31.12.08

Alguns livros de 2008

  • O Homem sem Qualidades, Robert Musil, Dom Quixote
  • Fome, Knut Hamsun, Cavalo de Ferro
  • Menina Else, Arthur Schnitzler, Cotovia
  • O Diabo e Outros Contos, Lev Tolstói, Relógio D'Água
  • A Educação Sentimental, Gustave Flaubert, Relógio D'Água
  • O Primeiro Amor, Ivan Turgeniev, Relógio D'Água
  • Trópico de Câncer, Henry Miller, Presença
  • O Festim da Aranha, vários autores (escolhidos por Aníbal Fernandes), Assírio & Alvim
  • A Faca Não Corta o Fogo, Herberto Helder, Assírio & Alvim
  • Gatos Comunicantes, Mário Cesariny e Vieira da Silva, Assírio & Alvim
  • O Crocodilo que Voa, Luiz Pacheco, Tinta da China
  • Já Cá Não Está Quem Falou, Alexandre O'Neill, Assírio & Alvim
  • A Vida de Horácio, José António Almeida, &etc
  • Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Fernando Cabral Martins (org.), Caminho
  • Lisboa – História Física e Moral, José Augusto-França, Livros Horizonte

29.12.08

A aberração tornada regra

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"Exemplo triste e eloquente da aberração que se tornou regra: a capa da mais recente reedição de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino (Teorema), tem letras prateadas e em relevo. Calvino é um dos grandes escritores do século XX e este livro é dos mais importantes da sua obra. Não é literatura de quiosque nem se destina às massas. Tentar traficá-lo desta maneira dissimulada é um péssimo serviço prestado pela editora. Mas esta é a regra em que vivemos no campo editorial: os livros são editados visando os «consumidores» que não os vão ler e pondo à distância os leitores que sabem o que querem ler. E como esta é a regra, as livrarias portuguesas tornaram-se um imenso bazar de capas coloridas, o que desafia qualquer capacidade de orientação: é tudo igual a tudo e até um livro de Carl Schmitt (imagine-se) vem disfarçado de subliteratura. A sobreprodução editorial, sem fim à vista, dá ao espectáculo um aspecto exasperado, onde se consuma sem pudor a lei da economia que tem sido transposta para outros campos: a má moeda expulsa a boa moeda."
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[António Guerreiro, Actual (suplemento do Expresso), 27/12/2008]

24.12.08

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[Max Ernst, Virgem espancando o menino Jesus perante três testemunhas: André Breton, Paul Éluard e o pintor, 1926]

23.12.08

Para um Natal O'Neilliano

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Foi recentemente lançado pela MHIJ Editores As Andorinhas não têm Restaurante, colecção de crónicas de Alexandre O'Neill, em versão áudio, com voz de Jorge Silva Melo, que pode ser adquirido em duplo CD ou em MP3. O resultado é excelente, com os textos a ganhar uma nova vida.
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Entretanto, podemos ler um natalício O'Neill no blog da Pó dos Livros, com os Exercícios de auto-apoucamento (com vista ao próximo Natal).

22.12.08

O crepúsculo das tabernas
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Apagam-se com vagar na impiedade do tempo.
Ouço o seu clamor enfraquecido, um gemido impotente
a que em breve ninguém se poderá converter.
Eram os únicos lugares onde sabia estar.
Sem obviamente saber estar, visto a imperícia
me ser tão sanguínea – excepto quando por teimosia
roçava a mais feroz inconsciência e nada então
importava. Mas foi sempre mais frequente ter
de prémio uma excessiva consciência de tudo, da
inexorável tristeza de tudo, embora ali agraciada
com um encanto cáustico:
a possibilidade de reivindicar um inferno.
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A pouco e pouco morrem as portas largas
de ruas estreitas que, à parte outros méritos, ensinavam
com mestria o abandono e a eternidade da sede.
Tive a má sorte de serem meus estes anos que de algum
modo testemunham a despedida dos últimos exílios,
desses redutos sombrios onde se podia renegar
a luz perversa do mundo.
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Abuso mais uma e outra vez os pequenos templos
que perduram. Aproveito como posso a demora
da sentença, mas sei próximo o dia, a furibunda
manhã em que se apagarão de vez os fogos
em que mais apetecia ser lentamente devorado.
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[Manuel de Freitas, in Todos contentes e eu também, Campo das Letras, 2000]

21.12.08

Poema sumário das tabernas de Lisboa
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Rua de São Marçal n.º 56, rua de Campo de
Ourique n.º 39, rua de São Bento n.º
432, rua da Cruz dos Poiais n.º 25ª. Calçada
do Combro n.º 38B, rua da Atalaia n.º 13,
rua de São Miguel n.º 20, rua da
Rosa n.º 123. Travessa do Conde de Soure n.º 7,
travessa dos Remolares n.º 21, rua do
Jardim do Tabaco n.º 3, rua da Regueira n.º 40,
rua das Escolas Gerais n.º 126, rua de Santa
Catarina n.º 28. Largo do Chafariz de Dentro n.º 23,
rua Sampaio Bruno n.º 25, travessa de São
José n.º 27, beco dos Toucinheiros n.º 12-A. Rua
Cidade de Rabat n.º 9, travessa do Alcaide
N.º 15-B, calçada de São Vicente n.º 12,
rua das Flores n.º 6, travessa da Espera n.º 54.
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Praça das Flores n.º 5.
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[Manuel de Freitas, in Todos contentes e eu também, Campo das Letras, 2000]

18.12.08

Lisboa a saque

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Depois de fecharem a Praça das Flores aos seus próprios moradores para apresentar um automóvel, depois de fecharem os Restauradores, Av. da Liberdade e Marquês de Pombal para fazer publicidade a automóveis, depois de forrarem eléctricos, comboios e autocarros, tapando até as suas janelas, depois de colocarem ecrãs de televisão nas estações de metro e dentro dos táxis, depois de colocarem outdoors por todo o lado, mupis no meio dos passeios, e paragens de autocarro com publicidade sonora em altos berros, depois de colocarem publicidade nos degraus das estações de metro e nas casas de banho, depois de colocarem telas gigantes a tapar os edifícios que esperam demolição, depois de embrulharem o cristo-rei e colocarem umas estranhas estruturas (a que chamam “maior árvore de natal da Europa”) em vários pontos da cidade, só faltava mesmo a ocupação selvagem, durante 2 meses, das principais praças de Lisboa.
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Imagens tiradas daqui e daqui.

16.12.08

Nesta quadra tão especial, dois lindos livrinhos que ficam bem em qualquer sapatinho

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Crimes Exemplares, de Max Aub, com tradução de Jorge Lima Alves, em edição ilustrada, da Antígona.
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O Festim da Aranha, histórias em estado de crueldade encontradas e traduzidas por Aníbal Fernandes, da Assírio & Alvim.

12.12.08

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[Cruzeiro Seixas, Primeiro Estudo para Futuros Encontros, 1954]

11.12.08

Nova Buchholz

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É hoje inaugurada mais uma livraria em Lisboa. Trata-se de uma nova Buchholz, no Largo Rafael Bordalo Pinheiro, no Chiado, no local onde estava o antigo armazém da Sá da Costa.
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A Bucholz foi comprada recentemente pela Fundação Agostinho Fernandes (que adquiriu também as editoras Sá da Costa e Portugália e a livraria Sá da Costa), que aparentemente pretende manter também o antigo espaço na Duque de Palmela.
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Ainda não percebi se a ideia é recuperar a Buchholz e algumas das suas características mais marcantes ou simplesmente aproveitar a marca.
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A inauguração é às 19h.

9.12.08

Nada de Melancolia

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Chega hoje às livrarias Nada de Melancolia, de Pedro Mexia, livro que reune crónicas que escreveu para a revista NS em 2006 e 2007. A edição é da Tinta-da-China.
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«Talvez não devesse ter regressado ao lugar onde fui feliz, ou assim me lembro dele, com as ruas baixinhas, quase de brinquedo, as multidões sempre pequenas, os vestígios da praia ainda no corpo ao fim do dia, entre um gelado e a caixa dos bonecos. Quando regressei, de passagem, a cidade estava irreconhecível, mais ampla e moderna, já não era minha, a Figueira da Foz já só existe na minha lembrança ou imaginação, se é que há diferença entre uma e outra. Reconhecia os sítios mas não reconhecia o espírito dos sítios, indestrinçável de quem eu fui, da infância como eu me lembro dela, plácida e segura e cheia de possibilidades. No meio dessa estranheza, entro na rua do Casino e vejo aquela ancestral montra dos bonecos, aquela caixa de madeira e metal, ainda na mesma entrada do mesmo salão de jogos, mas agora ela mesma uma diversão arcaica, museológica, tão distante como a infância ou os anos setenta. Ninguém lhe ligava nenhuma. Ninguém usava uma moeda que tivesse sobrado, suponho que euros agora em vez de escudos. Os bonecos estavam parados, não tocavam, nem dançavam, nem faziam a sua coreografia automática mas mágica. Meti a mão ao bolso e peguei numa moeda. Quis pôr a infância em acção, musical e cromada, ali à vista de todos e à minha, o circo ambulante e estático da minha infância por interpostos bonecos. Hesitei. Desisti. Virei costas e pensei: "Nada de melancolia."»
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[Pedro Mexia, in Nada de Melancolia]

