29.4.08

Álvaro Lapa por Jorge Silva Melo

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Álvaro Lapa: Morte sem Sombra
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Ia a entrar no carro estacionado numa esquecida pracinha de Viseu quando tocou o telemóvel e chegou-me a notícia triste, esperada há uns meses, adiada agora: morreu o Álvaro Lapa.
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Ainda há menos de um mês estivera com ele, passara três tardes a falar, a ouvi-lo, num intervalo de bem-estar e calma daqueles que as doenças graves conferem aos homens, a falar da vida toda, da Évora dos inícios, da descoberta do mundo e da parte maldita do mundo por entre corredores de liceu, pátios, aulas, vadiagem, amigos, alguns professores admirados e rejeitados. Ainda há menos de um mês nos despedimos com um abraço e um sorriso, ainda há dias lhe enviei pelo correio o último livro do Manuel Gusmão, que ele conheceu em pequeno, garoto mesmo, pelas casa de Évora.
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Regressamos de Viseu, de um dia passado em reuniões com artistas, depois de uma estreia, dia calmo que parecia ser o primeiro da Primavera, tarde inteira ao ar livre depois de libertar o quarto do hotel, um almoço daqueles como só na Beira, enchidos, requeijão, doce de abóbora, uma província que mudou definitivamente, onde se sucedem lojas de marca, onde até há galerias de arte (a expor Pedro Portugal), companhias de dança e aquela livraria calorosa ao alto da praça onde passámos o fim de tarde, quando a noite caía e eu a ler Pasolini: rapazes e raparigas dinâmicos, com amor aos livros, à iniciativa, à actividade, um sorriso nos lábios, um orgulho, e gente a falar-me de cineclubes, acções, debates, controvérsias, ansiedade.
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É na livraria da Praça, bonita, calma, com uma pequena varanda nas traseiras, dois espaços, gente a entrar e a sair, que diferentes estão as cidades do interior deste país, diz que foi das estradas e das circulações, das universidades, é aqui que sentimos que o mundo se alterou, e se mantém um desejo, uma ansia, uma intensidade. Falo dez minutos com o rapaz do Cineclube, oiço-lhe os desafios, as informações, o desejo: tanto mundo à sua espera! E é com uma surpresa suave que regresso a Lisboa sempre que passo dois ou três dias fora, nestes teatros refeitos, com a exemplar equipa do Teatro Viriato onde esta temporada já fomos duas vezes, bem tratados, humanamente.
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Mas hoje, ao entrar no carro, veio esta sombra da morte poisar sobre a noite negra. E venho pela auto-estrada a lembrar-me dos encontros que não tive, das conversas que não houve, da resposta que não dei, do irreparável que a morte nos revela sempre, a nós que gostamos de quem morreu e com quem nunca vivemos a aventura que um dia até pensámos ser possível viver em comum. Voltam-me os dias em que via o Álvaro Lapa de longe, depois de perto, ali pelo Marquês, ao pé da Buchholz, com o Rui-Mário Gonçalves a dirigir as operações, conversas num café em frente, cartas trocadas, aquela ida ao Porto quando ele inaugurou a exposição no Museu Soares dos Reis, intensa mostra que foi um primeiro balanço de vida, tanta coisa vivida às vezes de muito perto, outras de mais longe, num segredo.
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E volta-me a imagem daqueles anos ainda 50 vividos em Évora, a sair da adolescência, o retrato que lhe fez o Cutileiro, envolto em fumo na casa do Charrua, adolescente que vê o mundo inteiro à sua frente e o quer para si, petulante, ousado, misterioso. E imagino-os, arrogantes, sem um tostão, folheando revistas, procurando informações nas livrarias de Évora ou nas fugazes vindas a Lisboa, ele, o Paolo, o Joaquim Bravo, o Henrique Ruivo, ansiando, ansiosos, hereges, libertando-se de liberdade e coragem numa cidadezinha pesada, sorumbática, claustro censório. Que ousadia, aqueles finais dos anos 50 com os saberes conquistados e partilhados, autodidactas, corajosos, determinados, incorruptíveis, com o futuro inteiro à sua frente e tão pouca coisa para se defenderem do presente, tão irremediáveis, tão incuráveis!
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As cidades de província mudaram entretanto, deixo Viseu com a tranquilidade de que ali se está a viver com uma nova noção do que é responsabilidade e aventura, risco e alegria. Mas não posso deixar de saudar aqueles rapazes e raparigas que, numa cidade de província, há cinquenta anos, debaixo da ditadura, mesmo à sombra da Pide e da Legião, ousaram desafiar não apenas a cidade, mas a autoridade: a escola, o ensino, as belas-artes, o saber. E o conquistaram.
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Álvaro Lapa terá morrido e a sua modéstia ética fê-lo, anos a fio, recolher-se do mundo, eremita na sua casa de Leça, tímido, caloroso, atento e no entanto distante de tanta coisa. Mas a aventura da sua vida é nossa; e nasceu de uma cidadezinha de província, Évora, onde o Inverno era frio e o Verão sem sombra.
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[Jorge Silva Melo, in Século Passado, Cotovia, 2007]

