ele não vai ganhar esse dinheiro, ele pode fumar por dia três maços de tabaco. Vai gastar dois mil contos em quê? Não, esse espírito de competição, o autor é melhor que eu? Não, eu acho que quando se lê um livro bom, é que o autor nos está a fazer um grande favor. Não gosto é de escritores maus, não gosto do que eles escrevem, pessoalmente até podem ser meus amigos.
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K: Muita gente faz prefácios para si. Por exemplo, Mega Ferreira.
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Mas não fui eu que o convidei. Fez um prefácio muito giro para O Teodolito e agora foi fazer para a Inês Pedrosa. Então já não há limite nenhum para aquele tipo, ele é um prefaciador, faz prefácios para qualquer coisa! Fiquei humilhado, aí é que está, fiquei humilhado, «mas afinal este gajo não é nada de especial, este gajo é um gajo que escreve sobre qualquer coisa».
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K: Pois, mas ele tem um poder muito grande, que é o que eu acho que os jornalistas têm hoje. Passam para o lado do escritor para ter um estatuto. O escritor ainda tem direito a nome de rua. O Luiz Pacheco quando morrer, vai ter o seu nome numa rua.
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Sim, sim, devo ter, numa rua, numa viela, num beco qualquer.
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K: Já foi traduzido?
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Só uma vez. A Comunidade foi traduzida para alemão. E tenho um texto que saiu agora num jornal aqui de Setúbal, foi traduzido para espanhol.
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K: Os seus textos metem todos a primeira pessoa. É a opção estética do libertino?
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Se escrevo um livro e não ponho ali o «eu» e não dou referências pessoais, o texto perde a qualidade de exemplar. É a tal coisa, o libertino faz da sua vida um espectáculo porque pensa que é exemplar, que contém uma lição para as outras pessoas: quer dizer, o libertino procura libertar.
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K: Acha então que é mais coerente que a maior parte das pessoas?
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Ah, sim, estou convencido disso. Essa coerência pode ser estupidez, pode ser por diminuição de faculdades… Também não vamos agora pôr nisso tudo quanto é positivo. Por exemplo, eu acho que se tivesse andado de avião e feito viagens ao estrangeiro tinha uma dimensão do mundo muito mais rica do que a que tenho. Mas também eu fui lá abaixo à cadeia, fui ao asilo, fui ao hospital, estive nos malucos, lá por causa do álcool, internado. No filme para a RTP, se vocês o tornarem a ver, reparam que há duas coisas que são escondidas – a parte homossexual e a alcoólica. Bem, a alcoólica não está assim tão fantasiada, porque de repente vê-se que eu estou com uma grande bebedeira.
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K: Não se notava.
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Sim notava-se, nota-se. Agora a parte homossexual é que deu para aí, porque eles, o Mário Lindolfo, num almoço aqui em Setúbal, de repente aludiu: «Essa coisa do libertino tentar engatar o magala, isso afinal de contas passou-se contigo ou era ficção?» E deu-me para responder isto: «Tudo o que se escreve é invenção, não podes tirar conclusões daí» e ele recuou. Essa parte aí fui eu que escamoteei. A parte do alcoolismo foi a doutora lá do Júlio de Matos que exigia que eu fizesse uma declaração em como ele podia dar depoimentos. Ora eu estive lá internado, no Júlio de Matos, por causa do álcool. É assim, eu tenho uma dose de psicopatia muito grande, a minha mãe via Deus, via o Diabo. Tive um tio, que eu nunca cheguei a ver vivo, que esteve 55 anos internado no hospital. Tenho uma carga hereditária psicopata grande. De maneira que o álcool dá-me para os disparates, não é por acaso. E de repente bebo duas coisas ou três e faço uns disparates que as pessoas que beberam três whiskies, ou quatro ou seis, não fazem, porque isto ataca-me cá a mioleira, ataca-me cá a telha. São as chamadas pulsões. Por exemplo, eu tenho medo de me chegar ali àquela janela, que é relativamente baixa, mas eu não me chego a ela. É um bocado o instinto de conservação. Tenho medo de perder o controlo e mandar-me.
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K: Truman Capote disse: «Sou um alcoólico, sou um drogado, sou um homossexual, sou um génio». Aplica-se a si?
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Acho que o génio está muito fora do sítio. Isto não é modéstia, que seria vaidade neste caso, não é? Mas é preciso ver que a minha obra é curta, este livro está assim porque está cheio de textos que não são meus. Acho que é melhor escrever pouco do que escrever por avença.
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K: Sentia-se a dever favores às pessoas que o ajudavam?
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Não, um gajo tem que ser ingrato. Fica a dever as coisas. Então mais vale ir para um lugar público onde tenha uma remuneração devida. Ingrato, quer dizer, de repente a pessoa chateia-me e eu corto.
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K: E os seus filhos? De que maneira aceitaram que o pai fosse diferente dos demais?
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Não tiveram outro remédio.
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K: O Paulo, sim, mas os outros?
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O Paulo, num depoimento, perguntaram-lhe: «O que é ser filho do Luiz Pacheco?» e o Paulo disse: «Essa pergunta não é só feita a mim, é feita também aos outros sete, cada um terá a sua opinião». Eu tenho filhos com quem me dou, tenho filhos que nunca mais vejo, tenho uma filha na Turquia, nunca mais os vejo. Nem netos – tenho alguns doze ou treze netos, alguns que nem conheço. Tenho uns netos aqui assim no Montijo, de um filho meu. A minha nora não se dá comigo, um dia tive que fugir pela janela. Ensinei os meus filhos a serem duros. Eles tinham mesmo de ser duros. Também é preciso ver que os da primeira mulher, esses tinham o Charles Le Pierre, tinham explicadores, tinham uma vida, enfim, burguesa, pequeno-burguesa. As pessoas têm tendência natural é para o aburguesamento, é para o comodismo. Porque aquela irreverência juvenil vai desaparecendo. A tendência natural é para encostar. Esta é uma idade caquética já, estou à beira dos 70 e se calhar não chego lá. Mas também todos os anos digo a mesma coisa.