5.12.08

Antologia do Humor Português

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Em 1969, Ernesto Sampaio e Virgílio Martinho publicavam na Afrodite, de Fernando Ribeiro de Mello, uma Antologia do Humor Português, reunindo em mais de 1000 páginas nomes que iam de Gil Vicente a Mário Cesariny, passando por Cavaleiro de Oliveira, Bocage, Camilo, Eça, Fialho, Gomes Leal, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Manuel de Lima, Alexandre O’Neill ou António Maria Lisboa. Infelizmente, nunca foi reeditada, sendo por isso quase impossível encontrá-la (às vezes aparece em alfarrabistas).
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Trinta anos depois, assumindo-se como uma espécie de sucessores de Ernesto Sampaio e Virgílio Martinho, Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos editam, na Texto, uma nova Antologia do Humor Português, reunindo textos de 1969 para cá.
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A escolha dos autores é bastante abrangente e, talvez por isso mesmo, com alguns desequilíbrios. A maioria dos autores antologiados é de primeiríssima água: Luiz Pacheco (com um excerto do Libertino passeia por Braga), Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, Mário-Henrique Leiria, Natália Correia, Dinis Machado (com um excerto d’O Que Diz Molero), Fernando Assis Pacheco, Alberto Pimenta, Alface, Adília Lopes e Miguel Esteves Cardoso, entre muitos outros, são nomes maiores da literatura portuguesa das últimas décadas. No entanto alguns textos, sobretudo mais recentes, não têm grande qualidade ou até nenhuma (juntar Nilton e Cesariny numa mesma antologia é um bocado forçado…).
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De qualquer forma, exceptuando meia-dúzia de coisas francamente dispensáveis, a antologia é muito boa, com os textos bem escolhidos e constituindo uma boa amostra do melhor humor português que foi possível ler nas últimas 3 décadas.
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A apresentação do livro, a cargo de Pedro Mexia e Nuno Markl (ambos antologiados), será feita na próxima 5ª feira, dia 11, às 21.30, na Casa Fernando Pessoa. Maria Rueff e Miguel Guilherme lerão alguns textos.
QUE VERGONHA, RAPAZES!
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Que vergonha, rapazes! Nós pràqui
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no «diz que»
e a desnalgar a fêmea («Vist'? Viii!»)
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Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.
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Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(«O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!»)
e desabafo: -Ó Roque, com franqueza:
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Você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, Snr. O'Neill! E ... as varizes?
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[Alexandre O'Neill, in De Ombro na Ombreira (1969) e Antologia do Humor Português (org. de Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos, 2009)]
Ao rés do orgasmo,
naquela noite ordinaríssima como um soneto,
teve ainda de lhe explicar
que van Gogh não era
nem um pintor japonês
nem o índice da Bolsa holandesa.

[anónimo, in Bardamerda (& etc, 1999) e Antologia do Humor Português (org. de Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos, 2009)]
NOIVADO
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Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.
- És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia.
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[Mário-Henrique Leiria, in Contos do Gin-Tonic (1973) e Antologia do Humor Português (org. de Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos, 2009]
É preciso agir
é preciso foder
isto é etimologicamente
cavar
na cidade
é por vezes
tão difícil foder
como cavar
mas mando quinze tampas
de iougurte Longa Vida
natural
para o Apartado 4450
e plantam-me
uma alfarrobeira
na Arrábida
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[Adília Lopes, in Sete Rios Entre Campos (& etc, 1999) e Antologia do Humor Português (org. de Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos, 2009)]

4.12.08

Trama: o primeiro ano

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Com uns dias de atraso, aqui vão os meus parabéns pelo primeiro aniversário da Trama.

3.12.08

Lisboa, História Física e Moral

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José-Augusto França acaba de lançar, nos Livros Horizonte, uma ambiciosa Lisboa, História Física e Moral, cobrindo em 850 páginas toda a história da cidade desde os seus primeiros habitantes até à actualidade.
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A apresentação do livro vai ser feita hoje às 18:30, no Centro Nacional de Cultura (Largo do Picadeiro, nº 10 1º ao Chiado), por Ana Tostões e José Custódio Vieira da Silva.

2.12.08

Dois grandes editores desaparecidos

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Desapareceram na semana passada dois editores portugueses da maior importância, um deles ainda em actividade:
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No Domingo, dia 25, faleceu Rogério Mendes de Moura (1925-2008), fundador dos Livros Horizonte, que ainda dirigia. Desta editora assinale-se, entre outras coisas, a importante colecção Cidade de Lisboa. Pode ler-se aqui um artigo no DN de Junho de 2007 sobre este editor.
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Um dia depois faleceu Joaquim Figueiredo Magalhães (1916-2008), que se destacou sobretudo por ter fundado e dirigido durante alguns anos a Ulisseia (o seu sucessor foi Vitor Silva Tavares), editora marcante pela publicação de inúmeros autores estrangeiros nunca antes editados em Portugal (Faulkner, Kerouac, Durrel, etc.) mas também grandes autores portugueses (Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira, etc.), tudo isto com uma qualidade invulgar para a época.
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O Público de ontem trazia um artigo de Catarina Portas sobre Joaquim Figueiredo Magalhães, que deixo aqui:
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Joaquim Figueiredo Magalhães (1916-2008)
O último livro da Ulisseia s. f. f.