28.4.08

Álvaro Lapa: A Literatura

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O mais recente filme de Jorge Silva Melo chama-se Álvaro Lapa: A Literatura e é precisamente sobre o pintor (e também escritor) falecido em 2006.
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Em Fevereiro desse ano, Jorge Silva Melo estava em Viseu quando recebeu a notícia da morte de Álvaro Lapa, tendo feito depois a viagem para Lisboa, na companhia de Francisco Frazão. Para este filme, Jorge Silva Melo voltou a fazer essa viagem, agora na companhia do actor Pedro Gil, recordando a sua relação com o pintor.
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Intercalada com a viagem, são-nos apresentados belíssimos excertos de entrevistas com Álvaro Lapa.
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É uma homenagem comovente, que podemos ver no Indie Lisboa. O filme teve uma primeira sessão, que fui ver, na sexta-feira, sendo a segunda sessão amanhã às 21.15 no S. Jorge.
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A BONECA, «O 1º AMOR», OU A PÁSCOA DE MIL NOVECENTOS E CINQUENTA E TAL
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SOMA E SUBTRAI eu tinha treze anos em Julho. Ela tinha uma cona por dez escudos. Ou mesmo 15, emolumentos. Sabão e água. E a telefonia. Combinava-se, como no dentista. E nada de dores, tudo a brincar. Leonor, e as ancas largas. Pro baixo e loira, na condição. Via-se na rua, fora do ghetto, e dizia-se-lhe o nome. Levava quinzes. E um cortejo de pensamentos fragmentados, com ela, de volta a casa. Pensando os homens: em ir fodê-la. Sem mais conteúdo, eles. Estreei-me em Abril, horas da tarde e a emoção. Mãe dentro da mãe, mamas destapadas, lençol e tudo. Hipocrisia a dela, no tratar das unhas por cima do cio do rapaz, mas atenta. Era o seu estilo. Manicura. Cuidadosa. Como no sabão. Cuidadosa. Lavava-nos como a meninos, e era um prazer a mais, ela tirava e punha outra vez a comichão de há pouco, na pixota. E até licor, às vezes. Dois compartimentos, «boa casa» e limpeza. Cheiro a guisado, menu da Páscoa, e pelo ano fora. Apuro de ideias, ao fogão. Sempre o cuidado. Eu lia Sartre, aos quinze. Mas naquele tempo (1º amor) era só haste, sem flor. Folhas pequenas, frágeis, que ela não partiu e até afagou. Deixou crescer. Conheceu. Considerou. Juro. Sem Sartre havia a telefonia. Magia de palácio; edredão e telefonia. E a luz coada do saguão. Saber de arquétipos. Transmissão de luz (como de lâmpada, na gíria zen). Minha cultura, meu corpo: a Leonor sabia.
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[Álvaro Lapa, in Barulheira, & etc, 1982]
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[Álvaro Lapa, Caderno de Freud]
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[Álvaro Lapa, Caderno de Céline]