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K: Uma vida exemplar?
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Não estou interessado nisso. Quer dizer, um tipo dá o exemplo, mas as pessoas têm a sua vida própria. O que há nos meus livros é a formação de um indivíduo. Um indivíduo é dono e senhor do seu corpo, portanto dispõe desse corpo para ir para a cama com um homem, com uma mulher, com duas mulheres, com dois homens. Isso já é um bocadinho exagerado mas cada indivíduo é dono do seu corpo até ao absurdo que é o aniquilamento. Temos de dar direito aos suicidas.
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K: Acha que a sua homossexualidade é uma pulsão?
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Sim, pode ser uma pulsão, mas também aí há uma espécie de autoflagelação. O Libertino demonstra isso. O que eu procuro primeiro são raparigas e quando as raparigas falham todas agarro-me ao primeiro corpo que aparece, que é o magala. Quer dizer, eu andei à procura de facto de raparigas, levei sopa, sopa, sopa, até que também levo sopa do magala. E como é que acaba? Acaba na masturbação, acaba numa morte que é o fracasso total. Eu não me considero homossexual lá por ter tido 10 ou 15 aventuras. Agora, os gajos que andam aí, de facto, ó tio, ó tio, andam aí à caça. É o caso do Mário. O Mário passou muito mais como homossexual do que eu passei como libertino, do género de andar com miúdas muito novas. O Mário passou muito mal, teve um período em que todos os meses tinha que ir ao Torel apresentar-se, isso era uma coisa que o destruía mentalmente. O Bernardo Lima dizia com muita maldade: «É o único poeta português que vai à revista». A revista era ir lá apresentar-se, dizer «cá estou eu», e perguntavam: «Então tem trabalho? Mora no mesmo sítio? Pode-se ir embora». Isto que é tão simples, a ele destroçava-o completamente. Mas estava a falar de homossexualidade. Não sei se é pulsão ou não. Eu não sou um tipo potente com as mulheres, não sou o chamado garanhão, não sou daqueles que têm muito cabelo na peitaça. Nem tenho pêlos aqui nas pernas, bem, aqui já não está nada. Sou um tipo mais sensual do que sexual. Talvez por isso escolhi mulheres mais novas. A mãe deste tinha 14 quando ficou à espera, depois teve-o com 15, teve outro com 16, depois teve outro com 17, depois chateou-se, estava com 19 anos. Ela podia ser minha filha, aquilo era um caso incestuoso mesmo, podia ser minha filha.
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K: Qual foi o grande amor da sua vida?
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Ah! Isso são três ou quatro. A mãe deste, a Maria Irene, esta Fátima, mais uma Geninha, Maria Eugénia, superbonita, e mais uma rapariga casada, reaça. Não, isso quando eu gostava era obcecado, tinha sonhos permanentes. Não tento ocultar a face psicopática.
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K: Drogas, nunca houve?
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Não, nessa altura não era muito usado; naquele grupo do gelo ninguém se drogava. Uns bebiam, o Forte bebia muito, o Cesariny nunca o vi bêbado, O Forte bebia muito mas era bagaços. Vocês reparem, estão a falar em 92 e estão com as modas de 92 e nós estamos a falar em 62, 60, 45, nem se falava em droga. A droga era o cigarro, eram uns comprimentos que se tomavam antes dos exames, anfetaminas, mas tomava-se só para um exame, não se tomava para bacanais. Não sei se há vantagem em tornar a coisa como a Lei Seca, a Lei Seca foi contraproducente, não é? Esta proibição das drogas não sei se será favorável ou desfavorável.
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K: E filhos, porquê tantos?
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Assim como deve existir um direito ao aborto, para a mulher que não quer ter filhos, ou porque é violada ou porque vive mal, deve haver consideração pelo direito à criação. Por exemplo, eu queria ter oito filhos; então o estado tem que me dar condições para ter oito filhos. Estas casas hoje são feitas de propósito para um casal com dois filhos no máximo. Na China um casal tem um filho tem abonos, tem dois filhos cortam-lhe tudo. Então e se tem três?
Isso ainda é pior, vai para à cadeia. Mas se os chineses quisessem de facto fazer uma invasão em cheio, diziam «façam à vontade». O direito ao aborto está inteiramente certo, mas tem que se ter o equivalente, que é o direito à procriação. Ter direito ao aborto, certo, cada um é dono do seu corpo, faz do seu corpo o que quiser, mas também pode ter gosto em ter filhos.
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K: Quais são as coisas que lhe importam mesmo na vida?
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Chegar aos 100 anos (risos). Não, o que me importa é que o bebé cresça, que o meu filho tire o curso. Já são interesses que me são exteriores. Gostava de publicar, sem cagança nenhuma, gostava de publicar um livro, ainda que não fossem só estas repetições, estas reedições. Tenho material para isso, mas precisava também de ter um bocadinho de condições. Não é com os 50 contos que a SEC me que eu posso fazer isso. Estes 50 contos o que me tiram é a necessidade de fazer isso. Aqui nesta reedição de O Libertino não vou receber quase dinheiro nenhum. Vocês estão ainda na idade de terem grandes ambições. Mas eu já não tenho idade de ter essas ambições. As minhas são não ter muitas dores, não me rebentar a hérnia. Já sei que qualquer dia, se não me rebentar a hérnia, cai-me um tijolo em cima e fico em papas. Há também um certo desgosto da vida. Agora, enquanto eu tiver, de facto, um x mensal em que possa dar uma ajuda aqui ao Paulo, comprar em Setúbal um peixe fresco, uma fruta, uma oferta, meter ali no açucareiro uns 5 ou 10 contos, então…