01.12.2008
Por Catarina Portas

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Sempre acreditei que a morte não teria coragem de se aproximar dele. Mas, afinal, também ela não lhe resistiu. Aos 92 anos, desapareceu Joaquim Figueiredo Magalhães, o primeiro grande editor moderno português. Ele era o homem mais vivo que jamais conheci. Maravilhosamente culto, espantosamente audaz, loucamente imaginativo e, para usar uma das suas expressões favoritas, altamente divertido, este homem era também, em igual medida, justo e generoso. Todos aqueles que gostam de livros lhe devem mais do que sabem.
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Era, de facto, um homem irresistível. Quando nos cruzámos na vida, eu ainda não tinha 30 anos e ele aproximava-se dos 80 mas, com absoluta naturalidade, ficámos amigos. Costumávamos almoçar no Chiado, no pequeno Restaurante da Trindade, onde há décadas tinha mesa cativa junto à janela, ou na Severa, ao Bairro Alto. Ele queria sempre falar do futuro mas eu espicaçava-o para que me contasse as histórias do seu passado. Ouvi-lo era pura volúpia. Nasceu no Porto a 5 de Agosto de 1916, filho de boas famílias. Um dia perguntei-lhe o que o levou a ser editor e ele respondeu: "Tanto a família do meu pai como a da minha mãe tinham boas bibliotecas." E ele lia, lia tudo porque não lhe proibiam nada. Fez os estudos primários em escolas municipais, "o que me deu imensa alegria, uma grande liberdade e uma compreensão, precoce, da solidariedade". Mais tarde, foi enviado para o elitista colégio jesuíta de La Guardia, na Galiza, e depois para o seu equivalente português, o colégio das Caldas da Saúde. "Os jesuítas tinham uma maneira extraordinária de nos manipular, para aprendermos e termos prazer no conhecimento." Vem para Lisboa em 1936, estudar Histórico-Filosóficas, e simultaneamente matricula-se na Escola Superior Colonial, um curso que era "pura fantasia".
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Reclames de avioneta
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Aquele espírito vivo que nos iluminava as conversas nasceu com ele. Mal concluiu os dois cursos, pôs-se a ter ideias para montar negócio. Fez uma tentativa ambiciosa para obter a representação da Coca-Cola em Portugal. Em 1945, fundou a Stop, uma agência de publicidade, em colaboração com um pintor e um escritor, "eu era o das ideias", claro está. Interessou-se por helicópteros americanos e quis fazer um aeroporto "com cara de aeroporto" para substituir os barracões da Portela de então. Sempre investimentos grandes que não foram adiante porque a banca não acreditou naquele homem que não sabia pensar pequeno, à escala do país em que vivia. Morava no Chiado e frequentava os seus cafés, o Café Chiado e a Brasileira, onde dominavam os intelectuais de acção nas mesas da frente e os políticos e os agentes da PIDE lá atrás. A sua juventude impressionou-se com os intelectuais, esses seres "flamejantes". Queixavam-se todos de que tinham obra mas não quem os editasse. Ele ouviu-os e aventurou-se. Começou por edições soltas, entre elas O Barão de Branquinho da Fonseca. Com dinheiro de família, funda em 1950 a primeira editora, a Édipo, lançando a colecção Escaravelho d'Ouro. "Os nossos intelectuais, na altura, entendiam que a literatura policial era secundária, de fancaria. Mas há livros notáveis: o Chandler, o Dashiel Hammet, a Agatha Christie, o Simenon, o Maurice Leblanc, fui eu que os editei." Com a imaginação, a audácia e a argúcia que haveriam de caracterizar toda a sua actividade editorial, decide apostar no gosto português pelo jogo e logo inventa uma colecção de 12 volumes, cada uma das obras passando-se numa cidade diferente do mundo. Em cada volume, inclui três talões, um para o livreiro e dois para o leitor, dando direito a participar num sorteio mensal de uma viagem ao "local do crime", durante uma semana e num hotel de cinco estrelas. Inovou na divulgação, publicitando a colecção em chapéus de papel no futebol, sobrevoando o Estádio Nacional numa avioneta com reclame, mandando pintar a empena de um prédio nos Restauradores. Foi um sucesso. "Não se perde dinheiro como editor quando se esgotam os livros todos." Com os lucros da Escaravelho d'Ouro, Joaquim Figueiredo Magalhães lança dois anos mais tarde a Ulisseia. "Achei que devia iniciar actividade com um pleito à arte da edição e por isso o primeiro livro foi Da Famosa Arte da Imprimição de Américo Cortês Pinto." Para perceber porque Figueiredo Magalhães ganhou o título de primeiro editor moderno português basta olhar para os mais de 20 anos da Ulisseia. Aos seus conhecidos do Chiado foi buscar os membros do Conselho de Leitura. Branquinho da Fonseca, Casais Monteiro, Mário Henrique Leiria, Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, João Gaspar Simões, e mais quem aparecesse, reuniam-se nas tardes de sexta-feira "com uma garrafa de whisky" para comentar os livros, trocar as revistas literárias estrangeiras que assinava, assinalar possíveis problemas com a censura, decidir tradutores. "Escolhi escritores como tradutores porque eram homens que sabiam português. É que se eu quisesse alguém que soubesse línguas, entregava as traduções ao porteiro do Avenida Palace que sabia oito idiomas, só não sabia era português. Mas também preferia os escritores porque gostavam do que traduziam, traduziam por gosto." E pagava bem as traduções, não se esquecendo de, em cada reedição, enviar um cheque, tanto a tradutores como capistas, no valor de um terço dos honorários iniciais. Em Londres, conheceu Neves Pedro, que era guia intérprete, logo percebeu que era um homem de "boa ilustração" e aliciou-o para se tornar seu agente. "Ele levantava muita caça." A lista de escritores que a Ulisseia publicou pela primeira vez em português é uma caçada deveras impressionante: Hemingway, Faulkner, Orwell, Steinbeck, Caldwell, Doris Lessing, Kingsley Amis, Pratolini, Coccioli, Moravia, Julien Green, Mauriac, Sagan - e são só alguns. Foi a Ulisseia que publicou o Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell, o On the Road do Kerouac, As Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar, O Americano Tranquilo de Graham Greene. Tinha mais direitos de livros do que aqueles que conseguia editar, vendia-os aos outros. Foi o primeiro editor português a ir à feira de Frankfurt, ficou a conhecer bem a Alemanha porque "já tinha tudo comprado antes".
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Negócio com a censura
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Vou à estante, à prateleira onde estão as edições da Ulisseia que continuo a coleccionar, e tiro um exemplar: O Ente Querido de Evelyn Waugh. A capa moderna e luminosa é de Querubim Lapa, a tradução de Jorge de Sena e o livro está semeado de deliciosas ilustrações de João Abel Manta. Não é apenas um livro, é uma edição perfeita. O seu credo: "Cada livro deveria ser uma obra artística, quer no texto, quer na ilustração. Por isso cada obra tinha uma equipa: o capista, o ilustrador, o tradutor e o autor." Gostava de artes gráficas e, para as capas, chamou artistas como Sebastião Rodrigues, Querubim Lapa, Vespeira, António Garcia, Câmara Leme, etc. Estruturou a edição em diferentes colecções: a "Série Literária" para a grande ficção de romancistas estrangeiros contemporâneos; a "Sucessos Literários" para best-sellers do momento; a "Documentos do Tempo Presente" de livros de ensaio, memórias e outros; e, finalmente, a "Atlântida", onde conviviam escritores portugueses, brasileiros, espanhóis e ibero-americanos. Aos portugueses, propôs desde logo um negócio inédito. Decidiu pagar os mais altos direitos de autor do mercado, 20 por cento do preço de capa, e adiantava mensalmente uma parcela dessa verba para que pudessem escrever em paz. Editou Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, David Mourão-Ferreira ("Gaivotas em Terra, fui eu que lhe dei o nome"). Praticamente nunca editou poesia. "Só editava aquilo que conhecia e que sentia. E a poesia só comecei a senti-la depois. Nessa altura, até o próprio Pessoa me passou um pouco ao lado", lembrava num instante muito raro de alguma tristeza. Voltava logo ao seu tom malicioso quando o questionava sobre o seu equilíbrio improvável na sociedade da época: "Eu estava muito bem colocado entre os jesuítas, a censura e os comunistas." A dada altura, entregava traduções a presos políticos em Peniche e em Caxias, justificando à censura que "sempre é preferível estarem a trabalhar do que a conspirar... E assim as famílias sempre recebiam algum". Pois nem a censura lhe conseguia resistir, publicou 14 livros proibidos. "Todos os livros proibidos foram sempre um negócio. E também um negócio com a censura." Ria-se, ria-se perdidamente ao revelar o estratagema engendrado para a publicação do escandaloso Bonjour Tristesse. Comprara os direitos antes de descobrir que a edição francesa já estava proibida em Portugal. "Como é que eu podia pôr o livro cá fora? Desde que ele fosse muito bem amparado!" Assim, contratou para tradutora Carmo Azambuja, irmã de Natércia Freire, presidente do Apostolado de S. Francisco de Paula, crítica literária no Diário de Notícias e figura conceituada do regime, pedindo a esta última o prefácio. Passou o dito cujo prefácio ao "amigo do peito da Natércia", o crítico oficial do Estado Novo João Ameal, a quem confidenciou que o cardeal arcebispo de Viena tinha recomendado o livro "para prevenir contra os maus exemplos". Depois, foi ter com Armando Larcher, o director da censura, com quem mantinha um diálogo cordato. Não, ele não podia levantar a proibição. "Mas também não me podia impedir de o oferecer às livrarias... Chegámos a esse acordo. Por isso é que todos os livros têm "oferta do editor", escrito à mão que até me doía o braço! Chegou aos 20.000 exemplares. E como era proibido, os livreiros não podiam descontar a sua parte. Eles vendiam e eu ganhava. Foi assim que comprei o meu iate."
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Suite nº5
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Ríamos muito, que ele sempre levou a ironia muito a sério. O nosso episódio preferido era a "história do grande bluff" ou de como Joaquim Magalhães conseguiu arrancar à Penguin os direitos para Portugal e o Brasil da sua famosa colecção Pelican, que tantos dos seus pares cobiçavam à época. Para tal informou-se sobre os aposentos mais exclusivos na cidade de Londres e assim reservou por uma única noite a suite n.º 5 do Dorchester Hotel. "Tinha um hall extraordinário, com uma carpete que parecia uma savana, daquelas em que as pessoas parece que se enterram até ao pescoço." E fez saber que, editor de passagem na cidade, gostava de se encontrar com Sir Allen Lane, o célebre dono da Penguin. Este, impressionou-se devidamente e mandou o Rolls Royce buscá-lo. Nesse almoço, Figueiredo Magalhães convenceu-o. E ainda convidou Tom Maschler, o editor da Pelican, a vir a Portugal mas, para evitar a ruinosa diária do Ritz, sugeriu-lhe que fosse passar a semana a bordo do seu iate no Algarve. "A história espalhou-se. O Sir Collins já me queria dar a representação da Phaedon, a Carmen Bacellos procurou-me em Barcelona... Achavam que eu era o Onassis da edição!"
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Só de mulheres
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Em 1959, resolve lançar uma revista, o Almanaque, cujas 18 capas de Sebastião Rodrigues e de Abel Manta são pura antologia da história do design gráfico português. Cardoso Pires, José Cutileiro, Sttau Monteiro, Alexandre O'Neill ou Augusto Abelaira são dos mais assíduos, mas a revista conta com as colaborações de Leitão de Barros, Irene Lisboa, Almada Negreiros, Sophia de Mello Breyner. "No Reino do Pacheco" é a secção não assinada mais delirante, ao lado de artigos de floricultura, automobilismo e até biografias de santos. Vasco Pulido Valente, que aí começou, escreveu neste jornal: "Sem ele e sem o lugar livre e alegre que ele criou na cultura portuguesa, o regime paroquial e bronco de Salazar teria sido para muita gente muito mais pesado". "Houve quem me contasse que chegava ao ponto de ir à livraria e mandar embrulhar o último livro da Ulisseia, qualquer que ele fosse. É o máximo que um editor pode desejar!" Porém, em 1972, decide vender a Ulisseia. Queria continuar a editar um livro por ano, autores clássicos, alguns de carácter erótico ilustrados por mulheres como Sarah Affonso e Maria Keil, em edições de luxo coloridas au pochoir. A sua imaginação sempre foi voadora, andava entusiasmado com aviões. Quis fazer uma companhia de aviação, depois um negócio de importação aérea de marisco de Cabo Verde para a Europa, a meias com Champalimaud. Falharam. Quis comprar a Ulisseia de volta mas a Verbo não acedeu. Fundou então a Meridiano para editar livros para a Gulbenkian, passou como director literário pela Bertrand na revolução, fundou finalmente a Convergência, que manteve até quase ao fim, no Chiado. Sempre que mencionava os seus desaires financeiros, ria-se. Ou não, quando implicavam outros. Nos nossos almoços, falávamos muito do passado e do presente, das aventuras da vida, muito em voo de pássaro pela política, de amor e até de sexo e lingerie. Mas ele queria era falar do futuro. A vida dele era sempre para diante. Quis um dia que fosse sua sócia numa editora só de mulheres, ele achava que o país precisava disso. Outra das sócias seria a sua segunda mulher, Rosa Lobato de Faria, que amava infinita e comoventemente. E insistia noutro projecto, aparentemente megalómano para a sua idade, o primeiro grande dicionário lusófono. Na última vez que almoçámos, há uns meses atrás no Belcanto, o seu corpo estava mais velho mas os seus olhos ainda faiscavam e o seu sorriso matreiro e carinhoso continuava contagiante. Contou-me que relia muito Santo Agostinho, esse autor que disse sobre os mortos, certeiramente, que eles não são ausentes, apenas invisíveis.

1.12.08


[André Breton, Max Morise, Jeannette Tanguy, Pierre Naville, Benjamin Péret, Yves Tanguy, Cadavre Exquis, 1928]

