31.12.08

Alguns livros de 2008

  • O Homem sem Qualidades, Robert Musil, Dom Quixote
  • Fome, Knut Hamsun, Cavalo de Ferro
  • Menina Else, Arthur Schnitzler, Cotovia
  • O Diabo e Outros Contos, Lev Tolstói, Relógio D'Água
  • A Educação Sentimental, Gustave Flaubert, Relógio D'Água
  • O Primeiro Amor, Ivan Turgeniev, Relógio D'Água
  • Trópico de Câncer, Henry Miller, Presença
  • O Festim da Aranha, vários autores (escolhidos por Aníbal Fernandes), Assírio & Alvim
  • A Faca Não Corta o Fogo, Herberto Helder, Assírio & Alvim
  • Gatos Comunicantes, Mário Cesariny e Vieira da Silva, Assírio & Alvim
  • O Crocodilo que Voa, Luiz Pacheco, Tinta da China
  • Já Cá Não Está Quem Falou, Alexandre O'Neill, Assírio & Alvim
  • A Vida de Horácio, José António Almeida, &etc
  • Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Fernando Cabral Martins (org.), Caminho
  • Lisboa – História Física e Moral, José Augusto-França, Livros Horizonte

29.12.08

A aberração tornada regra

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"Exemplo triste e eloquente da aberração que se tornou regra: a capa da mais recente reedição de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino (Teorema), tem letras prateadas e em relevo. Calvino é um dos grandes escritores do século XX e este livro é dos mais importantes da sua obra. Não é literatura de quiosque nem se destina às massas. Tentar traficá-lo desta maneira dissimulada é um péssimo serviço prestado pela editora. Mas esta é a regra em que vivemos no campo editorial: os livros são editados visando os «consumidores» que não os vão ler e pondo à distância os leitores que sabem o que querem ler. E como esta é a regra, as livrarias portuguesas tornaram-se um imenso bazar de capas coloridas, o que desafia qualquer capacidade de orientação: é tudo igual a tudo e até um livro de Carl Schmitt (imagine-se) vem disfarçado de subliteratura. A sobreprodução editorial, sem fim à vista, dá ao espectáculo um aspecto exasperado, onde se consuma sem pudor a lei da economia que tem sido transposta para outros campos: a má moeda expulsa a boa moeda."
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[António Guerreiro, Actual (suplemento do Expresso), 27/12/2008]

24.12.08

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[Max Ernst, Virgem espancando o menino Jesus perante três testemunhas: André Breton, Paul Éluard e o pintor, 1926]

23.12.08

Para um Natal O'Neilliano

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Foi recentemente lançado pela MHIJ Editores As Andorinhas não têm Restaurante, colecção de crónicas de Alexandre O'Neill, em versão áudio, com voz de Jorge Silva Melo, que pode ser adquirido em duplo CD ou em MP3. O resultado é excelente, com os textos a ganhar uma nova vida.
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Entretanto, podemos ler um natalício O'Neill no blog da Pó dos Livros, com os Exercícios de auto-apoucamento (com vista ao próximo Natal).

22.12.08

O crepúsculo das tabernas
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Apagam-se com vagar na impiedade do tempo.
Ouço o seu clamor enfraquecido, um gemido impotente
a que em breve ninguém se poderá converter.
Eram os únicos lugares onde sabia estar.
Sem obviamente saber estar, visto a imperícia
me ser tão sanguínea – excepto quando por teimosia
roçava a mais feroz inconsciência e nada então
importava. Mas foi sempre mais frequente ter
de prémio uma excessiva consciência de tudo, da
inexorável tristeza de tudo, embora ali agraciada
com um encanto cáustico:
a possibilidade de reivindicar um inferno.
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A pouco e pouco morrem as portas largas
de ruas estreitas que, à parte outros méritos, ensinavam
com mestria o abandono e a eternidade da sede.
Tive a má sorte de serem meus estes anos que de algum
modo testemunham a despedida dos últimos exílios,
desses redutos sombrios onde se podia renegar
a luz perversa do mundo.
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Abuso mais uma e outra vez os pequenos templos
que perduram. Aproveito como posso a demora
da sentença, mas sei próximo o dia, a furibunda
manhã em que se apagarão de vez os fogos
em que mais apetecia ser lentamente devorado.
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[Manuel de Freitas, in Todos contentes e eu também, Campo das Letras, 2000]