12.8.07

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[Almada Negreiros, As Banhistas, 1925]

10.8.07

Torre Bela (2)

A discussão da ferramenta:

Torre Bela


Está em exibição no King Torre Bela, documentário de Thomas Harlan..
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Trata-se de um documentário realizado em 1975, sobre a ocupação da Herdade da Torre Bela, no concelho da Azambuja, no Ribatejo, que era propriedade do Duque de Lafões. Vivia-se ainda um ambiente com resquícios medievais, com o senhor e os servos. Era comum o duque passear a cavalo por entre a miséria das redondezas e as praças de jorna eram prática corrente como forma de contratar os trabalhadores.
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Em Abril de 1975, à margem de partidos e sindicatos, um grupo de camponeses ocupa a herdade, procurando formar uma cooperativa em moldes diferentes das Unidades Colectivas de Produção ligadas ao PCP. Os principais líderes eram o carismático Wilson e Camilo Mortágua que, embora ligado à LUAR, agiu em nome individual.
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O PCP condenou a ocupação, considerando-a ilegal, mas esta tornou-se um símbolo do poder popular e da utopia revolucionária, acabando por ruir algum tempo depois do 25 de Novembro, sendo devolvida ao mesmo Duque de Lafões.
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Thomas Harlan, alemão, que ainda hoje se considera de extrema-esquerda (filho do famoso cineasta nazi Veit Harlan) foi um dos muitos europeus da época que vieram para Portugal atraídos pela revolução. Apesar de nunca ter até então realizado qualquer filme, gravou muitas horas de imagem que puderam ser já vistas em várias versões.
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A primeira exibição ocorreu no Festival de Cannes de 1977. Depois disso, foram feitas várias outras exibições em cinema ou televisão. Nos 30 anos do 25 de Abril, o Público lançou uma caixa de CDs e DVDs que incluía uma versão de Torre Bela com cerca de 80 minutos.
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Esta versão tem 105 minutos e é uma cópia recuperada e restaurada. O filme é um documento fundamental, sendo particularmente tocantes as cenas em que os camponeses entram pela primeira vez no palácio do duque. O contacto do mundo miserável e explorado com o mundo dos ricos, até aí inacessível, é duro e comovente.
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Imagens já famosas são aquelas em que, a propósito de uma pá que um dos trabalhadores não quer partilhar com os outros, Wilson tenta convencê-lo das vantagens da cooperativa.
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Impressionante é Grândola, Vila Morena cantado em uníssono por Zeca Afonso, Vitorino, Fanhais e toda a população, debaixo de chuva.

9.8.07

Mário Cesariny

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A Assírio & Alvim vai lançar hoje, dia em que Mário Cesariny faria 84 anos, dois livros acompanhados de um CD e um DVD.
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O primeiro é uma selecção de 34 poemas de Cesariny, que o próprio Cesariny gravou no Verão de 2006, poucos meses antes de morrer. A acompanhar o livro vem um CD com essas mesmas gravações.
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O segundo é uma entrevista de Miguel Gonçalves Mendes a Cesariny, acompanhado de um DVD com o documentário Autografia.
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O lançamento é hoje, às 22 horas, no Lux.
autografia I
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Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo.....uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra
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O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: conde-
...............nado à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
...............existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loirooutro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente – tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião – não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais – também, já por cá pas-
...............saram.
E sou, no sentido mais enérgico da palavra
na carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
...............passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica.....irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
...............escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha
.
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
...............em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama.....no espaço duma pedra.....em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem
...............lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido
...............entre lagos de incêndio e o teu retrato grande!
.
[Mário Cesariny, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 2004]