27.11.08

Poesia Incompleta

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A notícia da abertura de uma livraria independente é sempre um acontecimento a festejar, mas se essa livraria se dedica em exclusivo à poesia e está recheada de fundos de catálogo e livros raros e esgotadíssimos em todo o lado, isso constitui uma visão do paraíso.
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É o que acontece com a Poesia Incompleta, uma nova livraria dedicada à poesia, que abriu as portas na 2ª feira, na Rua Cecílio de Sousa, nº 11 (entre o Príncipe Real e a Praça das Flores).
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O espaço é pequeno mas muito simpático e acolhedor, a selecção de livros é irrepreensível e o livreiro, Changuito, é mesmo um livreiro a sério, daqueles que informam, aconselham e metem conversa com os clientes. Serei certamente visita regular da casa. Para já, na primeira visita, excedi largamente todo o meu orçamento possível e imaginário ao deparar-me com uma série de coisas que há muito procurava.
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É muito interessante a criação nesta zona da cidade de um pequeno circuito de excelentes livrarias (Trama, Poesia Incompleta, Letra-Livre) todas relativamente próximas umas das outras. Sendo certo que somos poucos os leitores de poesia, fundos de catálogo e outras coisas mais ou menos “marginais”, numa altura em que fnacs e bertrands reduzem drasticamente estas áreas, tenho esperança que sejamos suficientes para manter este circuito.
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Sobre a Poesia Incompleta, o José Mário Silva deixou uma reportagem (com muitas fotos) no Bibliotecário de Babel e a Isabel Coutinho escreveu um artigo para o Público de 3ª feira. Deixo aqui este último:
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"Poesia? Mas isso dá dinheiro?"
25.11.2008, Isabel Coutinho
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Poesia Incompleta é uma livraria de poesia em Lisboa
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Poesia Incompleta é o nome da "primeira livraria portuguesa de poesia", que abriu ontem em Lisboa, no n.º 11 da Rua Cecílio de Sousa, entre o Príncipe Real e a Praça das Flores. A um passo da Assembleia da República e do bar Finalmente, numa casa que até tem um quintal com uma buganvília e uma pequena hera que veio da Grécia pela mão de Hélia Correia. Sala a sala, estante a estante, vamos encontrando livros novos, mas também esgotados e raros. Todos relacionados com poesia ou com poetas, publicados em várias línguas.
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Este é um sítio aonde se vai para comprar livros, mas também para conversar com Changuito, jovem livreiro com sentido de humor aguçado, que aprendeu a gostar de poesia com a avó e também com a mãe, a actriz Maria do Céu Guerra. Numa estante da livraria Poesia Incompleta há uma máquina de escrever muito velhinha e em cima da secretária, que serve de balcão, está pendurado um enorme "poster" com três retratos de Mário Cesariny. O poeta é um dos "super-heróis" de Mário Guerra, ou melhor, de Changuito, como gosta de ser tratado. Há muitos anos a explorar o bar do Teatro da Barraca, onde organiza a animação cultural, teve também um bar na Bica, em Lisboa, onde também vendia livros. Aos 34 anos, perdeu a paciência e farto de ir a livrarias onde lhe diziam "esse livro está esgotado" ou "esse livro não existe", resolveu passar de leitor a vendedor de livros.
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"Poesia? Mas isso dá dinheiro?" foi uma das perguntas que mais lhe fizeram quando começou a dizer que queria abrir uma livraria que vendesse especificamente poesia. "Ah, isso é um acto poético", também lhe disseram. Uma pessoa de quem ele gosta muito reagiu: "Isso é a última aventura surrealista!" Às vezes, diz, olham para o projecto como se fosse uma coisa de malucos. "Que engraçado, então uma livraria de poesia. Mas vai ter só poesia?", perguntam. É verdade que no Porto já existe a Poetria, mas além de poesia também vende teatro.
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Para o projecto ser viável, tem que vender cinco livros por dia e Changuito acredita que isso é possível: "Se houvesse uma livraria destas com a qual eu não tivesse nada a ver, passaria aqui pelo menos uma vez por semana."
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Confessa-se um leitor "caótico, desordenado, laxista, um bocadinho diletante" e quis reunir num mesmo espaço uma parte significativa daquilo que considera ser o melhor da produção poética.O espaço da Poesia Incompleta é limitado fisicamente, mas mesmo que a livraria estivesse coberta de estantes Changuito não teria à venda tudo. A livraria tem a sua marca pessoal. "O nome, Poesia Incompleta, é a única coisa que aqui não é ingénua", diz.
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A inspiração veio da obra Poesia Toda, de Herberto Helder. "O poeta pode ter essa ambição porque aquilo é realmente a poesia toda. Mas uma livraria, ainda por cima de poesia, será sempre manca. Ainda agora chegou aqui um rapaz que me falou de um poeta que eu não conhecia. São muitos mais os que não conheço e os que não tenho. O meu esforço vai no sentido de ter uma escolha inquestionavelmente boa. Não sei se o caminho desta livraria é para a completude. Espero que não, quero que seja um caminho para prestar um serviço bom, mas sempre aberto a incompletudes."A livraria tem tudo o que ele acha que tem qualidade. Livros novos e esgotados, portugueses e estrangeiros, uma secção em crescendo de revistas e de áudio (de poetas a dizerem-se). Os exemplares do esgotadíssimo A Faca Não Corta o Fogo, de Herberto Helder, já têm destino: vão para clientes que os reservaram. Mas um deles está a ser leiloado no blogue da livraria (http://www.poesia-incompleta.blogspot.com/) com uma base de licitação de 15 euros. Os interessados podem fazer propostas por e-mail.
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Do que tem à venda na livraria, destaca o novo livro de Carlos Mota de Oliveira, Logo, em Porto Formoso, e Comércio Tradicional, de Vítor Nogueira, Cobra, de Herberto Helder, o livro mais caro que tem neste momento (500 euros), Para Uma Cultura Fascinante, de Ernesto Sampaio, e um CD de Pablo Neruda a dizer a sua poesia. A Poesia Incompleta está aberta de segunda a sábado, das 10h00 às 19h45. Há livros a partir de 2,5 euros.

26.11.08

2 anos sem Mário Cesariny (9 de Agosto de 1923 - 26 de Novembro de 2006)

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a antonin artaud
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I
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Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.
De cada vez que alguém me chama Mário
de cada vez que alguém me chama Cesariny
de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos
sucede em mim uma contracção com os dentes
há contra mim uma imposição violenta
uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.
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Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus
……….de Vasconcelos?
Porque é que querem fazer passar para o meu corpo
uma caricatura a todos os títulos porca?
Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios
para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas
tão inqualificáveis quanto inadequadas
ao acto em mim sozinho como a vida…..puro
eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito…..eu
não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes…..mais vulneráveis…..da matéria
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Eu estou só neste avanço
de corpos
contra corpos
Inexpiáveis
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O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar «tenebroso
……….e cantante» suficientemente glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito — e creio que digo bem —
nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante
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Por outro lado, se eu tivesse um nome
um nome que me fosse…..realmente…..o meu nome
isso provocaria
calamidades
terríveis
como um tremor de terra
dentro da pele das coisas
dos astros
das coisas
das fezes
das coisas
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II
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Haverá uma idade para nomes que não estes
haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos
dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas
puras
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Ah não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura dos sábios…..nem a razão de ninguém
Não será mesmo quem sabe…..ó único mestre vivo
o fim da pavorosa dança dos corpos
onde pontificaste…..de martelo na mão
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Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas
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Haverá
um acordar
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[Mário Cesariny, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 2004]

25.11.08

Mário Cesariny - excerto do documentário Autografia

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[Autografia (2004), documentário de Miguel Gonçalves Mendes sobre Mário Cesariny]

24.11.08

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[Mário Cesariny Naniôra – Uma e Duas, 1960]

21.11.08

O fim da Byblos

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A Byblos fechou definitivamente as portas, algo que já se adivinhava há algum tempo. O projecto inicial era entusiasmante mas desde a sua abertura, em Dezembro do ano passado, tornou-se óbvio que as coisas não estavam a correr bem.
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Tudo começou pela localização escolhida. Completamente fora dos circuitos tradicionais das livrarias, numa zona pessimamente servida de transportes públicos, com estacionamento muito difícil e num horrível edifício de escritórios, a localização dificilmente poderia ter sido pior.
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Mas o mais grave é que a livraria nunca conseguiu corresponder às promessas iniciais. Com uma dimensão gigantesca, nunca conseguiu ter uma oferta condizente com esse espaço. Nunca teve “tudo o que está publicado em Portugal” nem nada que se parecesse. Embora a situação tenha melhorado desde a inauguração, em muitas áreas a oferta não era muito diferente da FNAC do Chiado, por exemplo. Depois, toda a parafernália tecnológica nunca funcionou devidamente, o site era ridículo, a secção de música e filmes era fraquíssima, o bar era igualmente mau, a zona de revistas e jornais a dada altura deixou de existir e as actividades “culturais” organizadas não passavam, regra geral, da apresentação de um qualquer livreco light. Grave foi também a relação com os funcionários, conturbada desde o início.
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Não é nada frequente que alguém se disponha a investir somas avultadas numa livraria, por isso é de facto uma pena que esta não tenha resultado e que tanto dinheiro tenha sido desperdiçado num projecto cheio de boas intenções, mas com claros sinais de desorganização e amadorismo.