21.12.08

Poema sumário das tabernas de Lisboa
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Rua de São Marçal n.º 56, rua de Campo de
Ourique n.º 39, rua de São Bento n.º
432, rua da Cruz dos Poiais n.º 25ª. Calçada
do Combro n.º 38B, rua da Atalaia n.º 13,
rua de São Miguel n.º 20, rua da
Rosa n.º 123. Travessa do Conde de Soure n.º 7,
travessa dos Remolares n.º 21, rua do
Jardim do Tabaco n.º 3, rua da Regueira n.º 40,
rua das Escolas Gerais n.º 126, rua de Santa
Catarina n.º 28. Largo do Chafariz de Dentro n.º 23,
rua Sampaio Bruno n.º 25, travessa de São
José n.º 27, beco dos Toucinheiros n.º 12-A. Rua
Cidade de Rabat n.º 9, travessa do Alcaide
N.º 15-B, calçada de São Vicente n.º 12,
rua das Flores n.º 6, travessa da Espera n.º 54.
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Praça das Flores n.º 5.
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[Manuel de Freitas, in Todos contentes e eu também, Campo das Letras, 2000]

18.12.08

Lisboa a saque

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Depois de fecharem a Praça das Flores aos seus próprios moradores para apresentar um automóvel, depois de fecharem os Restauradores, Av. da Liberdade e Marquês de Pombal para fazer publicidade a automóveis, depois de forrarem eléctricos, comboios e autocarros, tapando até as suas janelas, depois de colocarem ecrãs de televisão nas estações de metro e dentro dos táxis, depois de colocarem outdoors por todo o lado, mupis no meio dos passeios, e paragens de autocarro com publicidade sonora em altos berros, depois de colocarem publicidade nos degraus das estações de metro e nas casas de banho, depois de colocarem telas gigantes a tapar os edifícios que esperam demolição, depois de embrulharem o cristo-rei e colocarem umas estranhas estruturas (a que chamam “maior árvore de natal da Europa”) em vários pontos da cidade, só faltava mesmo a ocupação selvagem, durante 2 meses, das principais praças de Lisboa.
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Imagens tiradas daqui e daqui.

16.12.08

Nesta quadra tão especial, dois lindos livrinhos que ficam bem em qualquer sapatinho

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Crimes Exemplares, de Max Aub, com tradução de Jorge Lima Alves, em edição ilustrada, da Antígona.
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O Festim da Aranha, histórias em estado de crueldade encontradas e traduzidas por Aníbal Fernandes, da Assírio & Alvim.

12.12.08

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[Cruzeiro Seixas, Primeiro Estudo para Futuros Encontros, 1954]

11.12.08

Nova Buchholz

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É hoje inaugurada mais uma livraria em Lisboa. Trata-se de uma nova Buchholz, no Largo Rafael Bordalo Pinheiro, no Chiado, no local onde estava o antigo armazém da Sá da Costa.
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A Bucholz foi comprada recentemente pela Fundação Agostinho Fernandes (que adquiriu também as editoras Sá da Costa e Portugália e a livraria Sá da Costa), que aparentemente pretende manter também o antigo espaço na Duque de Palmela.
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Ainda não percebi se a ideia é recuperar a Buchholz e algumas das suas características mais marcantes ou simplesmente aproveitar a marca.
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A inauguração é às 19h.