26.4.08

FMI

FMI, de José Mário Branco, já está no YouTube (versão audio, apenas).
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FMI foi gravado ao vivo em 1982 e pode ser encontrado no álbum Ser Solid/tário. Fica aqui também a letra:
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Vou... vou vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial: trata-se de um texto que foi escrito assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não seja muito actual. Vou vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam já não ser muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste texto.
Chama-se FMI.
Quer dizer Fundo Monetário Internacional.
Não sei por que é que se riem, é uma organização democrática dos países todos, que se reunem, com umas pessoas, em torno de uma mesa, para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos... É o internacionalismo monetário!
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FMI
Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o Mortimore do Meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer:
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí dentro, analisar, e então
Do meu 'attaché-case' sai a solução
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FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico pra si
FMI Não há força que retorça o FMI
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Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer:
Não ando aqui a brincar! Não há tempo a perder!
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução
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FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico hara-kiri
FMI Panegírico, pró lírico daqui
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Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si, palavras para dó
A contas com o nada há que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais:
celulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Um encontrão imediato do 3º grau
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FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI ...
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Entretém-te, filho, entretém-te, não desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalte-quer-messe gigantesca, vem-te-bem, bem te vim, Vim-me na cozinha, vim-me na casa-de-banho, Vim-me no Politeama, vim-me no Águia D'ouro, Vim-me em toda a parte... Vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão, olha os pombinhos pneumáticos como te arrulham por esses cartazes fora, olha a música no coração da Indira Gandi, olha o Moshe Dayan que te traz debaixo de olho... O respeitinho é muito lindo, e nós somos um povo de respeito, né filho? Nós somos um povo de respeitinho muito lindo: saímos à rua de cravo na mão, sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho? Consolida, filho, consolida: enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela, que o malmequer vai-te tratando do Serviço Nacional de Saúde. Consolida, filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo, o teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos, como o Astro, não é filho? O cabrão do Astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é? Pois claro: ganhar forças, ganhar forças para consolidar, para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta desestabilização filha-da-puta, não é filho? Pois claro!
Estás aí a olhar para mim? Estás aí a ver-me dar 33 voltinhas por minuto, pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transacção e estás a pensar lá com os teus zodíacos: «este tipo está-me a gozar! Este gajo quem é que julga que é?» Né filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde que nasceste? A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote, hã? Meu Fernão Mendes Pinto de merda! Onde está o teu Extremo Oriente, filho? A-ni-ki-bé-bé, a-ni-ki-bó-bó, tu és Sepúlveda, tu és Adamastor. Pois claro: tu, sozinho, consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho? Mal eles sabem! Pois é: tu sabes o que é gozar a vida! Entretém-te, filho, entretém-te! Deixa-te de políticas, que a tua política é o trabalho! Trabalhinho, porreirinho da Silva! E salve-se quem puder, que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala em ritmo de pop-chula, não é filho?
A-one, a-two, a-one-two-three
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FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI...
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Camóniú, sanóvabiche! Camóne beibi, a ver se me comes! Camóne Luis Vaz, amanda-lhe com os decassílabos que eles já vão saber o que é meterem-se com uma nação de poetas! E zás: enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares! Zás: enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro Cunhal! Zás: enfio-te a Natália Correia no Sá Carneiro! Zás: enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros! Zás: enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer, e acabamos todos numa sardinhada à Integralismo Lusitano, a estender o braço, meio Rolão Preto meio Steve McQueen, ok boss, tudo ok... Estamos numa porreira, meu, um trip fenomenal, proibido voltar atrás, viva a liberdade... né filho? Pois, irreversível, pois claro, irreversivelzinho, pluralismo a dar com um pau, nada será como dantes: agora todos se chateiam de outra maneira, né filho? Ora que porra! Deixa lá correr o marfil, homem, andas numa alta, pá, é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é? Preocupações, crises políticas, pá! «A culpa é dos partidos, pá! Esta merda dos partidos é que divide a malta, pá!» «Pois, pá, é só paleio, pá, o pessoal não quer é trabalhar, pá! Razão tem o Jaime Neves, pá!» «Olha: deixaste cair as chaves do carro!» «Pois, pá!» «O que é essa orelha de preto que tens aí no porta-chaves?» «Epá, deixa-te disso, não desestabilizes, pá!» «Eh, faz favor: mais uma bica e um pastel de nata.» «Uma porra, pá, um autêntico desastre o 25 de Abril! Esta confusão, pá... a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa... Tá bem, essa merda da pide, pá, Tarrafais e o carago... mas no fim de contas quem é que não colaborava, hã? Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, hã? Quem é que não se calava? Quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, hã? Meia dúzia de líricos, pá! Meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro!... Isto é tudo a mesma carneirada!» Oh sr. guarda venha cá – ah. Venha ver o que isto é – eh. O barulho que vai aqui – ih. O neto a bater na avó – oh. Deu-lhe um pontapé no cu, né filho?
Tu vais conversando, conversando, que ao menos agora pode-se falar - ou já não se pode? Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, hã? Estás desiludido com as promessas de Abril, né? As conquistas de Abril! Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho? E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia: «não é nada comigo, não é nada comigo», né? E os da frente que se lixem... E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada: precisas de paz de consciência. Não andas aqui a brincar, né filho? Precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas para cima de alguém, e atiras as culpas para os da frente, para os do 25 de Abril, para os do 28 de Setembro, para os do 11 de Março, para os do 25 de Novembro, para os do... que dia é hoje, hã?
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FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI...
