21.8.10

Manuel Hermínio Monteiro: a entrevista ao DNA em 2001

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O DNA (suplemento do Diário de Notícias) de 12-05-2001 publicou aquela que penso ter sido a última entrevista dada por Manuel Hermínio Monteiro, o editor da Assírio & Alvim, que viria a morrer em Junho desse ano. Foi uma longa entrevista, conduzida por Anabela Mota Ribeiro. Deixo-a aqui:
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MANUEL HERMÍNIO MONTEIRO
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A conversa seguinte aconteceu numa destas tardes de sol. Do sol radioso que encharca de esperança os primeiros dias da Primavera. Manuel Hermínio Monteiro, o mítico editor da Assírio & Alvim, refastelou-se no sofá para desfiar o novelo da sua vida cheia. Como ele diz, logo no começo, a ponta pode ser a que nos aprouver que há-de sempre dar no mesmo.
Decidi começar por um lugar que cruzava as palavras e as memórias, umas e outras em catadupa. Um lugar que é talvez o mais belo recanto do Douro. E por isso de Portugal. E por isso do mundo. Conheço esse sítio há muito porque me fiz, também, em terras transmontanas. O que, como perceberão, tem a sua importância. A marca da terra, espessa, fez-me assim, fê-lo assim.
Esta é a vida de um transmontano, um transmontano de boa cepa. Calha de haver uma flor maligna que lhe traga a carne. Até ver. Como ele dizia, quando pela primeira vez o vi depois de saber, «Estou bem», embrutecendo o tronco, referindo-se à força, à robusteza.
A seguir, que é para isso que servem as introduções, têm a vida deste homem. E dentro dela a vida toda.

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Começamos por onde?
- Sei lá. Como a vida anda às voltas, pode ser por qualquer lado.
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A vida anda às voltas?
- Muitas. A minha é uma vida muito cheia.
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Podemos começar por S. Leonardo de Galafura, o recanto do Douro escolhido por Torga, que, presumo, conheça.
- Conheço. Dizem-me agora que na encosta contrária ainda há outro miradouro mais bonito, S. Salvador.
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O seu lado do Douro é o do Pinhão.
- A minha terra é mais para o interior, perto de Murça. Alijó. Do meu lado vejo Favaios, Sanfins, Vilar de Maçada.
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Nasceu na aldeia, em Parada do Pinhão. Viveu lá até que idade?
- Fiz lá a Primária. Vivi no século passado, posso dizê-lo. Vi chegar a electricidade, a rádio, a televisão.
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Era um outro tempo para o país, e sobretudo para o interior.
- A escola era uma mesa muito grande numa sala; em bancos corridos estavam numa pontinha os meninos da primeira classe e na outra ponta os da quarta, alguns já com 17/18 anos.
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Passavam directamente do campo para a escola?
- Andavam ali a arrastar. Uma vez um contou que a professora lhe tinha dito: «Se fizeres os deveres, vais amanhã dormir comigo». Ele chegou ao pé da mãe e disse: «Ó mãe, dá-me umas cuecas novas que amanhã vou dormir com a professora!» Ainda levou nas orelhas.
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A professora era quem? Uma moça da aldeia?
- Comecei com uma professora que levei até ao fim. Marcou-me muito e ainda hoje a recordo com muita saudade. Vive agora em Cascais, chama-se Lúcia. A minha professora deve ter sido das primeiras do Magistério; as outras tinham a quarta classe. Logo a seguir inaugurámos uma escola nova. Excelente, a escola, com entrada em arco, azulejos à volta, e tal.
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A professora Lúcia acompanhou a sua escolaridade primária. Onde eu queria chegar era à sua primeira relação com as palavras.
- Deve-se muito a ela. Uma relação de encantamento. O que é extraordinário é que andamos sempre à procura. Do Graal, às tantas. Antes de irmos para a escola estamos num estado absolutamente delirante. Eu já sabia os reflexivos, os pronomes, as preposições…
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Como é que já sabia?
- Era uma música. Ouvia os mais velhos e decorava.
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Ouvia-os do recreio?
- A escola era mesmo no meio da aldeia, ouvia cá de fora e depois perguntava aos mais velhos. Quando vamos para a escola, imaginamos que vamos aprender coisas. Uma ansiedade. Como depois temos quando vamos para o Liceu; julgamos que ali é que vai ser a sério. Depois, a Universidade é que vai ser a sério. Para chegar à conclusão que andamos permanentemente à procura de qualquer coisa que não existe. Tal e qual como a felicidade.