9.12.08

Nada de Melancolia

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Chega hoje às livrarias Nada de Melancolia, de Pedro Mexia, livro que reune crónicas que escreveu para a revista NS em 2006 e 2007. A edição é da Tinta-da-China.
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«Talvez não devesse ter regressado ao lugar onde fui feliz, ou assim me lembro dele, com as ruas baixinhas, quase de brinquedo, as multidões sempre pequenas, os vestígios da praia ainda no corpo ao fim do dia, entre um gelado e a caixa dos bonecos. Quando regressei, de passagem, a cidade estava irreconhecível, mais ampla e moderna, já não era minha, a Figueira da Foz já só existe na minha lembrança ou imaginação, se é que há diferença entre uma e outra. Reconhecia os sítios mas não reconhecia o espírito dos sítios, indestrinçável de quem eu fui, da infância como eu me lembro dela, plácida e segura e cheia de possibilidades. No meio dessa estranheza, entro na rua do Casino e vejo aquela ancestral montra dos bonecos, aquela caixa de madeira e metal, ainda na mesma entrada do mesmo salão de jogos, mas agora ela mesma uma diversão arcaica, museológica, tão distante como a infância ou os anos setenta. Ninguém lhe ligava nenhuma. Ninguém usava uma moeda que tivesse sobrado, suponho que euros agora em vez de escudos. Os bonecos estavam parados, não tocavam, nem dançavam, nem faziam a sua coreografia automática mas mágica. Meti a mão ao bolso e peguei numa moeda. Quis pôr a infância em acção, musical e cromada, ali à vista de todos e à minha, o circo ambulante e estático da minha infância por interpostos bonecos. Hesitei. Desisti. Virei costas e pensei: "Nada de melancolia."»
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[Pedro Mexia, in Nada de Melancolia]

5.12.08

Antologia do Humor Português

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Em 1969, Ernesto Sampaio e Virgílio Martinho publicavam na Afrodite, de Fernando Ribeiro de Mello, uma Antologia do Humor Português, reunindo em mais de 1000 páginas nomes que iam de Gil Vicente a Mário Cesariny, passando por Cavaleiro de Oliveira, Bocage, Camilo, Eça, Fialho, Gomes Leal, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Manuel de Lima, Alexandre O’Neill ou António Maria Lisboa. Infelizmente, nunca foi reeditada, sendo por isso quase impossível encontrá-la (às vezes aparece em alfarrabistas).
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Trinta anos depois, assumindo-se como uma espécie de sucessores de Ernesto Sampaio e Virgílio Martinho, Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos editam, na Texto, uma nova Antologia do Humor Português, reunindo textos de 1969 para cá.
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A escolha dos autores é bastante abrangente e, talvez por isso mesmo, com alguns desequilíbrios. A maioria dos autores antologiados é de primeiríssima água: Luiz Pacheco (com um excerto do Libertino passeia por Braga), Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, Mário-Henrique Leiria, Natália Correia, Dinis Machado (com um excerto d’O Que Diz Molero), Fernando Assis Pacheco, Alberto Pimenta, Alface, Adília Lopes e Miguel Esteves Cardoso, entre muitos outros, são nomes maiores da literatura portuguesa das últimas décadas. No entanto alguns textos, sobretudo mais recentes, não têm grande qualidade ou até nenhuma (juntar Nilton e Cesariny numa mesma antologia é um bocado forçado…).
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De qualquer forma, exceptuando meia-dúzia de coisas francamente dispensáveis, a antologia é muito boa, com os textos bem escolhidos e constituindo uma boa amostra do melhor humor português que foi possível ler nas últimas 3 décadas.
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A apresentação do livro, a cargo de Pedro Mexia e Nuno Markl (ambos antologiados), será feita na próxima 5ª feira, dia 11, às 21.30, na Casa Fernando Pessoa. Maria Rueff e Miguel Guilherme lerão alguns textos.
QUE VERGONHA, RAPAZES!
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Que vergonha, rapazes! Nós pràqui
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no «diz que»
e a desnalgar a fêmea («Vist'? Viii!»)
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Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.
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Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(«O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!»)
e desabafo: -Ó Roque, com franqueza:
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Você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, Snr. O'Neill! E ... as varizes?
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[Alexandre O'Neill, in De Ombro na Ombreira (1969) e Antologia do Humor Português (org. de Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos, 2009)]
Ao rés do orgasmo,
naquela noite ordinaríssima como um soneto,
teve ainda de lhe explicar
que van Gogh não era
nem um pintor japonês
nem o índice da Bolsa holandesa.