20.11.08

Entrevista com Vitor Silva Tavares

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Completamente por acaso, dei com esta entrevista com Vitor Silva Tavares publicada por um jornal brasileiro, K Jornal de Crítica, no seu número 17, de Novembro/Dezembro de 2007. Destaque-se, entre muitas outras coisas, o episódio da apreensão do livro O Bispo de Beja, em 1980:
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LETRAS, ATIVISMO E RESISTÊNCIA
Vitor Silva Tavares e a Editora &etc
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Vitor Silva Tavares, jornalista e editor nascido em Lisboa em 1937, trabalhou na Ulisseia (fundada por Abel Pereira da Fonseca) e fundou sua própria editora, a &etc (Edições Culturais do Subterrâneo), que teve origem em um magazine publicado no Jornal do Fundão. Esse magazine tornou-se uma revista (de 1973 a 1974) e, em 1974, pouco antes do 25 de Abril, uma editora, que prossegue muito ativa. Nela, publicou Adília Lopes e Henri Michaux, Alberto Pimenta e Max Ernst, Hermann Ungar e Ana Hatherly, Bataille e Herberto Helder, Sade e Satie, Picasso e Luís Miguel Nava, Nunes da Rocha e Nâzim Hikmet... Trata-se de uma empresa anticapitalista, que não fica com o copyright das obras. Ademais, nunca reedita livros (com exceção do único que foi censurado em Portugal após o fim do fascismo, episódio contado nesta entrevista) - o dinheiro é pouco e sempre usado para livros novos.
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Pouco depois de completar setenta anos, em julho de 2007, Vitor Silva Tavares concedeu a Fabio Weintraub e Pádua Fernandes esta entrevista na sede da editora.
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K - Como surgiu a intenção de ser editor?
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VST - Foi por mero acaso, que uma grande editora portuguesa [Ulisseia] de repente ficou sem orientação e alguém se lembrou de sugerir o meu nome, justamente porque sabia que eu era um leitor compulsivo, tinha adquirido uma razoável cultura literária, e não apenas literária, mas artística (meus interesses se alargavam para o campo das artes plásticas, do cinema e por aí afora). Fui aceito e lá fiquei por mero acaso, aliás, como quase tudo o que ocorre na minha vida. Creio, porém, ser do André Breton aquela frase que diz que a única coisa que não acontece por acaso é o acaso. Parece que tinha que ser.
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K - Isso foi na Ulisseia. Mas antes disso houve o trabalho como jornalista.
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VST - Sim. A minha estréia nos jornais foi da seguinte maneira: um jornal daqui de Lisboa, chamado Jornal do Comércio, abriu um concurso literário a que chamou "A oportunidade 202". Quem ganhasse o prêmio, além da publicação no jornal, recebia 202 escudos. Resolvi concorrer. Só que, em vez de mandar poesia, conto, enfim, literatura de ficção, mandei uma reportagem sobre pequenos delitos. Ali onde agora está a Biblioteca Camões funcionava o Tribunal dos Pequenos Delitos. Fiz uma reportagem sobre um dia de trabalho nesse tribunal. Escusado será dizer que ganhei os 202 escudos. Mais do que isso: ligaram do jornal para perguntar à minha mãe que idade eu tinha e se eu era bom estudante, ao que ela respondeu: "Não, é um vadio". Quando publicaram o texto, fizeram uma pequena nota que revelava minha idade (15, 16 anos), me aconselhava a prosseguir nos estudos e me dizia para não esquecer que eu tinha uma caneta de ouro. Abriram-me então espaço para eu continuar a escrever.
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K - Conte-nos um pouco mais do seu encontro com o surrealismo e com os surrealistas portugueses.
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VST - Tive conhecimento direto, pessoal, dos representantes do surrealismo português. Houve dois grupos, digamos assim, na história do surrealismo português. Um deles era algo folclórico, superficial, epidérmico. Uma cisão no interior desse primeiro grupo veio gerar o segundo, para mim o mais autêntico. Aquele que vem a juntar Mário Cesariny, que havia passado pelo primeiro (e lá continuou em parte), António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Henrique Leiria e outros. Como é que vim a conhecê-los? Sempre através da Ulisseia. Antes de entrar para a Ulisseia, fiz uma viagem a Paris (exclusivamente para procurar autores, livros, editoras) e lá comprei a História do Surrealismo, do Maurice Nadeau. Ao chegar a Lisboa, já na Ulisseia, convidei o Mário Cesariny para traduzir e apresentar o volume. Mal podia adivinhar que não se davam: Cesariny repudiava completamente o historicismo de Nadeau. Os surrealistas portugueses são alheios à historicidade. Não é papel deles se debruçar sobre a história, muito menos sobre a própria história. Portanto, a tradução não foi avante. Em compensação, Cesariny propôs a Ulisseia uma espécie de antologia por ele organizada, que eu publiquei sob o título A Intervenção Surrealista [1966]. Uma antologia muito mais ortodoxa, bretoniana, seguindo a linha dos manifestos. Foi o primeiro livro surrealista que publiquei na Ulisseia. Em Portugal ninguém publicava os surrealistas. Era um pequeno grupo em ruptura com o neo-realismo vigente, que ocupava jornais, editoras em resistência ao fascismo. Ninguém publicava aqueles rapazes algo bizarros que andavam à noite a apanhar gatos em cima dos telhados e a os meter em caixas de papelão e outras coisas assim. Então eu botei a Ulisseia a serviço dos surrealistas portugueses, com quem tive contatos pessoais, nas noitadas, nas boêmias, nos cafés. De resto, há uma história interessante. Certo dia Cesariny chamou-me a um cafezinho para uma conversa. Lá fui eu. Ele, com o ar conspirativo, vozinha baixa, ao fim e ao cabo propôs-me entrar no grupo surrealista, um grupo fechado. Disse-lhe: "Sim, senhor. Mas quanto é que se paga por cota?" O que podia ser entendido como provocação foi logo secundado por uma gargalhada que cimentou um tipo de relação especificamente surrealista. A simples pergunta dava logo uma distância, digamos assim, dialética em relação ao movimento.
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K - A África foi determinante para a formação de suas convicções políticas. Você voltou de lá politicamente diferente. Isso se deveu à sua atuação jornalística?
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VST - Sim, em certa medida. Em 1959 fui a Benguela e, em março de 1961, rebenta a guerra em Angola. Quando começa a guerra em Benguela, os brancos vão à África do Sul comprar armamentos. Essa gente virava-se para mim, mostrava os bacamartes e dizia que, se chegasse ali a guerra, o primeiro a ser abatido seria eu, porque era mais preto do que os pretos. Naquela altura não percebia como tudo aquilo fazia parte da guerra fria, na competição por zonas de influência e por matérias-primas, pelas riquezas incomensuráveis do continente. Tinha ainda uma perspectiva humanista e lírica: via apenas o problema das independências nacionais, de povos que queriam se libertar da tutela de seus colonizadores. Sabia, porém, que os americanos estavam, grosso modo, por trás da UNITA [União Nacional para a Independência Total de Angola.], e sobretudo da UPA [União dos Povos de Angola], que foi o primeiro movimento a pegar em armas e lutar contra o colonizador.
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K - Muito nos impressionou, na primeira vez que estivemos aqui, quando nos contou como eram recrutados os trabalhadores na África, e sua denúncia em relação a isso. Queria que nos contasse de novo essa experiência.
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VST - O primeiro contato que tive com esses tais contratados foi no Porto do Bolito. O navio tinha acabado de atracar, eu ainda estava na amurada, com a pessoa que conheci na viagem - um engenheiro belga que trabalhava nas minas do Catanga, e que regressava ao trabalho. Perto da amurada, no cais, ficavam o capataz, uns sipaios, ou seja, polícias, e um conjunto de 30, 40 estivadores. Esses estivadores vinham presos com cordas nos pulsos e nos tornozelos, presos uns aos outros, numa longa fila. Perguntei ao conhecido o que era aquilo e ele me respondeu que eram os contratados. Eu aqui, no liceu, nos livros de história, aprendera que Portugal havia abolido a escravatura, donde o meu espanto. Mais tarde vim a saber como era o processo. Conheci um indivíduo sinistro, um contratador, digamos assim, conhecido naquelas bandas pela alcunha de "Leão da Anhara", um tipo de leão que ataca, mesmo saciado. Ele pegava uns sipaios e, com uma ou duas caminhonetes, partia para o interior, levando barris com uma mistela de vinho, uma mistura com aguardente para embebedar aquela gente toda. Levava também uns cobertores chamados cambriquitos (as noites são muito frias no interior). Quando chegava na aldeia, distribuía vinho e cobertores. Horas depois estavam todos bêbados. Então ele e os sipaios pegavam os espécimes fisicamente mais fortes e os enfiavam nas caminhonetes. Quando os homens acordavam, estavam a centenas de quilômetros de distância de sua aldeia. Eram então levados aos postos administrativos do Estado onde os brancos fazendeiros, que precisavam de mão-de-obra, os compravam, pagando ao Estado um tanto por cabeça (o contratador recebia uma comissão). Uma determinada porcentagem de prisioneiros logo fugia (os que fossem apanhados eram abatidos a carabina). Suponhamos que o contrato fosse por um ano. Eles iam parar numa fazenda, em que havia somente uma cantina onde se abastecer. Sem noção do que era preço, do que era moeda, os contratados ficavam sempre a dever à cantina, que pertencia ao proprietário. Com isso, tinham que prolongar o tempo de contrato. Se por lei o contrato era de um ano, muitos ficavam por seis, sete, dez anos. Decorrido o tempo do contrato, o Estado comprometia-se a devolver a suas terras os indígenas que sobrevivessem.
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K - Poderia falar novamente do artigo que você fez para O Intransigente denunciando as contratações e o que se seguiu, as pessoas que vieram tirá-lo do jornal?
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VST - Sim, essa é uma cena de western. Não foi a única que tive. Esse episódio que eu contei cruza-se com outro. Não foi apenas eu denunciar uma determinada empresa, fazendeiros, a existência dos contratados. Isso estava consignado em todo o território. Suponho que também nas outras colônias. Já tinha começado a guerra lá no norte. Já os civis tinham partido para aqui e acolá para as tais incursões noturnas de vigilância. Eles atiravam sobre tudo o que se mexia, criando-se assim entre os brancos a idéia de que todo preto era um inimigo para abater. Chegou então ao meu conhecimento a informação de que, numa determinada fazenda, os fazendeiros tinham enfiado meia-dúzia de contratados - supostamente aliados dos terroristas -, em sacos com pedras e que os tinham atirado ao rio, onde eram estraçalhados por crocodilos. E é isso exatamente que eu denunciei, cruzando a questão dos contratados com essa violência suplementar (que, no meu entendimento, caracterizava genocídio).
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K - Ninguém censurou o artigo?