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A felicidade não existe?
- Com a idade vamos percebendo que a felicidade é uma aquisição muito delicada, muito trabalhosa. Esgaravatar uma mina, mexer muita terra, muita pedra, e depois, de vez em quando, lá aparece um bocadinho de minério. A felicidade também é assim. São momentos fulgurantes, extraordinários, mas não existe em estado puro. Nada existe nesta vida em estado puro.
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O que é que se pode retirar dessa lida diária?
- Mas é isso, é o trabalho diário, é a busca. E talvez sim, talvez se consiga. A consciência disso leva-nos a valorizar cada vez mais esses momentos, esses pedaços de cintilância. Isto vem a propósito?
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Da aldeia, dos parcos recursos.
- Como é que com pouquíssimos livros… raramente víamos um livro, uma imagem.
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Não tinham livros em casa?
- Não. E não tínhamos ainda televisão, éramos muito virgens em termos de imagens. A cultura era muito interessante; desde cantares, guitarras, uma forte tradição do teatro, festa feitas conjuntamente – havia laivos de comunitarismo permanentes. Ao mesmo tempo a aldeia fechava-se, como se um medo a rodeasse, «Fulano de tal ainda não chegou à terra?». Imaginavam-se coisas completamente loucas, derivadas também das casas onde o vento soprava pelas frestas, o soalho rangia, a luz da lareira era móvel, parecia que estávamos em empurrões de barcos. Isto a juntar àquela imaginação alucinante, como ainda é lá em cima, do maravilhoso celta; ou, para não sermos tão caros, a imaginação do próprio meio que fermenta coisas – uma vez que ainda não havia esta dispersão que há hoje.
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Qual era o seu ponto de observação e participação nesta vivência comunitária?
- Tinha uma experiência muito colectivizada porque a minha avó tinha um forno onde as pessoas iam fazer o pão e o meu avô tinha um grande alambique onde se juntava o pessoal todo, com a concertina, e mais não sei quê.
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O que representava a sua família na aldeia?
- Eram camponeses. O meu pai e a minha mãe casaram cedíssimo, a minha mãe com 16, o meu pai com 18, dois miúdos filhos de volframistas.
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Naquele tempo eram comum casarem tão cedo e terem filhos logo depois.
- Nasci um ano depois. Tive sempre os meus pais muito novos e uma família muito numerosa: muitas tias, muitas primas, em idade casadoira. Lembro-me bem dos vestidos delas, muito vaporosos, de se pentearem. A minha tia tinha raparigas que iam para lá aprender costura. Um gineceu fortíssimo, sempre a ser esmagado por abraços apertados.
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E gostava ou não?
- Às vezes apertavam-me demais, já fugia. Mas na verdade sentia-me um reizinho. São coisas que nunca mais se esquecem: a pressa para irem à missa, os dias de sol, a luz da Primavera.
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Num dia claro de Primavera, como é este, é isso que rememora?
- Lembro-me muito da minha infância. É uma espécie de película impressionável: o que fica ali registado, marca muito, muito mesmo. Tive a felicidade de ter uma infância completamente rural. O meu avô ia podar, levava-me com ele, deitava-me no casaco dele. Nessa altura, que é das primeiras ervinhas e flores, enquanto ele cantava aquelas canções, o Pinhão vinha com fragor por ali abaixo, e sentia os lampejos do sol nos açudes. Para um miúdo de sete anos, isto era uma coisa fabulosa. Acordar num casaco a cheirar a tabaco – o meu avô fumava onça – e ficar a olhar. Ficar com as florzinhas em primeiro plano, ver o mundo mais rasteirinho. Nunca mais esqueci. De tal maneira que ainda hoje a maior parte dos meus sonhos são: águas límpidas, rosas, pereiras floridas, o meu pai a mostrar-me sítios por onde passávamos quando íamos à feira.
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Respira, assim, um tempo que já não existe. Como é que sai da aldeia?
- Apareceu a hipótese de ir para um colégio de Salesianos, com as duas vertentes, para padre ou não. Ficava em Arouca, num antigo convento, sinistro. Fui logo a seguir à quarta classe, com dez anos. Nunca tinha saído lá de cima, nunca tinha visto o mar.