[anónimo, in Bardamerda (& etc, 1999) e Antologia do Humor Português (org. de Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos, 2009)]
NOIVADO
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Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.
- És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia.
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[Mário-Henrique Leiria, in Contos do Gin-Tonic (1973) e Antologia do Humor Português (org. de Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos, 2009]
É preciso agir
é preciso foder
isto é etimologicamente
cavar
na cidade
é por vezes
tão difícil foder
como cavar
mas mando quinze tampas
de iougurte Longa Vida
natural
para o Apartado 4450
e plantam-me
uma alfarrobeira
na Arrábida
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[Adília Lopes, in Sete Rios Entre Campos (& etc, 1999) e Antologia do Humor Português (org. de Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos, 2009)]

4.12.08

Trama: o primeiro ano

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Com uns dias de atraso, aqui vão os meus parabéns pelo primeiro aniversário da Trama.

3.12.08

Lisboa, História Física e Moral

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José-Augusto França acaba de lançar, nos Livros Horizonte, uma ambiciosa Lisboa, História Física e Moral, cobrindo em 850 páginas toda a história da cidade desde os seus primeiros habitantes até à actualidade.
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A apresentação do livro vai ser feita hoje às 18:30, no Centro Nacional de Cultura (Largo do Picadeiro, nº 10 1º ao Chiado), por Ana Tostões e José Custódio Vieira da Silva.

2.12.08

Dois grandes editores desaparecidos

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Desapareceram na semana passada dois editores portugueses da maior importância, um deles ainda em actividade:
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No Domingo, dia 25, faleceu Rogério Mendes de Moura (1925-2008), fundador dos Livros Horizonte, que ainda dirigia. Desta editora assinale-se, entre outras coisas, a importante colecção Cidade de Lisboa. Pode ler-se aqui um artigo no DN de Junho de 2007 sobre este editor.
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Um dia depois faleceu Joaquim Figueiredo Magalhães (1916-2008), que se destacou sobretudo por ter fundado e dirigido durante alguns anos a Ulisseia (o seu sucessor foi Vitor Silva Tavares), editora marcante pela publicação de inúmeros autores estrangeiros nunca antes editados em Portugal (Faulkner, Kerouac, Durrel, etc.) mas também grandes autores portugueses (Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira, etc.), tudo isto com uma qualidade invulgar para a época.
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O Público de ontem trazia um artigo de Catarina Portas sobre Joaquim Figueiredo Magalhães, que deixo aqui:
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Joaquim Figueiredo Magalhães (1916-2008)
O último livro da Ulisseia s. f. f.