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Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho? Todos temos culpas no cartório - foi isso que te ensinaram, não é verdade? «Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que esta merda ande» - tenho dito. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém - não é isto verdade? Quer-se dizer: há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular, hã? Somos todos muita bons no fundo, né? Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né? Somos todos ou anti-comunistas ou anti-fascistas: estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá, as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé é que se lixa, cá o pintas é sempre o mexilhão... Eu quero lá saber deste paleio, vou mas é ao futebol, pronto! Viva o Porto, viva o Benfica! Lourosa! Lourosa! Marrazes! Marrazes! Fora o árbitro! Gatuno! Qual gatuno, qual caralho! Razão tinha o Tonico de Bastos para se entreter, né filho? Entretém-te, filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs, que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores; entretém-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais; entretém-te, filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho; entretém-te, que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar; entretém-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes. Entretém-te, filho! E vai para a cama descansado, que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada! Milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos, com computadores, redes de polícia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá! Podes estar descansado que o Deng Xiao Ping está a tratar de ti com o Jimmy Carter; o Brejnev está a tratar de ti com o João Paulo II! Tudo corre bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas. A ver quem vai ser capaz de te convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias; vão te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Moel que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia, e nunca consegue desaguar, de maneira que se possa dizer: «porra! Finalmente o rio desaguou!» Vão te convencer de que a culpa é só tua, e tu sem culpa nenhuma, estás tu a ver? Que tens tu a ver com isso, não é filho? Cada um que se vá safando como puder - é mesmo assim, não é? Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer: votas à esquerda moderada nas sindicais; votas no centro moderado nas deputais; e votas na direita moderada nas presidenciais. Que mais querem eles? Que lhes ofereças a Europa no natal?! Era o que faltava! É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes, toma: para safado, safado e meio, né filho? Nem para a frente nem para trás, «e eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso», né? Claro! «Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega!» Entretém-te, meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti: se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás-de plantar tomate para o Canadá ou eucaliptos para o Japão... Descansa que eles tratam disso. Se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo... Descansa, não penses em mais nada... que até neste país de pelintras se acha «normal haver mãos desempregadas» e se acha «inevitável haver terras por cultivar»... Descontrai, beibi, camóne, descontrai, afinfa-lhes o Bruce Lee, afinfa-lhes a macrobiótica, o biorritmo, o horoscópio, dois ou três ovniologistas, um gigante da ilha de Páscoa e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas... Piramiza, filho, piramiza, antes que os chatos fujam todos para o Egipto, que assim é que tu te fazes um homenzinho, e até já pagas multa se não fores ao recenseamento. «Pois, pá, isto é um país de analfabetos, pá!» Dá-lhe no Travolta, dá-lhe no disco-sound, dá-lhe no pop-chula! Pop-chula pop-chula, ié, ié! Jó-ta-pi-men-ta-forever!
Quanto menos souberes a quantas andas, melhor para ti! Não te chega para o bife? Antes no talho do que na farmácia! Não te chega para a farmácia? Antes na farmácia do que no tribunal! Não te chega para o tribunal? Antes a multa do que a morte! Não te chega para o cangalheiro? Antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir! Cabrões de vindouros, hã! Sempre a merda do futuro? E eu que me quilhe? Pois pá: sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu, hã? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá: e eu? José Mário Branco. 37 anos. Isto é que é uma porra! Anda aqui um gajo cheio de boas intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pêlo - e depois? É só porrada e mal viver, é? «O menino é mal-criado», «o menino é pequeno-burguês», «o menino pertence a uma classe sem futuro histórico»... Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz, porra! Quero ser feliz agora! Que se foda o futuro! Que se foda o progresso! Mais vale só do que mal acompanhado! Vá: mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos! Deixem-me em paz, porra, deixem-me em paz e sossego! Não me emprenhem mais pelos ouvidos, caralho! Não há paciência, não há paciência! Deixem-me em paz, caralho, saiam daqui, deixem-me sozinho, só um minuto! Vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e polícias e generais para o raio que vos parta! Deixem-me sozinho! Filhos da puta! Deixem-me só um bocadinho, deixem-me só para sempre! Tratem da vossa vida que eu trato da minha! Pronto, já chega! Sossego, porra! Silêncio, porra! Deixem-me só! Deixem-me só! Deixem-me só! Deixem-me morrer descansado! Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado! Eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto! Eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrillo e a Vera Lagoa! Deixem-me só, porra, rua! Larguem-me! Desopila o fígado! Arreda! T’arrenego Satanás! Filhos da puta! Eu quero morrer sozinho, ouviram? Eu quero morrer! Eu quero que se foda o FMI! Eu quero lá saber do FMI! Eu quero que o FMI se foda! Eu quero lá saber que o FMI me foda a mim, eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se ele tornar a ir para o hospital, pronto! Bardamerda o FMI, o FMI é só um pretexto vosso, seus cabrões! O FMI não existe! O FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma! O FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio! Rua! Desandem daqui para fora! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa...
Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe... Oh mãe...
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Mãe, eu quero ficar sozinho. Mãe, eu não quero pensar mais. Mãe: eu quero morrer, mãe. Eu quero desnascer: ir-me embora, sem sequer ter que me ir embora... Mãe, por favor... Tudo menos a casa em vez de mim; outro maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar e me encontrar fugindo... De quê, mãe? Diz: são coisas que se me perguntem? Não pode haver razão para tanto sofrimento.
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E se inventássemos o mar de volta? E se inventássemos partir, para regressar? Partir e aí, nessa viagem, ressuscitar da morte às arrecuas que me deste. Partida para ganhar, partida de acordar... Abrir os olhos, numa ânsia colectiva de tudo fecundar: terra, mar, mãe... Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto. Lembrar, nota a nota, o canto das sereias. Lembrar o «depois do adeus» e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal. Lembrar cada lágrima, cada abraço, cada morte, cada traição... Partir aqui, com a ciência toda do passado... Partir, aqui, para ficar
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Assim mesmo, como entrevi um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o azul dos operários da Lisnave a desfilar, gritando ódio apenas ao vazio, exército de amor e capacetes; assim mesmo na Praça de Londres o soldado lhes falou: «Olá, camaradas, somos trabalhadores, eles não conseguiram fazer-nos esquecer: aqui está a minha arma para vos servir.» Assim mesmo, por detrás das colinas onde o verde está à espera, se levantam antiquíssimos rumores, as festas e os suores, os bombos de Lavacolhos. Assim mesmo senti um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o bater inexorável dos corações produtores, os tambores.
«De quem é o carvalhal?» «É nosso!» - assim te quero cantar, mar antigo a que regresso.
Neste cais está arrimado o barco-sonho em que voltei. Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, «Grândola Vila Morena».
Diz lá: valeu a pena a travessia? Valeu, pois.
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Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe. No fundo deste mar encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco: tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra. O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui, convosco, e ser-vos alimento e companhia, na viagem para estar aqui de vez.
Sou português, pequeno-burguês de origem. Filho de professores primários. Artista de variedades. Compositor popular. Aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto: muito mais vivo que morto. Contai com isto de mim para cantar, e para o resto.