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O seu mundo era a aldeia, e os campos à volta.
- E as romarias, e as feiras: a Sra. da Pena, a Sra. da Saudade, a Sra. Da Piedade. Adorava, adorava aquilo. Conhecia outras aldeias. Mas, naquele tempo, íamos a outra aldeia sempre com o risco de levar uma pedrada. Para irmos a Justes – as terras ali mais perto eram Justes e Vilar de Maçada, que é a terra do [José] Sócrates – fazíamos uma aventura extraordinária, com um cuidado extremo.
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Onde lhe parece que radica essa incrível rivalidade?
- Talvez sejam reminiscências de castreja, não percebo de outra maneira. Agora está melhor, há mais circulação, carros vão e vêm.
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Há a televisão.
- E as comunidades dissolveram-se, com a emigração, por exemplo. Hoje, na minha aldeia, há uma geração jovem muito civilizada, educada, que estuda e circula. Organizam-se para o teatro, para o futebol, têm um grupo coral, até já gravaram um cd. Na altura, eram ódios terríveis. Isto é uma conversa de Antropologia que dava para irmos por aí fora.
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A aldeia era visitada por almocreves, ou havia uma venda onde coincidia o café, a mercearia, a farmácia, etc?
- Existia uma economia natural, de trocas directas. Nas feiras trocavam-se sacholas por feijão.
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Os seus pais trocavam o quê?
- O que tinham: milho. O meu pai tinha algum dinheiro, mas muito pouco, porque tinha explorações de resina. Está bem que o meu avô vendia aguardente e teve muito dinheiro no tempo do volfrâmio, tinha certa produção de vinhos, e o vinho sempre se vendia. Mas imperavam as trocas directas.
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A relação era muito mais desprendida com os objectos. Quer trocas eram as suas?
- Nós só jogávamos ao botão.
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A sua primeira namorada era da aldeia?
- Sim.
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Eu recordo os quilómetros que os namorados faziam para encontrar ao domingo a namorada, que vivia noutra aldeia, para, no fim, ficarem uma hora a falar na berma da estrada.
- Uma vez inventaram-me um namoro, que nem era verdade!, em Sanfins, os sacanas, já andava no colégio Almeida Garrett. Levaram-me à fonte e tive de pagar um garrafão de vinho ao pessoal! Mergulharam-me a cabeça para ser adoptado.
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Uma praxe. E nisto já estamos no Porto.
- Depois da Primária, estive dois anos nos Salesianos, em Arouca, e depois perto de três perto de Coimbra, onde completei o quinto ano.
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Quando foi para os Salesianos, era para ser padre?
- Digamos que tinha uma certa tendência. Por uma razão simples: numa aldeia, neste contexto de que lhe falo, o que produzia um fascínio, fascínio, fascínio, era a religiosidade.
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O que era tão fascinante?
- Para já, havia um delírio religioso, mesmo que não fosse ortodoxo. A presença da bruxaria, do sobrenatural, do Além. Antigamente vivia-se nesse mundo. E pessoas que não mentiam (homens de uma verticalidade, de uma palavra dada…) viam coisas.
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Também via coisas?
- Uma vez estendia a mão para tocar numa senhora que julgava que estava ao meu lado. Imagine o que eram aquelas eiras quando no Verão ficávamos a olhar para o céu, a imaginar o que era o mundo, a chegar lá apenas por intuição. Então, o mundo da igreja, os bastiadores dos altares…
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Chegou a ser acólito?
- Ajudar à missa? Montes de vezes.
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Não estou a vê-lo feito papinho de anjo…
- Nos Salesianos, onde cheguei todo sujo do carvão do comboio, nunca consegui ser dos bens comportados.
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Demorou quantas horas a chegar?
- A primeira vez que fui, ainda não tinha chegado à Régua, perguntei: «Ainda falta muito para chegar ao Porto?». Era preciso meter água, era preciso meter lenha, depois manobras à esoera do outro. Mas também eram uma animação, aqueles comboios. Concertinas, gaitas de beiços, comezainas, garrafões, tipos a contarem anedotas, tipos a venderem romances de cordel.
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Viu o «Rio do Ouro» do Paulo Rocha? É disso que está a falar?