01.12.2008
Por Catarina Portas

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Sempre acreditei que a morte não teria coragem de se aproximar dele. Mas, afinal, também ela não lhe resistiu. Aos 92 anos, desapareceu Joaquim Figueiredo Magalhães, o primeiro grande editor moderno português. Ele era o homem mais vivo que jamais conheci. Maravilhosamente culto, espantosamente audaz, loucamente imaginativo e, para usar uma das suas expressões favoritas, altamente divertido, este homem era também, em igual medida, justo e generoso. Todos aqueles que gostam de livros lhe devem mais do que sabem.
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Era, de facto, um homem irresistível. Quando nos cruzámos na vida, eu ainda não tinha 30 anos e ele aproximava-se dos 80 mas, com absoluta naturalidade, ficámos amigos. Costumávamos almoçar no Chiado, no pequeno Restaurante da Trindade, onde há décadas tinha mesa cativa junto à janela, ou na Severa, ao Bairro Alto. Ele queria sempre falar do futuro mas eu espicaçava-o para que me contasse as histórias do seu passado. Ouvi-lo era pura volúpia. Nasceu no Porto a 5 de Agosto de 1916, filho de boas famílias. Um dia perguntei-lhe o que o levou a ser editor e ele respondeu: "Tanto a família do meu pai como a da minha mãe tinham boas bibliotecas." E ele lia, lia tudo porque não lhe proibiam nada. Fez os estudos primários em escolas municipais, "o que me deu imensa alegria, uma grande liberdade e uma compreensão, precoce, da solidariedade". Mais tarde, foi enviado para o elitista colégio jesuíta de La Guardia, na Galiza, e depois para o seu equivalente português, o colégio das Caldas da Saúde. "Os jesuítas tinham uma maneira extraordinária de nos manipular, para aprendermos e termos prazer no conhecimento." Vem para Lisboa em 1936, estudar Histórico-Filosóficas, e simultaneamente matricula-se na Escola Superior Colonial, um curso que era "pura fantasia".
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Reclames de avioneta
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Aquele espírito vivo que nos iluminava as conversas nasceu com ele. Mal concluiu os dois cursos, pôs-se a ter ideias para montar negócio. Fez uma tentativa ambiciosa para obter a representação da Coca-Cola em Portugal. Em 1945, fundou a Stop, uma agência de publicidade, em colaboração com um pintor e um escritor, "eu era o das ideias", claro está. Interessou-se por helicópteros americanos e quis fazer um aeroporto "com cara de aeroporto" para substituir os barracões da Portela de então. Sempre investimentos grandes que não foram adiante porque a banca não acreditou naquele homem que não sabia pensar pequeno, à escala do país em que vivia. Morava no Chiado e frequentava os seus cafés, o Café Chiado e a Brasileira, onde dominavam os intelectuais de acção nas mesas da frente e os políticos e os agentes da PIDE lá atrás. A sua juventude impressionou-se com os intelectuais, esses seres "flamejantes". Queixavam-se todos de que tinham obra mas não quem os editasse. Ele ouviu-os e aventurou-se. Começou por edições soltas, entre elas O Barão de Branquinho da Fonseca. Com dinheiro de família, funda em 1950 a primeira editora, a Édipo, lançando a colecção Escaravelho d'Ouro. "Os nossos intelectuais, na altura, entendiam que a literatura policial era secundária, de fancaria. Mas há livros notáveis: o Chandler, o Dashiel Hammet, a Agatha Christie, o Simenon, o Maurice Leblanc, fui eu que os editei." Com a imaginação, a audácia e a argúcia que haveriam de caracterizar toda a sua actividade editorial, decide apostar no gosto português pelo jogo e logo inventa uma colecção de 12 volumes, cada uma das obras passando-se numa cidade diferente do mundo. Em cada volume, inclui três talões, um para o livreiro e dois para o leitor, dando direito a participar num sorteio mensal de uma viagem ao "local do crime", durante uma semana e num hotel de cinco estrelas. Inovou na divulgação, publicitando a colecção em chapéus de papel no futebol, sobrevoando o Estádio Nacional numa avioneta com reclame, mandando pintar a empena de um prédio nos Restauradores. Foi um sucesso. "Não se perde dinheiro como editor quando se esgotam os livros todos." Com os lucros da Escaravelho d'Ouro, Joaquim Figueiredo Magalhães lança dois anos mais tarde a Ulisseia. "Achei que devia iniciar actividade com um pleito à arte da edição e por isso o primeiro livro foi Da Famosa Arte da Imprimição de Américo Cortês Pinto." Para perceber porque Figueiredo Magalhães ganhou o título de primeiro editor moderno português basta olhar para os mais de 20 anos da Ulisseia. Aos seus conhecidos do Chiado foi buscar os membros do Conselho de Leitura. Branquinho da