25.4.08

24.4.08

Os cinemas de João Bénard da Costa

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"Quando eu andava de calções, havia o São Luiz (que já tinha sido Theatro D. Amélia e Teatro República, até se fixar no título do visconde que era proprietário dele), havia o Tivoli, que nunca tinha sido nada antes, pois nascera para cinema em 1925; havia o Éden de Cassiano, grande novidade dos anos 30; havia o Politeama (que antes dos primeiros acordos, sempre malfadados, se chamava Polytheama) e também trocara vocação teatral por vocação cinematográfica; havia o Ginásio, ao pé do Trindade, outro convertido ao cinema e que, nos anos de que me ocupo, cheirava a nazi que tresandava; havia o Condes, o primeiro "grande cinema moderno" de Lisboa, inaugurado em 1917. Por ordem descendente eram as salas do tout Lisbonne quando o tout Lisbonne ia ao cinema. Depois havia o cinema de reprises, ou seja os que repunham os filmes das salas nobres para gente mais pobre, normalmente em programa duplo, quase sempre cinemas de bairro. Havia ainda algumas salas de estreia menos conceituadas como o Odéon, o Palácio (explorados pelo mesmo proprietário, tinham quase sempre a mesma programação), o Olympia, onde ia o maralhal ver as séries do Capitão Tormenta ou os primitivos super-homens, ou, último em data, o Capitólio, ilha cinematográfica entre os teatros do Parque Mayer, inaugurado em 1931."
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[...]
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"Depois, já eu não andava de calções, inauguraram-se as grandes salas com milhares de lugares: o S. Jorge, o Monumental, o Império, em catadupa dos primeiros anos 50. Era o scope, era o VistaVision, eram os 70mm, com apoteose no super-écran do super-Monumental. Que reste-t'-il de nos amours? O Tivoli, o Éden, o Ginásio, o Condes foi um ar que lhes deu e quem vê fachadas não vê interiores desabridos. Resta o Império, mas para as missas da IURD e não mais para os cinéfilos. Resta o S. Jorge, partido às fatias, e que só se salvou devido à bendita teimosia de João Soares; resta o S. Luís (onde vai o z!) mas cinema não é com ele e teatro só quando o rei faz anos; restam duas ruínas: o Odéon e o Capitólio, há muito encerradas, a apodrecerem aos poucos ou aos muitos."
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[João Bénard da Costa, em crónica no Público de 20/4/2008, sobre o Capitólio (pode ser lido na íntegra aqui)]