- O ambiente era ainda mais denso. Entrava uma mulher com cerejas, ia de Godim à Régua: dava logo cerejas ao pessoal. Dava! Vender, vendiam bilhas de água, regueifas, todo um conjunto de coisas ao longo da linha. E um calor infernal.
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Como por lá se diz, «Nove meses de Inverno e três meses de Inferno». Para não perdermos o fio à meada, aterra no colégio sozinho. O normal era que os miúdos fizessem a quarta classe e ficassem por ali. Como é que se decidiu que continuaria os seus estudos?
- Conheciam um padre salesiano ali perto, o padre Álvaro, que perguntou ao meu pai, «Porque é que ele não vai?, tal tal tal..» Já estava decidido que ia estudar, tinha um jeitinho, portava-me bem nas aulas. Eu queria ir, e gostava, embora sofresse como um cão. Com saudades, chorava que era uma coisa doida.
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Cortou com o universo encantatório da infância.
- Diziam-me «Mas vai-te embora»; mas por outro lado cria-se uma relação com os amigos e há o orgulho, não se quer ir para trás. É um desafio. O meu avô dizia «Como é que o rapaz está lá naquela coisa dos padres?, sem lareira e sem vinho!» (sorriso).
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Davam-lhe sopas de vinho?
- Não, mas às escondidas o meu avô dava-me às vezes um bocadinho de aguardente, tinha a mania que já era um homenzinho.
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O que é que mais gostava no contacto com as palavras, de ler, de escrever?
- Ah, o que eu mais gostava era de contemplar. E ouvir os velhos.
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Pela sua professora, tinha uma paixão?
- Tem-se sempre. Ainda me lembro das saias dela!
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A sua memória é prodigiosa.
- Dessa coisas da infância, lembro-me bem, mais do que das coisas de agora. As saias, os gestos, o ir buscar as cartas do namorado ao correio.
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Os seus pais ajudavam-no nos trabalhos de casa?
- Sabiam ler e escrever, mas não me ajudavam. O meu pai adorava ensinar-me como cantavam os pássaros, a imitá-los a todos. Chegava a casa, saltava para cima dele com ramos de cerejas. A minha mãe é muito mais enérgica, ágil, nervosa, como as mulheres lá de cima.
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Há um momento, já em Lisboa, em que pensa voltar para casa, para os seus pais, depois de passar pela prisão de Caxias.
- Olhe que há muitas coisas para trás. Ainda nem passámos pelo Porto.
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Então vamos ao Porto.
- O Porto foi uma descoberta, o primeiro contacto com a cidade. Tinha muita malta cujos pais estavam em Hong Kong e que tinham motorista fardado, grandes carrões à porta.
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Impressionava-o de que maneira?
- Pela bizarria. Fascínio?, nenhum. Ao mesmo tempo era injusto: metia-me no Cabanelas e via aquela gente toda, pobre, a subir a Serra do Marão. Pobres mas muito alegres, diga-se de passagem. Não sei o que aconteceu ao povo português. Acho que foram os primeiros rádios, sabe? Até para trabalharem nas vinhas levam rádio, em vez de cantarem. Agora já nem usam rádio. No princípio a música era fundamental. Sempre fui sensível às injustiças. O Porto, o Porto ajudou-me a abrir. Era o período da Guerra Colonial, quase não havia homens nem rapazes. Os bailes eram só com raparigas.
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Como é que entra nessa roda dos bailes?
- Bailes que havia em qualquer associação, e também bailes privados. Arranjavam-se namoradas muito facilmente – estava tudo lá fora. Na minha aldeia, havia o sol de Inverno, os cães, um e outro sentados, não se via mais ninguém. A partir dos 18 anos, iam para a Guerra. Mas devo ao Porto ter-me desmamado em relação a uma série de coisas. Fiz também um esforço para sair de um certo maniqueísmo religioso em que tinha sido formado. Comecei a frequentar igrejas protestantes para ver como é que os outros pensavam.
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Era profundamente crente?