Fonseca, Casais Monteiro, Mário Henrique Leiria, Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, João Gaspar Simões, e mais quem aparecesse, reuniam-se nas tardes de sexta-feira "com uma garrafa de whisky" para comentar os livros, trocar as revistas literárias estrangeiras que assinava, assinalar possíveis problemas com a censura, decidir tradutores. "Escolhi escritores como tradutores porque eram homens que sabiam português. É que se eu quisesse alguém que soubesse línguas, entregava as traduções ao porteiro do Avenida Palace que sabia oito idiomas, só não sabia era português. Mas também preferia os escritores porque gostavam do que traduziam, traduziam por gosto." E pagava bem as traduções, não se esquecendo de, em cada reedição, enviar um cheque, tanto a tradutores como capistas, no valor de um terço dos honorários iniciais. Em Londres, conheceu Neves Pedro, que era guia intérprete, logo percebeu que era um homem de "boa ilustração" e aliciou-o para se tornar seu agente. "Ele levantava muita caça." A lista de escritores que a Ulisseia publicou pela primeira vez em português é uma caçada deveras impressionante: Hemingway, Faulkner, Orwell, Steinbeck, Caldwell, Doris Lessing, Kingsley Amis, Pratolini, Coccioli, Moravia, Julien Green, Mauriac, Sagan - e são só alguns. Foi a Ulisseia que publicou o Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell, o On the Road do Kerouac, As Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar, O Americano Tranquilo de Graham Greene. Tinha mais direitos de livros do que aqueles que conseguia editar, vendia-os aos outros. Foi o primeiro editor português a ir à feira de Frankfurt, ficou a conhecer bem a Alemanha porque "já tinha tudo comprado antes".
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Negócio com a censura
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Vou à estante, à prateleira onde estão as edições da Ulisseia que continuo a coleccionar, e tiro um exemplar: O Ente Querido de Evelyn Waugh. A capa moderna e luminosa é de Querubim Lapa, a tradução de Jorge de Sena e o livro está semeado de deliciosas ilustrações de João Abel Manta. Não é apenas um livro, é uma edição perfeita. O seu credo: "Cada livro deveria ser uma obra artística, quer no texto, quer na ilustração. Por isso cada obra tinha uma equipa: o capista, o ilustrador, o tradutor e o autor." Gostava de artes gráficas e, para as capas, chamou artistas como Sebastião Rodrigues, Querubim Lapa, Vespeira, António Garcia, Câmara Leme, etc. Estruturou a edição em diferentes colecções: a "Série Literária" para a grande ficção de romancistas estrangeiros contemporâneos; a "Sucessos Literários" para best-sellers do momento; a "Documentos do Tempo Presente" de livros de ensaio, memórias e outros; e, finalmente, a "Atlântida", onde conviviam escritores portugueses, brasileiros, espanhóis e ibero-americanos. Aos portugueses, propôs desde logo um negócio inédito. Decidiu pagar os mais altos direitos de autor do mercado, 20 por cento do preço de capa, e adiantava mensalmente uma parcela dessa verba para que pudessem escrever em paz. Editou Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, David Mourão-Ferreira ("Gaivotas em Terra, fui eu que lhe dei o nome"). Praticamente nunca editou poesia. "Só editava aquilo que conhecia e que sentia. E a poesia só comecei a senti-la depois. Nessa altura, até o próprio Pessoa me passou um pouco ao lado", lembrava num instante muito raro de alguma tristeza. Voltava logo ao seu tom malicioso quando o questionava sobre o seu equilíbrio improvável na sociedade da época: "Eu estava muito bem colocado entre os jesuítas, a censura e os comunistas." A dada altura, entregava traduções a presos políticos em Peniche e em Caxias, justificando à censura que "sempre é preferível estarem a trabalhar do que a conspirar... E assim as famílias sempre recebiam algum". Pois nem a censura lhe conseguia resistir, publicou 14 livros proibidos. "Todos os livros proibidos foram sempre um negócio. E também um negócio com a censura." Ria-se, ria-se perdidamente ao revelar o estratagema engendrado para a publicação do escandaloso Bonjour Tristesse. Comprara os direitos antes de descobrir que a edição francesa já estava proibida em Portugal. "Como é que eu podia pôr o livro cá fora? Desde que ele fosse muito bem amparado!" Assim, contratou para tradutora Carmo Azambuja, irmã de Natércia Freire, presidente do Apostolado de S. Francisco de Paula, crítica literária no Diário de Notícias e figura conceituada do regime, pedindo a esta última o prefácio. Passou o dito cujo prefácio ao "amigo do peito da Natércia", o crítico oficial do Estado Novo João Ameal, a quem confidenciou que o cardeal arcebispo de Viena tinha recomendado o livro "para prevenir contra os maus exemplos". Depois, foi ter com Armando Larcher, o director da censura, com quem mantinha um diálogo cordato. Não, ele não podia levantar a proibição. "Mas também não me podia impedir de o oferecer às livrarias... Chegámos a esse acordo. Por isso é que todos os livros têm "oferta do editor", escrito à mão que até me doía o braço! Chegou aos 20.000 exemplares. E como era proibido, os livreiros não podiam descontar a sua parte. Eles vendiam e eu ganhava. Foi assim que comprei o meu iate."