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VST - Num determinado período, a censura local ficou sem instruções de Lisboa, pois a guerra havia perturbado os serviços de vigilância na colônia. Aproveitei esse período de desatenção da censura para denunciar a política de contratação e o assassinato dos negros no jornal. Os contratadores também não fizeram por menos: armados, um pai e seus dois filhos, com chapéus sertanejos, foram me prender no jornal, enfiaram-me dentro de um carro, e me levaram aos arredores da cidade, para uma zona mais plana que servia de pista de aterrissagem de aviões de pequeno porte. Por essas alturas, minha ação como jornalista já era conhecida (e em parte apreciada) por algumas pessoas (não muitas) opositoras do regime de guerra. Eram meus protetores, digamos assim. Durante todo esse tempo, nunca usei, nunca trouxe comigo sequer um canivete, nada - eu só tinha a minha caneta. No sítio onde eu morava minha porta vivia aberta e a janela também. Numa pequena cidade onde tudo se sabe logo, assim que meus protetores souberam do que se passou no jornal, imediatamente tomaram providências. Assim é que, quando me meteram para o meio do terreno e me disseram que iam me abater, eu lhes disse: "Sim, sim, que atirem, faz favor, não vou oferecer resistência (e nem podia), me matem, e depois talvez tenham cinco segundos de vida. Olhem". E então olharam. Naqueles morros circundantes dessa pequena pista havia uma dúzia de carabinas de alta precisão direcionadas às cabecinhas deles. "De vocês, não vai sobrar nenhuma falangeta". E assim não morri.
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K - A sua editora surgiu depois do 25 de Abril?
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VST - Não, o primeiro livro, Coisas, é publicado antes de 25 de abril, em março.
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K - Por falar em ditadura, conte-nos da sua peripécia com a ditadura militar brasileira no envio de livros...
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VST - Uma distribuidora brasileira cujo nome já não lembro encomendou uma quantidade razoável do teatro do Picasso. Por quantidade razoável estou a me referir a uns 100, 150 livros, o que para o &etc era uma coisa enorme. A exportação foi um problema. Para além de todas as dificuldades burocráticas, retidos nos correios, na alfândega, os livros foram por fim enfiados em sacos de lona fornecidos pelos próprios correios, conduzidos a uma seção especial de onde seguiram para o Rio de Janeiro. Muitos meses depois, recebo um aviso dos correios para retirar uma encomenda no mesmo sítio de onde haviam partido os livros. Quando fui ver, esses mesmos sacos vinham com carimbos semelhantes aos da censura de cá, com dizeres de "proibido" e coisas assim. Ao abri-los encontro 30 ou 40 livros totalmente rasgados, estragados. Era um monte de papel estragado devolvido pelas autoridades policiais militares brasileiras que tinham, portanto, apanhado os embrulhos na alfândega. Tinham visto na papelada que eram do Picasso - há gente culta, claro, o militar brasileiro é normalmente uma pessoa bastante culta [risos]. Picasso, portanto, comunista. Na verdade, não podiam permitir que um comunista entrasse no Brasil. Ainda que fosse o teatro de Picasso, claro.
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K - Ainda tenho uma pergunta, relacionada ao problema da censura. O senhor disse que, quando publicou o artigo denunciando as pessoas atiradas aos crocodilos, a censura portuguesa estava meio bagunçada. Mas como era nos períodos em que ela funcionava? O senhor submetia seus textos ao censor? O censor ficava no jornal? Havia censura local ou tudo passava por aqui?
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VST - Não, a censura lá era autônoma, como a de cá. O edifício da censura era assim: a cúpula ficava em Lisboa e dependia diretamente da presidência do conselho. Em última análise, dependia diretamente do Salazar. Depois havia delegações espalhadas por todas as cidades do país, pois havia jornais regionais, espetáculos, coisas assim. Os casos mais bicudos, que as censuras locais não sabiam como resolver, eram encaminhados à sede em Lisboa. Nos jornais, a gente escrevia um artigo, o tipógrafo compunha e tiravam-se várias cópias, duas das quais iam logo para o Serviço de Censura. Uma cópia seguia para o responsável pela paginação e outra para os revisores. Por lei, era obrigatório enviar também, além do texto, quaisquer elementos gráficos que acompanhassem o artigo. No entanto, no &etc eu nunca mandei elementos gráficos, mas tão-somente os textos - sabendo que depois poderia sofrer sanções por isso. Posso lhes mostrar o que guardei da revista... não tenho jeito nenhum para organizar, mas... José Cardoso Pires, aqui, autorizado parcialmente.
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"A burguesia intelectual é muito cosmopolita, muito cosmopolita, muito revolucionária, muito revolucionária, mas alimenta uma nostalgia tramada pela pax juris e servida com boas maneiras." [trecho censurado]
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K - E acontecia de vocês conhecerem os censores?
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VST - Não. Quando estive a dirigir o suplemento cultural do Diário de Lisboa, tinha acesso direto ao próprio diretor da Censura. Mas só a ele, não aos censores propriamente ditos. No entanto, houve uma exceção. A história é engraçada e tem a ver ainda com o &etc do Fundão. Ele tinha estado suspenso pela censura durante seis meses. Foi durante esses seis meses que eu, o escritor José Cardoso Pires, e o diretor do jornal, António Pauloro, nos reunimos para ver como é que era possível, quando o jornal retomasse a sua atividade, manter uma folha ou uma parte cultural, pois o jornal tinha estado fechado por causa de uma folha cultural. Para contornar as dificuldades que desde logo se anteviam, decidimos transformar o suplemento em magazine e chamá-lo de &etc, nome que não identificava nenhuma ação cultural determinada. A tática foi esta: "Nós não vamos entrar de leão, vamos entrar devagarinho". Tivemos então que escolher nomes para a primeira página. Para o primeiro número, escolhemos um velho professor universitário de grande prestígio intelectual em Portugal, o Ernani Cidade. Ele já tinha nessa altura quase 80 anos, senão mais. Fui falar com ele, que aderiu à idéia e ficou todo comovido. Quem mais? Havia também um poeta que vim a publicar na Ulisseia: José Blanquis de Portugal. Era um poeta raro, erudito, e que ocupava o cargo de subdiretor dos serviços meteorológicos nacionais. Também era musicólogo - fazia palestras na emissora nacional sobre concertos, música clássica etc. Homem de grande cultura, com espírito e humor muito fino, muito matemático e também já com alguma idade. Fui falar com ele, que também aderiu à idéia. Deu-me um artigo adaptado de uma crônica que ele já lera aos microfones da emissora nacional. Os serviços de censura, bem como a emissora nacional, estavam subordinados à Presidência do Conselho. Mandei compor o artigo do Blanquis de Portugal e enviei-o à censura, que o devolveu completamente retalhado. Corri então para o diretor da censura, a quem disse: "O senhor sabe quem é este senhor? É o diretor dos serviços meteorológicos nacionais e colaborador da emissora nacional que, como o senhor sabe, depende diretamente do Dr. Oliveira Salazar. Ou esses cortes são levantados ou apresentarei imediatamente meus protestos ao Dr. Paulo Rodrigues!" Paulo Rodrigues era o secretário do Dr. Salazar para os efeitos de censura. Como quem tem cu tem medo, o homem ficou passado. Abriu exceção e mandou chamar o censor, com quem me sentei numa salinha. O censor era um velhote, tenente-coronel reformado, grande parte dos censores eram oficiais já reformados. "Qual foi o seu critério, por que é que cortou isto?" O homem não tinha resposta. "O corte é absolutamente arbitrário! Como é que o senhor vai cortar aqui, artigo para a emissora nacional?" Ele então foi levantando os cortes, deixando apenas uns quatro ou cinco, para defender a honra do convento. E é aí que entra a questão dos elementos gráficos. Arranjei uma gravurinha do século XIX - uma mãozinha com uma tesoura - que reduzi e apliquei na primeira página, quatro ou cinco vezes nos lugares onde tinha havido cortes. Aprendemos com a censura a ler os sinais gráficos. Tudo poderia constituir mensagem, subliminar, escondida. Era um jogo de gato e rato.
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K - E depois desse primeiro número, em que havia o artigo do Ernani Cidade e do Blanquis de Portugal, o que continham os números seguintes?
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VST - Depois os números foram se radicalizando, mas apenas quanto ao aspecto ideológico da intervenção. Nunca quis fazer nenhum boletim político, nunca estive ligado sequer ao partido comunista, logo, não tinha de estar a serviço desta ou daquela formação política. No contexto da cultura portuguesa, o magazine foi se radicalizando pela posição totalmente anti-ortodoxa, pelo lado polêmico (nomeadamente contra os medíocres escritores neo-realistas), bafejado com os oxigênios (algo anárquicos, mas muito vivos) que vinham dos maios de 68. Ele foi se tornando muito mais solto de linguagem, com um tipo de humor cáustico, tomando posições que os franceses já chamariam de contracultura. Eu, mais modestamente, utilizando tão-somente a língua portuguesa, dizia que estávamos a "mijar fora do pinico". Isso se repetiu posteriormente na revista já autônoma, que também se caracterizou pelo uso de uma linguagem desenvolta, aberta, não raro contundente; por não reconhecer ídolos intocáveis e, ainda durante a ditadura, por repudiar a autocensura. "Os filhos da puta que cortem" - nós dizíamos - "...e, mesmo assim, vamos protestar". Criamos muitas inimizades, mas também, sobretudo com gente mais nova, conquistamos muitas adesões. Uma parte desse espírito está no conjunto dos livros publicados pela editora. Quando noutras entrevistas me perguntam: "Que linhas segue o &etc do ponto de vista conteudístico?" - tenho grande dificuldade em responder. O mais fácil é apresentar o catálogo e pedir que tirem as próprias conclusões. As linhas de força estão patentes no catálogo. Não é uma, serão várias. Então qual é o denominador comum? O modo de produção. Esse é exatamente o mesmo hoje, como quando nasceu. E é esse modo de produção que é político. Porque é fácil fazer catilinárias contra a exploração capitalista, contra a globalização das multinacionais. Eu, em qualquer café, posso estar a falar três horas sobre isso e entretanto, na minha vidinha, no meu comportamento, cá estou eu. Não é verdade? Ora, aqui temos outro modo de produção - aí está a resposta, a resistência, a resistência política. Aí também se notam certas coisas. O Lafargue que eu publiquei não foi apenas o da Religião do Capital. No ano em que se comemorou o grande centenário do Victor Hugo, publiquei um livro do Lafargue que arrasa com o Hugo...
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K - A Lenda do Victor Hugo...
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VST - ... a que eu pus o título O Anti-Hugo. A gente lê esse livrinho do Lafargue e desaparece o Victor Hugo como pai da humanidade.
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K - Ainda sobre essa questão, o senhor publicou agora a Djuna Barnes [O Livro das Mulheres Repulsivas], que foi uma lutadora pelos direitos da mulher no século XX...
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VST - ... herdeira das feministas americanas. E também dos movimentos gay, lésbico etc. Aliás, nesse aspecto, o &etc também tem uma componente muito forte. Basta ver que até a organização das lésbicas em Portugal tem contatos conosco. Temos no nosso catálogo uma, duas, três, quatro, cinco, seis lésbicas, grandes autoras. Assumidamente lésbicas, grandes minhas amigas. Essa é uma das tais linhas do &etc. Também aqui começamos a publicar a literatura homossexual (ou de homossexuais), numa altura em que ainda de certo modo isso era tabu.