- Sim, sim. Já não muito de missas. Isso ajudou a libertar-me do que era o bem e o Mal. É um percurso que tem de se fazer sozinho. Os amigos estavam noutra. Provavelmente não tinham as mesmas inquietações que eu tinha. Reflectia muito sobre mim próprio, escrevia já bastante, e tentava perceber o que se estava a passar. E havia outra coisa: para aquela malta do Porto, não ir às putas era o mesmo que ser maricas. Fazia-lhes uma confusão do caraças. E era uma coisa que também não percebia: como é que com tanta rapariga lindíssima… Tinha essa estranha relação homem-mulher facilitada, apesar de ter passado por um colégio interno, pelo facto de ter tido uma infância de gineceu. A malta nova ia toda para a Rua do Bonjardim, para as Candeias.
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Frequentavam bordéis ou putas de rua?
- Casas, o Porto estava cheio disso. Bastava descer a Rua dos Caldeireiros a passear… O meu avô, no tempo do volfrâmio, às vezes até trazia os trabalhadores para os Caldeireiros.
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Escrevia para as raparigas?
- Ah sim, escrevia. Aconteciam-me coisas extraordinárias: entrava num comboio e apaixonava-me, entrava numa camioneta e apaixonava-me.
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Pela beleza, por aquilo que a pessoa emanava?
- Não sei. Uma vez estava a contar ao José Agostinho Baptista e ele dizia-me «Tens uma imaginação maluca». As coisas estavam num estado de pureza… Eu tinha uma felicidade interior, uma tal transparência, que isso contagiava a outra pessoa.
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Essa «imaginação» deixou de o acompanhar no amadurecimento dos anos?
- Com o passar do tempo as pessoas deixam de ter disponibilidade para viver em estado de paixão. A minha mola foi sempre o afecto. Nunca pensei ser rico, ter poder…; outra coisa era o amor, isso sim, movia-me para o cu do mundo. O resto? Brrr…
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Fala de uma relação de afecto que me parece tremendamente panteísta.
- Tinha sempre a casa com flores, mesmo quando estava a estudar e tinha pouquíssimo dinheiro: 18 escudos iam para as sécias, comprava meia-dúzia todas as semanas. Já trabalhava na Assírio, metia-me sozinho, com o saco a tira-colo e um caderninho para escrever, primeiro no barco, depois na camioneta: Costa da Caparica, quilómetros por ali fora, ficava a olhar para o mar. Fazia isto com uma regularidade extrema. A partir de determinada altura, o tempo não chegava para nada, nada!
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Responsabiliza sobretudo o tempo? Estava a pensar que naturalmente há uma inocência que se perde. As pessoas deixam de ser puras.
- Chega a uma altura em que nem damos conta de como tudo se passa. Ficamos absorvidos, e depois queremos mais, cada vez mais, e já não conseguimos parar, a não ser que aconteça qualquer coisa de muito…
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Esteve ainda um ano em Direito.
- Quando vim para Lisboa foi para fazer Direito, mas praticamente não fiz nada. Direito estava ocupado, era o tempo do Martinez.
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Porque é que vai para Direito? Ainda por cima já escrevia, já sabia que lhe interessavam as palavras.
- O que queria era ser poeta. Os poetas que lia mais, o Pascoaes, o António Patrício, alguns simbolistas, eram todos licenciados em Direito. Julgava que o Direito… Uma ingenuidade!, como aliás tinha muitas. O mundo era assim, não precisava que fosse mais complexo. Fica-me mal dizer o eu, mas há uma água límpida que ainda mantenho.
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É o seu lado aldeão.
- Não tenho ninguém a quem desejo mal, acredita? Posso não simpatizar, mas não consigo atirar uma pedra a ninguém. Nem aos de Justes! (riso)
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Os seus pais acompanhavam o seu projecto?
- Cresci sozinho, praticamente sobrevivi sozinho. No Porto, tinha muito pouco dinheiro, os meus pais também tinham muito pouco dinheiro. Tive a minha fase freak, como todos. Quer ver como é que eu era?
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Quero.
- [Mostra uma fotografia com a mulher, Manuela, em Marrocos]. Isto é nos anos imediatamente anteriores à Revolução. Tínhamos a sensação de que o mundo ia mudar e que estava ali, ao alcance da nossa mão. Estamos a dispersar-nos muito, não?
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Vamos recentrar em Lisboa, no primeiro ano de Direito.
- Não, Direito é de ignorar, é só matrícula e mais nada.
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Lisboa, depois do Porto, é um novo mundo. Ainda se identificava como um rapaz da aldeia? Pelo facto de ter estudado, a sua vida passou a ser completamente diferente da vida dos rapazes da terra.