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Suite nº5
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Ríamos muito, que ele sempre levou a ironia muito a sério. O nosso episódio preferido era a "história do grande bluff" ou de como Joaquim Magalhães conseguiu arrancar à Penguin os direitos para Portugal e o Brasil da sua famosa colecção Pelican, que tantos dos seus pares cobiçavam à época. Para tal informou-se sobre os aposentos mais exclusivos na cidade de Londres e assim reservou por uma única noite a suite n.º 5 do Dorchester Hotel. "Tinha um hall extraordinário, com uma carpete que parecia uma savana, daquelas em que as pessoas parece que se enterram até ao pescoço." E fez saber que, editor de passagem na cidade, gostava de se encontrar com Sir Allen Lane, o célebre dono da Penguin. Este, impressionou-se devidamente e mandou o Rolls Royce buscá-lo. Nesse almoço, Figueiredo Magalhães convenceu-o. E ainda convidou Tom Maschler, o editor da Pelican, a vir a Portugal mas, para evitar a ruinosa diária do Ritz, sugeriu-lhe que fosse passar a semana a bordo do seu iate no Algarve. "A história espalhou-se. O Sir Collins já me queria dar a representação da Phaedon, a Carmen Bacellos procurou-me em Barcelona... Achavam que eu era o Onassis da edição!"
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Só de mulheres
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Em 1959, resolve lançar uma revista, o Almanaque, cujas 18 capas de Sebastião Rodrigues e de Abel Manta são pura antologia da história do design gráfico português. Cardoso Pires, José Cutileiro, Sttau Monteiro, Alexandre O'Neill ou Augusto Abelaira são dos mais assíduos, mas a revista conta com as colaborações de Leitão de Barros, Irene Lisboa, Almada Negreiros, Sophia de Mello Breyner. "No Reino do Pacheco" é a secção não assinada mais delirante, ao lado de artigos de floricultura, automobilismo e até biografias de santos. Vasco Pulido Valente, que aí começou, escreveu neste jornal: "Sem ele e sem o lugar livre e alegre que ele criou na cultura portuguesa, o regime paroquial e bronco de Salazar teria sido para muita gente muito mais pesado". "Houve quem me contasse que chegava ao ponto de ir à livraria e mandar embrulhar o último livro da Ulisseia, qualquer que ele fosse. É o máximo que um editor pode desejar!" Porém, em 1972, decide vender a Ulisseia. Queria continuar a editar um livro por ano, autores clássicos, alguns de carácter erótico ilustrados por mulheres como Sarah Affonso e Maria Keil, em edições de luxo coloridas au pochoir. A sua imaginação sempre foi voadora, andava entusiasmado com aviões. Quis fazer uma companhia de aviação, depois um negócio de importação aérea de marisco de Cabo Verde para a Europa, a meias com Champalimaud. Falharam. Quis comprar a Ulisseia de volta mas a Verbo não acedeu. Fundou então a Meridiano para editar livros para a Gulbenkian, passou como director literário pela Bertrand na revolução, fundou finalmente a Convergência, que manteve até quase ao fim, no Chiado. Sempre que mencionava os seus desaires financeiros, ria-se. Ou não, quando implicavam outros. Nos nossos almoços, falávamos muito do passado e do presente, das aventuras da vida, muito em voo de pássaro pela política, de amor e até de sexo e lingerie. Mas ele queria era falar do futuro. A vida dele era sempre para diante. Quis um dia que fosse sua sócia numa editora só de mulheres, ele achava que o país precisava disso. Outra das sócias seria a sua segunda mulher, Rosa Lobato de Faria, que amava infinita e comoventemente. E insistia noutro projecto, aparentemente megalómano para a sua idade, o primeiro grande dicionário lusófono. Na última vez que almoçámos, há uns meses atrás no Belcanto, o seu corpo estava mais velho mas os seus olhos ainda faiscavam e o seu sorriso matreiro e carinhoso continuava contagiante. Contou-me que relia muito Santo Agostinho, esse autor que disse sobre os mortos, certeiramente, que eles não são ausentes, apenas invisíveis.

1.12.08


[André Breton, Max Morise, Jeannette Tanguy, Pierre Naville, Benjamin Péret, Yves Tanguy, Cadavre Exquis, 1928]