Os cinemas de Pedro Mexia

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"Parecem nomes de familiares mortos. São algumas das muitas salas de cinema lisboetas que eu ainda frequentei e que já fecharam: Quarteto, Condes, Mundial, Tivoli, Éden, Império, Estúdio, Apolo 70, Berna (e houve outras onde nunca cheguei a ir como o Estúdio 444, o Odéon, o Paris ou o Roxy). Hoje em dia os cinemas de Lisboa estão quase todos em centros comerciais, e reconheço que alguns são confortáveis e têm óptimas condições técnicas (como o UCI); mas alguma coisa se perdeu na experiência do cinema: a marca de programação de uma sala única, o convívio entre amigos cinéfilos, coisas tão simples como os bilhetes tipo comboio do Quarteto, as cadeiras do Condes que desciam quando nos sentávamos ou a sensação de estarmos no mesmo Tivoli onde tinha estreado em 1957 Bigger than Life."
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[Pedro Mexia em post no Estado Civil]

23.4.08

Avenida Infante Santo

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A Av. Infante Santo em Lisboa é um excelente exemplo da evolução do urbanismo em Lisboa durante o séc. XX.
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Tendo sido rasgada da Estrela à Pampulha em várias fases, ao longo da primeira metade do século XX, os edifícios que foram sendo construídos acabaram por permitir uma divisão simbólica da avenida em três zonas perfeitamente distintas e representativas.
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Numa primeira fase (partindo da Estrela) temos a arquitectura que se praticava até aos anos 40, inclusive: edifícios discretos, com poucos pisos, em quarteirões de estrutura tradicional. Aqui, e um pouco por toda a cidade, independentemente da apreciação estética que possamos fazer, a verdade é que estas zonas funcionam: têm comércio, cafés, movimento, tudo o que uma cidade deve ter. São geralmente as melhores zonas para viver, com melhor qualidade de vida.
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A segunda fase arquitectónica da Infante Santo corresponde à reacção moderna e internacionalista contra a arquitectura anterior, considerada retrógrada.
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É desta fase este excelente conjunto arquitectónico, vencedor do prémio Valmor em 1954, da autoria dos arquitectos José Pessoa, Hernâni Guimarães Gandra e João Abel Carneiro de Moura Manta. O conjunto que fica em frente também é interessante.
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Com os edifícios perpendiculares à via, uma estrutura assente em pilotis, e uma inteligente solução para o acentuado desnível do terreno, resolve-se muito bem a relação entre a avenida e o bairro da Lapa. No entanto, como se verifica em todas as zonas onde está presente, trata-se de uma arquitectura (e urbanismo) que acaba por tornar o espaço público pouco acolhedor, precisamente o contrário do que pretendia.
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A última parte da avenida, com edifícios construídos nas últimas décadas, representa bem a última fase de arquitectura e urbanismo na cidade de Lisboa: o caos completo. Sem qualquer planeamento, cada promotor compra um terreno e constrói ao seu gosto (normalmente péssimo) e com a maior volumetria que conseguir.
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A Avenida Infante Santo torna-se assim uma avenida feia e vulgar, que não se distingue de uma qualquer rua do Cacém ou da Reboleira, mesmo que alguns dos seus edifícios pretendam ser “de luxo”, como é o caso do tristemente famoso empreendimento "Infante à Lapa".
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21.4.08

Os novos editores (2)