- Na aldeia só estive dez anos, nesta altura já tinha outro tanto fora. Mas mantive uma relação muito forte com aquilo. Em Lisboa, numa primeira fase, toda a malta de Trás-os-Montes se encontrava. Desde cirurgiões a tipos do PC, a tipos da PIDE. Desde malta de Montalegre a malta de Vila Real. Juntava-se o pessoal todo ao pé do [café] Gelo.
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Discutindo a situação do país?
- Não. Era talvez puro instinto, pura defesa. Dos que não conheciam isto, dos que conheciam bem. E depois rapidamente se passou a uma fase, por que passei também, de repulsa por tudo o que era rural. Aquilo parecia-me uma piroseira do caraças, as músicas e tudo. Estive muito tempo sem lá ir.
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Porque se fascinou com uma Lisboa sofisticada?
- Julgo que foi um processo mais cultural, que começa nos livros e no que se aprende. Há coisas que irritam!, que, aliás, ainda hoje me irritam: um atavismo, um não querer saber, uma preguiça natural.
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Foi tudo hiperbolizado.
- Parecia-me atávico, justamente. E ridículo: os rapazes chegavam de bicicleta aos bailes, com óculos espelhados comprados na feira! Vinham juntos, mas depois, à frente das raparigas, atravessavam o baile para se cumprimentar. Hoje tudo isso me encanta, mas na altura achava hipócrita.
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Tinha algum amigo da escola primária?
- Sim. Que estudassem só uma rapariga e um rapaz; ela é hoje professora, e foi o único caso de chegar ao fim do curso como eu.
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Estava a tentar perceber se ter tido acesso a outros universos o demarcou das pessoas que conhecia.
- Não muito. Nunca julguei as pessoas pelo que sabiam. Nunca fiz qualquer discriminação pela pessoa ter o curso ou não ter, ser assim ou assado, ser pobre ou rico. Quer dizer, é uma coisa tão natural que o simples facto de falar nisso mete-me impressão. E nunca tive mitos, nem Marilyn Monroe, nem Jim Morrison; a única coisinha que talvez tenha tido foi pelo Che Guevara. As pessoas fascinam-me sempre muito mais. Na hora da sesta, enquanto os outros iam dormir, passava o tempo a ouvir os velhotes. Horas e horas e horas. E depois continuou, com o agostinho da Silva, que ia ouvir de vez em quando.
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Quando é que encontra o Agostinho da Silva?
- Anos 70, pouco depois de vir para cá. Um amigo disse-me «Tens de conhecer o Agostinho». Só não ia mais vezes visitá-lo por causa do cheiro dos gatos (com o cio, o cheiro é insuportável).
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A sua gata, Gueixa, cheira?
- Não, os machos é que é uma coisa terrível. Ele vivia no terceiro andar e sentia-se no fundo das escadas.
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Então, é um rapaz universitário que vai parar a Caxias. Conte lá a história, antes de aprofundarmos a relação com as letras e com a Assírio.
- No Porto já participava numas coisas pró-social. Com o Bispo do Porto e uma certa igreja mais prá-frentex, com um grupo de jovens. Havia uma espécie de reflexão, um centro na Rua do Rosário, com a Irmã Humberta; cantava umas baladas do Fanhais e do Zeca Afonso.
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Estavam ligadas para si essas duas componentes, a religiosa e a política?
- Por acaso nunca tive grande sentido político. Na faculdade deixei-me motivar pela luta anti-Guerra Colonial, mandei umas bocas e pronto. Mais nada. Fui parar a Caxias basicamente porque estava a ouvir o Zeca Afonso no Centro Nacional de Cultura. Deram-me enxertos de porrada inacreditável. Com a minha ingenuidade perguntava: «Por que é que me está a bater?»
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A sensação mais forte é o medo?
- É a de que se está nas mãos da mais completa arbitrariedade; podem-nos dar um tiro, podem fazer o que quiserem. Mas agora, estar a contar isto tudo…
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Custa-lhe?