Temos cá também, desde o arranque, o Livro Branco do Jean Cocteau (e com todos os desenhinhos, pois). É evidente que isso chocou o meio livreiro. Há pouco tempo, um crítico, a propósito da Adília Lopes, fez uma crônica no jornal em que, a certa altura, dá conselhos a ela, exortando-a a se afastar de uma família devassa da qual fazem parte João César Monteiro, do cinema, Luiz Pacheco, Vitor Silva Tavares, o Manuel João, do Ena Pá 2000, uma família devassa. O que haveria na cabeça - ou nos cornos - desse publicista?
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K - E por falar na resistência a certos livros, Alberto Pimenta, um dos poetas editados pela casa, contou-me da resistência ao Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta, livro que tinha comprometimento político explícito, contrário ao massacre dos iraquianos...
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VST - É um livro maldito. A maior parte dos livreiros não o quis devido ao tema, embora não se trate de uma poesia panfletária. Não há no livro nenhuma retórica demagógica sobre a questão do Iraque. Trata-se de um tema terrível tratado por um poeta de maneira poética. Aquela paca imperialista não está apenas a cometer o genocídio, está a esmagar uma cultura que fazia parte do patrimônio da humanidade. Isto deve ter sido percebido pelas centrais de compras de algumas organizações livreiras. Tenho indicação direta disto e a transmiti ao Alberto Pimenta. Houve, sim senhor, boicote a esse livro. Mas esse é um dos papéis de intervenção de uma editora cultural através da poesia. Pimenta é um autor incômodo (sempre foi), um outsider, alguém fora da redoma dos poetas que se lêem todos uns aos outros, espreitam todos os umbigos uns dos outros. Pimenta está fora dessa campânula, e portanto está muito bem, acho eu. A amizade e a irmandade que nos une não assenta apenas no fato de termos idéias mais ou menos paralelas sobre a literatura e o papel da poesia, não, estende-se, abre-se ao mundo e entre a poesia e a nossa vida há uma interpenetração. Sem o público o que seria a poesia? Seria uma das belas artes, um tricô literário, se quisermos. Há gente que tem muito jeito para tricô literário, há muitos dotados. E a isso chamam poesia. Entendo muito mais a poesia como expressão de uma vivência, essa sim, muito rica e profunda de implicações, e que depois pode ter ou não ter expressão literária. Pedro Oom, um dos próceres do surrealismo português, começa um poema dizendo: "Posso escrever. Posso não escrever". Há centenas, talvez milhares de, chamemos poetas, que escrevem, digamos, poesia, são conhecidos como poetas, publicam livros de poesia, são entrevistados como poetas, fazem viagens pelo mundo para lerem suas poesias. Eu a esses não chamo poetas. Em compensação, eu e o Alberto conhecemos muita gente, poetas de verdade, que não fazem nada disso, porque "pode não se escrever". Quando já para o fim, uma vez entrevistaram o Mário Cesariny e perguntaram-lhe: "Senhor Mário Cesariny, o senhor ainda escreve?" Ele disse: "Não, não, claro que não, a musa pôs-me os cornos, traiu-me como uma puta. Foi juntar-se a outros e a mim pôs-me os cornos." [risos].
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K - E quanto aos autores mais jovens, como Manuel de Freitas?
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VST - Ainda houve autores mais jovens do que ele aqui no &etc. Uma indicação de que a editora não se fossilizou, não se academizou, é a afluência de originais de meninos e meninas que ainda não têm 20 anos. Mas não temos aqui quotas geracionais - tanto publico um rapazinho que tem agora 22 anos como o Pimenta, que vai fazer 70 (eu já fiz). Publiquei até o Diário Íntimo, do Luís Amaro, em homenagem a um homem de 83 anos que levou toda a sua vida ao serviço dos poetas.