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"Isaías Gomes Teixeira, administrador executivo do grupo Leya, no momento em que me despedi, disse-me que compreendia perfeitamente que um homem que tinha idade para ser pai dele já não se adaptava a estas novas dinâmicas do mundo editorial. É um bocado verdade.
Porquê?
Sou de uma geração e tenho uma escola em que houve sempre uma enorme preocupação com a rentabilidade dos projectos, mas essa rentabilidade passava por uma frase que repeti muitas vezes: 'Publica-se o que dá para se poder publicar o que não dá'. Uma das primeiras frases que Isaías Gomes Teixeira disse quando entrou para o grupo foi: 'Mas para que é que vocês publicam o que não dá?' Isto transmite uma filosofia com a qual não estou minimamente de acordo."
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[Manuel Alberto Valente em entrevista ao Público da passada sexta-feira]
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A entrevista com Manuel Alberto Valente, bem como outros sinais que vão surgindo aqui e ali, é bem reveladora do tipo de gente que está à frente dos novos grandes grupos editoriais: gestores profissionais sem qualquer ligação ou gosto pessoal pelo livro e pela literatura. Isaías Gomes Teixeira é um caso particularmente grave no desprezo que demonstra por esta área. Os resultados, claro, começam a estar à vista...

17.4.08

Problemas da música portuguesa

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Na vossa opinião, porque há cada vez menos gente a trabalhar em prol de uma música genuinamente portuguesa?
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Luís Varatojo – Porque se apagaram as memórias. A maioria dos putos, na altura de começarem a fazer coisas, nem sabem o que é a música portuguesa, porque nunca a ouviram na rádio, porque vão às prateleiras das lojas e não a têm disponível. Quando estive na Fnac de São Paulo, a secção de música brasileira fazia duas ou três vezes a de pop-rock internacional. Aqui é ao contrário: nas Fnac portuguesas, o canto da música portuguesa é cada vez mais pequeno. Se a música não está viva, não se meche nela, se não se fazem novas abordagens e propostas, é claro que o público também estagna. Quem conhece música portuguesa são os meus pais, que têm 60 anos. Depois há umas franjas muito pequenas que sabem quem é o Sérgio Godinho, o Fausto ou o António Variações, embora este último tenha sido objecto de uma campanha de marketing ultimamente…
Maria Antónia Mendes – No caso do Variações foram mais publicitados os projectos que o cantavam…
Luís Varatojo – Depois há aquele problema que às vezes se depara com A Naifa. Isto não é uma música portuguesa pura, dizem uns, enquanto para os outros isto também não é rock, é uma música armada em fado. E ficamos ali no limbo. Ora, quando fazes este tipo de experiências, é aqui que andas, normalmente. Isto constitui um perigo e uma intimidação às pessoas que fazem música. Por isso, não arriscam e ou fazem fado tradicional, que está bastante bem visto, ou então fazem rock cantado em inglês. E a nossa música moderna vai aparecendo aos repelões.
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[A Naifa em entrevista ao Actual (suplemento do Expresso) de 5/4/2008]

15.4.08

uma inocente inclinação para o mal

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Um dos maiores acontecimentos da música portuguesa nos últimos anos, A Naifa, tem novo disco.
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Este novo álbum vem na linha dos dois anteriores, embora com pequenas inovações (como a presença de bateria) e resultou talvez um pouco mais certinho e limpinho. O nível de excelência continua elevado, pese embora não haver canções tão marcantes como algumas dos outros álbuns.
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Quanto às letras, desta vez não foram usados poemas de autores como Adília Lopes ou Tiago Gomes.
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Agora todas as letras têm a autoria da desconhecida Maria Rodrigues Teixeira, personagem de tal forma misteriosa que nos leva a duvidar da sua existência (não serão os próprios elementos da banda os autores das letras?).
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Mas isso é o que menos importa. As letras são óptimas, veja-se por exemplo esta:
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apanhada a roubar
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apanhada a roubar
como uma criança
de vestido branco e sandálias
consertei a figurinha
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um homem assim humilde
lançado aos cães
não sinto quase nada
uma ligeira dor de cabeça
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gostavas de ser feliz
farei o que puder para te impedir
a cada novo dia o duro preço
não consigo resistir
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nesse dia beijei muita gente
se te magoei não foi intencional
espero ainda que me perdoes
uma inocente inclinação para o mal
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No blog d’A Naifa podemos ouvir integralmente o primeiro single Filha de Duas Mães e aqui é possível ouvir um excerto de cada música do álbum.
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Nos dias 18 e 19 deste mês estarão ao vivo no Teatro Maria Matos em Lisboa. Mais datas, para todo o país, podem ser consultadas aqui.