Tendo sido ele funcionário da editora Portugália, e depois, muitos e muitos anos, Secretário de redação da Colóquio/Letras, dedicou sua vida à poesia dos outros. Tão parco, tão pudico foi com sua própria obra, que subalternizou sempre o próprio trabalho, dedicando cuidado, atenção, carinho, ajuda a gerações de poetas em Portugal. Então o &etc publicou, no ano passado, a obra poética do velho Luís Amaro, independentemente de se poder dizer que é uma poesia que já não se faz. Mas o que é isso? Escolas literárias? Ah, são como as ondas. Vem uma, depois vai abaixo e aparece outra, volta atrás, avança...
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K - Foi com esse espírito que o senhor publicou a Eufonia, do Berlioz?
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VST - Sim, senhor. Essa é outra das linhas do &etc: procurar pequenas preciosidades ou curiosidades literárias de autores que se notabilizaram por outras vertentes da criação artística. É o caso do Berlioz, conhecido como compositor romântico. Foi para mim uma grata surpresa poder publicar uma obra de ficção, ainda por cima futurista, do senhor Berlioz. A mesma coisa com Douanier Rousseau. O senhor Douanier Rousseau, o pintor, também tinha pecinhas de teatro. Publiquei então essa coisa deliciosa que se chama A Vingança de Uma Órfã Russa. E o lemos com um sorriso giocôndico, o mesmo com que vemos a sua pintura. Do mesmo modo o Picasso, que também escreveu teatro, e até poesia. Ou então são obras que os próprios autores, digamos assim, atiraram para uma espécie de gueto. Assim é que, de autores portugueses como João de Deus, publicamos, na contramarcha, um livro chamado Criptinas. Ora, João de Deus foi um herói da grande poesia lírica portuguesa. Ele compôs um livro de iniciação à leitura, para a escola primária, uma cartilha chamada Cartilha Maternal. Foi enterrado com pompa nacional. Grande poeta lírico, amigo das crianças e tal. Esse livro Criptinas é um livro de poesias eróticas... e quão eróticas, quem havia de dizer... A mesma coisa com o Guerra Junqueiro, o poeta da República, da pátria, dos símbolos, o Victor Hugo português, que também deixou um livro de poesias eróticas publicado por nós - A Porra do Luz Soriano.
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K - Gostaria de aproveitar a sua menção à presença de peças de teatro no catálogo para que o senhor nos contasse um pouco da sua relação com o teatro.
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VST - Havia comprado uma edição francesa de A Formação do Ator, do Constantin Stanislavski... Pelo cinema já sabia muito bem o que era o Actors Studio - o senhor Strasberg e o senhor Kazan foram adaptar o método Stanislavski ao modo americano, somando-lhe Freud. Essas coisas eu já ia sabendo, e tive uma paixão assolapada por aquele faz-de-conta, que cresceu muito quando a Casa da comédia decidiu montar uma peça do Almada [Negreiros], Deseja-se Mulher, escrita há mais de 50 anos e jamais representada. Uma peça que ele, Almada, havia lido pela primeira vez num café de Paris, para ninguém mais ninguém menos que o senhor Federico García Lorca. E vim a trabalhar intimamente, diariamente, com o doutor Amado e com Almada para fazer esta peça. Foi um momento muito alto da vida do Almada. Ao cabo de cinqüenta anos, ele via finalmente sua peça em cena. A maneira de o Almada se comunicar fazia com que muita gente o temesse - aqueles olhos enormes, aquele carão, a maneira tão recortada de dizer as coisas faziam com que ele parecesse um monstro. Não era. Era um menino. Em conversa comigo, certa vez falou-me (acho que deixou isso escrito em algum lugar) que um dia, quando ele era pequeno, o pai perguntou-lhe: "Filho, o que é que tu queres ser quando fores crescido?". Ele respondeu: "Quero ser pintor". E o pai: "Pintor é vagabundo". Ele: "Então, se não posso ser pintor, quero ser menino". [risos] Vou contar-lhes um pequeno episódio. Uma vez fui à casa dele. Ele fumava uns cigarros muito ordinários chamados Definitivos, que vinham na seqüência de uma outra marca, chamada Provisórios. Nessa altura ele fumava Definitivos, que nem tinham filtro. Ele então pega o maço, tira o cigarrinho e diz: "Vou te contar a história da minha vida. É muito simples: eu antes fumava Provisórios, agora fumo Definitivos. Quer dizer, já cumpri o serviço militar". [risos] Vai daí, puxa da caixa de fósforos para acender o cigarro. Mas a caixa estava vazia. Dei-lhe então a minha. Ele a abriu, acendeu o cigarro, e quando ia ma devolver, eu disse: "Mestre, fique com ela". O homem ficou comovido até as lágrimas. Porque eu lhe tinha oferecido uma caixa de fósforos. Não era o valor das coisas, mas o gesto. Uma oferta é uma oferta, uma generosidade é uma generosidade; não se quantifica. Era como se lhe tivesse dado uma salva de prata ou qualquer coisa assim. Ficou comovidíssimo.
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K - Como foi o seu primeiro contato com a literatura brasileira?
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VST - O primeiro poeta brasileiro por quem tive uma grande paixão na altura dos meus 15 anos foi Catulo da Paixão Cearense. Pouco ou nada sabia da literatura brasileira, mas tive uma namorada que trabalhava na Livraria Barateira, onde havia de tudo e mais alguma coisa. Um dia apanhei ali um livrinho e achei curioso o nome do autor: Catulo da Paixão Cearense. Nessa altura eu já gostava do Luís Gonzaga, que tocava no rádio coisas como "Vem cá, cintura fina/ Cintura de pilão / Cintura de menina/ Vem cá, meu coração". Creio que por causa de canções desse tipo me aproximaram da métrica do Catulo. Por causa do Catulo, fui depois comprar um livro pequenino, edição brasileira também, do Manuel Bandeira. Só mais tarde é que tive mais informação dos escritores, de pintores como Cândido Portinari (que teve uma influência extraordinária no arranque do neo-realismo português). Conheci depois Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto... Lembro de uma montagem no Teatro Tivoli de Morte e Vida Severina, do João Cabral, com estudantes de uma Universidade brasileira. Com eles estava o Chico Buarque de Holanda. Houve problemas com a censura e com a PIDE por causa dessa apresentação. Isso alertou muita gente para a obra de João Cabral de Melo Neto. Inclusive no Jornal do Fundão, que tinha muita saída entre os imigrantes portugueses no Brasil. Era uma ponte cultural com o Brasil. Tanto assim que, quando o Presidente Juscelino Kubitscheck veio a Portugal, foi convidado pelo António Pauloro a visitar o Fundão. De outra vez o convidado foi João Cabral de Melo Neto, que tive a ocasião de conhecer. Nessa altura, anos 1960, eu editava o Suplemento &etc do Jornal do Fundão. Já tinha passado para o Diário de Lisboa, trabalhando no caderno de cultura, quando o José Cardoso Pires me disse que, na direção do Instituto Alemão, estava um homem muito culto chamado Curt Meyer-Clason, que havia passado muitos anos no Brasil. A ele se devia a divulgação internacional de um tal de Guimarães Rosa. Ora bem: tinha eu também comprado, por mero acaso, um livrinho chamado Primeiras Estórias, a primeira edição brasileira. Descobri então um grande autor da língua portuguesa, brasileiro, brasileiríssimo, mas também, em termos de linguagem, apesar das audácias estilísticas, um português vicentino puríssimo. Que encanto foi reencontrar a língua portuguesa através, finalmente, de um autor brasileiro e regional, digamos assim. Só depois é que veio o Grande Sertão: Veredas. Mas comecei por esse Primeiras Estórias e fiz publicar no magazine &etc um conto pequenino chamado "Famigerado". Mas, voltando ao Meyer-Clason, o José Cardoso Pires marcou um encontro e fui falar com ele. Além de amigo íntimo do Guimarães Rosa (e seu biógrafo) Curt era, sobretudo, seu tradutor. Por esses acasos do destino, estava finalmente a falar com o homem que, na Europa culta, mais contribuiu para que Guimarães Rosa fosse conhecido. Esse Curt Meyer-Clason acabou por ser muito maltratado não pela intelligentsia local, mas pelo próprio governo alemão, em conivência com certas autoridades portuguesas. Na verdade, ele imprimiu ao Instituto Alemão uma dinâmica cultural (e sociológica, e política), que fez com que as autoridades alemãs e portuguesas acabassem por lhe puxar o tapete, insinuando que o homem estivera ligado na juventude ao Partido Nacional-Socialista alemão. Há muitas maneiras de assassinar um homem, e esta é das mais cruéis, das mais insidiosas. Ele nos deu a conhecer Brecht, Kurt Weil e coisas assim, o que não combina muito com o nacional-socialismo, não é?
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K - No livro Metamorfoses do Vídeo, de Alberto Pimenta, há um poema que se refere a batidas na porta: em determinada hora, é a leitaria, em outra, são pedintes, e em certo horário, pode ser a polícia, que tem uma outra forma de bater. E se refere à apreensão do livro O Bispo de Beja, publicado pelo &etc em 1980. Achávamos que em 1980 o fascismo já havia acabado...
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VST - Que eu saiba, foi um caso único no Portugal pós 1974. Foi assim: eu tinha publicado umas obrazinhas subterrâneas, soterradas nas bibliotecas, no pó do olvido, entre as quais havia um velho opúsculo que serviu para a propaganda republicana. Era um poema satírico que tratava literariamente de um caso escandaloso, que envolvia um tal de Bispo de Beja, acusado de homossexualismo. Parece que a população de Beja tinha-se rebelado contra o Bispo, que teve de fugir para a Espanha. A Igreja Católica estava entrosada com o regime, que os republicanos queriam mudar. Esse escândalo, portanto, forneceu material para uma sátira anticlerical, que punha também em causa a própria monarquia. Ao apresentar o livro, cheguei a dizer que, neste aspecto da temática sexual, se tratava de um livro reacionário. A visão do autor sobre o homossexualismo era reacionária. Tomamos essa precaução de apresentar o livro como mais um modelo da poesia satírica, mas vendo desde logo que os objetivos eram propagandísticos. Ora bem: estava eu aqui sentadinho e, de repente, vi entrar por aquela porta nada menos do que cinco pessoas: quatro cavalheiros e uma senhora. Aproximaram-se, perguntaram onde é que estava o livro O Bispo de Beja. "O que é que se passa?" "Somos da polícia judiciária e temos um mandado de busca e apreensão desse livro". Vocês podem ter idéia da minha estupefação. Para o meu bem e para o meu mal, já tinha tido longa experiência do que eram as apreensões de livros pela PIDE. Na Ulisseia, foram dezenas de títulos apreendidos. Mas daí a acreditar que, já no Portugal pós-abril, pudesse acontecer coisa do gênero era de se espantar. Então, por causa da minha experiência anterior, a primeira coisa que fiz foi pôr-me de pé (os polícias estavam de pé e não queria vê-los de baixo para cima). Sentei-me em cima da secretária e disse: "Tratem de se identificar. Quem é que me diz que são da polícia judiciária? Pode ser um bando de gangsters que vêm roubar livros". Identificaram-se. Prossegui: "Agora, o mandado de apreensão. Quem é que o expediu?" Os senhores apresentam-me um documento do Ministério Público. Li-o atentamente, para ganhar tempo, e lhes disse: "Vocês não têm vergonha? Estão a imitar os vossos colegas da PIDE". Então o chefe protestou: "Alto lá! Isso é ofensivo. Nós não somos da PIDE." "Mas estão a agir como se fossem", retruquei. Não podia aceitar aquilo de modo algum. Se nos anos anteriores ao 25 de abril enfrentei a PIDE, como é que agora, em situação de liberdade, ia aceitar uma coisa dessas? Estava a passar isso, estavam ali, sentados naqueles degrauzinhos, o Herberto Helder e o Paulo da Costa Domingos, que nessa altura trabalhava comigo. Lancei um olhar ao Paulo da Costa Domingos que, rapazinho, tinha me acompanhado várias vezes à censura. Eu tinha alguns pacotes, que estavam ali atrás, onde eu havia um divã. O Paulo logo apreendeu o sentido do meu olhar e empurrou com o pé os pacotes para baixo do divã. Perguntei então: "E se eu não entregar os livros?". Ao que respondeu o inspetor: "Escaqueiro-lhe esta merda toda". Sim, senhor. Quem falava assim não podia ser gago. Telefonei para o Diário Popular. Estava lá um prosador, escritor e grande jornalista, ainda vivo, Batista Bastos. Disse-lhe: "Oh, Batista, tenho aqui na minha frente cinco agentes da polícia judiciária, decididos a apreender um livro que eu publiquei, O Bispo de Beja". O outro começou aos gritos a zoar, não queria acreditar: "Como pode ser?". "Exatamente como nos tempos da PIDE", respondi. "Vou já tratar disso." E desliga o telefone. Volto-me para os policiais: "Um momentinho, vou lhes dar os livros". Mas antes liguei também para o Diário de Lisboa, onde eu havia trabalhado. O chefe de redação, Acássio Barradas, era meu amigo. Repeti-lhe o que eu dissera ao Batista Bastos. A essa altura, os gajos da polícia, que tinham entrado de leão, já estavam mais conciliadores e dialogantes. Perguntei-lhes então de onde partira a denúncia. E me disseram que não sabiam ao certo, mas supunham que de Beja. "Já basta!", disse-lhes eu, "Vou lhes entregar os livros. Mas podem ter a certeza de que não ficarei por aqui. Entendo essa apreensão como um assalto, um roubo. Vou requerer os livros de volta, nas mesmas condições em que os levam". No dia seguinte a imprensa deu grande destaque ao assalto à pequena editora &etc. Ainda estava fresca a memória da censura. Apareceu aqui uma equipe da televisão a quem eu disse ter ouvido um boato de que a denúncia que gerou a apreensão teria partido da cidade de Beja. No dia seguinte, no telejornal não saiu nada, o que eu creditei a alguma espécie de censura interna. Em auto-entrevista para o Diário de Lisboa, atribuí o ocorrido ao momento político que atravessávamos: em 1980 tínhamos um governo de coligação da direita chamado AD, Aliança Democrática, que se apresentava como uma democracia musculada. Como sabem, tenho pouco músculo e não gosto muito de democracias musculadas. Passaram-se quatro ou cinco dias, e me ligaram da emissora de televisão para a qual dera a entrevista. O chefe da equipe que me entrevistara tinha ido a Beja, onde filmaram as declarações do denunciante, que terminaram por localizar: um padre. Concederam-me direito de resposta. Enfiei-me num táxi para os estúdios da televisão e lá fui ver a entrevista com o padre, a dizer que estava perfeitamente bem com a sua própria consciência e que voltaria a fazer as mesmas coisas. Eles ainda pretendiam lançar essa peça filmada no telejornal, com a minha resposta ao vivo. Mas ordens superiores vetaram a transmissão ao vivo. Filmaram a minha resposta ao padre, que me valeu um processo por abuso de liberdade de imprensa. Fui chamado várias vezes à Polícia Judiciária. A certa altura, comecei a exasperar-me com as perguntas. O delegado do Ministério Público nunca estava satisfeito. A Polícia Judiciária mandava o relatório dos interrogatórios, que foram ajuntados ao processo, o qual foi encaminhado a uma determinada vara do Tribunal da Boa Hora, aonde fui examiná-lo. Ao solicitar os autos para consulta, descobri que o processo havia se extraviado. Então ameacei os funcionários do tribunal aos berros: "Ou o processo aparece dentro de 24 horas ou vou outra vez para a televisão. Que mistério é esse no Portugal democrático onde processos que nem sequer foram julgados desaparecem dentro do próprio tribunal?". Vinte e quatro horas depois, milagrosamente, o processo reaparecera. Li-o. O padre, que havia visto o opúsculo numa livraria qualquer de Beja, foi à polícia prestar queixa. A polícia aconselhou-o então a falar com o Bispo, que o aconselhou a mandar as coisas para Conferência Episcopal de Lisboa. A Conferência Episcopal, por seu turno, manda o caso para o Cardeal patriarca, que também não sabe o que fazer. Nenhuma dessas entidades, portanto, aparecia como acusadora. Mas a polícia de Beja pega no livrinho e manda para o comando de Lisboa, que o encaminha ao Ministério Público. O Ministério Público, que tinha ali um jovem delegado, em princípio de carreira, vê no caso uma grave ofensa à Igreja Católica e ao homossexualismo, e resolve levar o processo a termo. Mas não havia acusação formada tecnicamente, pois as entidades supostamente ofendidas haviam tirado as mãos para não ser escaldadas. Certa manhã, fui informado pelo meu advogado de que, estando a decorrer audiência de julgamento no Tribunal da Boa Hora (sediado num velho convento), decidiram regar os tais livrinhos com gasolina e atear fogo a eles, produzindo uma fumarada negra que fez muita gente tossir das salas da audiência.
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K - Queimaram os livros em pleno tribunal?
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VST - Sim. Como foi caso único, desde o 25 de Abril até agora, essa é uma das medalhas desta pequena editora. Parece impossível que coisas assim aconteçam por aqui. Uma editora sem grande expressão, sem grande nome, nada disso. O &etc nunca fez reedição nenhuma. Exceto essa. Estava ainda a correr o processo contra mim por abuso de liberdade quando decidi reeditar o livro. O primeiro nem tinha nenhuma alusão ao caso passado em Beja. No entanto, para essa segunda edição, resolvi utilizar na capa a caricatura de um renomado caricaturista português, se não me engano Francisco Valença, que mostrava o dito Bispo caracterizado como Madame Pompadour, com meias de senhora e rendinhas, empoando-se diante de um espelho. Era uma caricatura que datava de 1910, início da ditadura. Usei-a na capa alegando que já havia sido usada em jornais no início da República. Além disso, acrescentei, à guisa de apresentação, a história do delegado do Ministério Público e as posições tomadas pelos jornais. Um editor solidário veio me propor uma co-edição de cinco mil exemplares, o que recusei imediatamente (não queria explorar comercialmente um escândalo desses). Tratava-se de um caso político. A reedição é uma reincidência, um desafio às autoridades. Nessa altura ainda havia jornalistas nos jornais, e a maioria dos quais tinha sentido na pele a censura. Se fosse agora, desconfio que não contaria com a solidariedade da classe, pois os jornalistas já foram metidos na prateleira, amordaçados, ou atirados para outro emprego.
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Fabio Weintraub é poeta e editor, autor de Novo Endereço (Nankin) e Baque (Editora 34).
Pádua Fernandes é professor universitário, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Como autor, publicou o livro de poemas O Palco e o Mundo (Lisboa: &etc., 2002) e organizou a antologia poética de Alberto Pimenta, A Encomenda do Silêncio (São Paulo, Odradek, 2004).