14.4.08

Os novos editores

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As pessoas que hoje detêm as editoras estão mais vocacionadas para o negócio que para a literatura?
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Da minha geração ainda há alguns editores em Portugal. Mas somos uma geração em extinção. O mundo moderno não se compadece com o vagar que é necessário para construir uma relação com o autor. Hoje os editores nem sequer leêm os textos. Na maior parte dos casos, o título publica-se porque o autor tem um programa de televisão, é jornalista, é político, é tudo menos escritor. As exigências das organizações empresariais que hoje são as editoras já não se compadecem com esta situação. Esse trabalho só pode continuar a ser feito das pequenas iniciativas da edição que têm a figura do editor muito preservada.
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[Nélson de Matos em entrevista à última edição do semanário gratuito Sexta]

12.4.08

"Toda a gente me crê um homem misterioso. Pois eu não vivo, não tenho amantes... desapareço... ninguém sabe de mim... Engano! Engano! A minha vida é pelo contrário uma vida sem segredo. Ou melhor: o seu segredo consiste justamente em não o ter.
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E a minha vida, livre de estranhezas, é no entanto uma vida bizarra - mas duma bizarria às avessas. Com efeito, a sua singularidade encerra-se, não em conter elementos que não se encontram nas vidas normais - mas sim em não conter nenhum dos elementos comuns a todas as vidas. Eis pelo que nunca me sucedeu coisa alguma. Nem mesmo o que sucede a toda a gente."
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[Mário de Sá-Carneiro, in A Confissão de Lúcio, Assírio & Alvim, 2005]

10.4.08

Luiz Pacheco: o prefácio à "Filosofia na Alcova"

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O Afrodite (excelente blog dedicado a Fernando Ribeiro de Mello e às edições Afrodite) deixou aqui o prefácio que Luiz Pacheco escreveu para a célebre edição d' A Filosofia na Alcova, do Marquês de Sade, em 1966.
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No mesmo blog podemos conhecer todos os pormenores do processo que se seguiu à polémica edição, numa série de posts listados aqui. Recorde-se que foram constituidos arguidos Fernando Ribeiro de Mello, o tradutor António Manuel Calado Trindade, Herberto Hélder, Luiz Pacheco e João Rodrigues.
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David Mourão-Ferreira não chegou a ser constituido arguido, embora também tenha escrito um prefácio, que podemos ler aqui.

6.4.08

Quarteto

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“o triunfo dos multiplexes (de que, ironicamente, o Quarteto foi, a partir de 1975, sob a direcção de Pedro Bandeira Freire, um modelo pioneiro) transfigurou de modo muito significativo as leis do mercado. Com consequências globais conhecidas: massificação consumista em torno de um número reduzido de títulos (os poucos que gozam de campanhas gigantescas) e crescente marginalização das tendências "alternativas" do cinema (incluindo o americano).”
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“é vital que o chamado mercado cultural não seja "forçado" a submeter-se a lógicas que, em última instância, impedem os espectadores de aceder à diversidade da produção cinematográfica, seja ela contemporânea ou clássica (e é absurdo que essa diversidade se tenha tornado infinitamente maior na área específica do DVD). Mesmo com desequilíbrios e limitações, essa preocupação continua a ser essencial na oferta das grandes capitais da Europa. Por uma vez, não nos ficaria mal sermos europeus.”
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[João Lopes, DN de 30/03/2008]
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A situação do cinema Quarteto parece-me francamente preocupante e gostava de destacar quatro aspectos:
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- Primeiro: o cinema em si, embora com sinais visíveis de decadência, era o mais antigo dos cinemas ainda em actividade em Lisboa. Era um espaço emblemático, que continuava a ter para mim um encanto muito especial;
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- Segundo: verifica-se a quase extinção em Lisboa de salas onde possamos fugir ao cinema-pipoca, onde se possa ver um filme um pouco menos comercial, completamente ignorados pelos cinemas dos centros comerciais;
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- Terceiro: mesmo quem gosta de filmes mais comerciais não está necessariamente para aturar o ambiente de centro comercial, com fedor a pipocas e adolescentes barulhentos;
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- Quarto: continua a tendência implacável de esvaziamento das ruas da cidade de Lisboa (cinemas, cafés, lojas), em favor de centros comerciais, maioritariamente nos subúrbios, completamente ao arrepio da tendência das principais cidades europeias.
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Restam-nos o King (não sei por quanto tempo, já se falou em transformá-lo em garagem…), o Nimas, o Londres e as salas do Saldanha que, embora estejam em centros comerciais, têm uma lógica um pouco diferente.

4.4.08

Ler blog

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A nova revista Ler vai voltar já no final deste mês. Entretanto podemos ir lendo o blog. Para já tem essencialmente pequenas notícias e apontamentos do mundo editorial. Fiquei a saber por exemplo que a Antígona vai finalmente publicar o livro de Anselm Jappe sobre Guy Debord.

2.4.08

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[Fernando Lemos, A Sensualidade que Avança]