- Não. Mas foi a primeira machadada na minha vida. Até essa altura tinha sido como um pássaro, à solta. Cortaram-me o cabelo todo, que era enorme, implicaram com as coisinhas que trazia no saco: um caderninho, umas almofadinhas bordadas que as minhas amigas me davam. Meteram-me numa cela sem um papel, sem um livro, nada nada. Um dia parecia uma eternidade. Sabe o que me fez cair na situação? Perceber que já não mandava em mim: «Tens a mania que andas aí como um pássaro?».
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Quanto tempo esteve?
- Para aí uma semana. Lá dentro apercebi-me que havia luta; nos pratos, no alumínio, escreviam coisas como «Coragem, estamos contigo», «Resiste»; na enfermaria havia coisas escritas com sangue; e havia gajos que cantavam, cantigas alentejanas.
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Quando sai quer voltar à terra. Formulou seriamente o desejo de voltar para a aldeia? Ainda se reconhecia nessa vida?
- Estava farto. Essa coisa da Aura Mediócritas, como dizia o Sá de Miranda, é uma coisa que existe muito dentro de nós. Às vezes vejo colegas meus lá em cima, a tranquilidade com que estão com os seus filhos. A felicidade é aquela coisa projectada nos outros, felizmente estamos já avisados, sabemos que não existe. Mas nos poetas acontece muito, o Pessoa então, «Ai se eu pudesse casar com a filha da minha mulher a dias». Sempre o outro como representação, encenação da felicidade. Essa busca de uma vida calma, contemplativa, às vezes assalta-me. Na altura era insólito, por ser muito novo e ter o mundo à minha disposição.
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Aos 22/23 anos vai para a Assírio como vendedor.
- É preciso dizer que a Assírio estava de pantanas. A Assírio foi fundada em 72, depois esteve uns anos sem publicar, mais tarde o Homero, produtor do Página Um, tinha lá um escritório e deu uma mão, mais duas pessoas que lá trabalhavam. Aquilo estava num regime de sobrevivência. Quando fui para lá, os livros editados não chegavam a dez. A Assírio vivia mais da distribuição do que da edição. É nesse contexto que entro, um pouco desinteressadamente.
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Já tinha acabado o curso?
- Já me tinha matriculado em Sociologia em Évora!, para ver as voltas da minha vida. Fui para a Assírio para a parte de vendas, mas ali todos faziam tudo. Sabe como é que se sobrevivia? Quantas vezes fazendo bancas, para sacar algum dinheiro. Estava mesmo na penúria, penúria. Fui-me mantendo por lá, acabei o curso de História.
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Vivia desse pequeno trabalho?
- Já tinha um outro numa agência que contratava artistas: os Genesis, os Procul Harum.
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Conheceu essa malta?
- Alguma, e outra que vinha para o Casino do Estoril, de românticos a stripers. Foi o meu primeiro trabalho, quem mo arranjou foi a Maria Leonor, da rádio.
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Na Assírio assume, em 78, a coordenação editorial. Imagino que tenha correspondido a um desejo de estabilidade que grassou por todo o país, passada a agitação política.
- E a tropa. Fui para a tropa depois de completar o curso. Tinha sido já refractário, devia ter ido para os Fuzileiros antes do 25 de Abril. Não fui e andei a monte.
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Em 78 assentou arraiais na Assírio. Deixou de ser o rapaz à descoberta do mundo?
- Continuei à descoberta. Ainda fui fazer vindimas a França. Andei sempre muito à solta, parecia que o mundo todo me sorria. Nestas viagens, sozinho, amadurecia muito, fermentava.
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Na base da mochila às costas?
- Era assim mesmo, sem saber onde ia ficar. Nunca fiquei na rua.
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O que é que queria da vida? Ou tratava-se de a ir descobrindo?
- Descobrindo. Mas sempre à espera, com a sensação de que a seguir é que era. A seguir, a seguir.
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Tinha desistido do sonho de ser poeta?
- Fartei-me de escrever. Tenho ali cadernos que nunca mais acabam. Depois começa-se a publicar tanta poesia tão boa… Não sei se é muito importante.
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Realmente?
- Ah, a vaidadezinha, não tenho muito essa vaidadezinha. A vaidadezinha que tenho é colectiva, por amigos. Às vezes apetece-me escrever, é uma necessidade interior, um imperativo. Na verdade, posso não escrever poesia, mas vivência poética acho que a tenho. Escrevo coisas incríveis. Só que não as escrevo. É como se as escrevesse, andam assim por dentro. Poemas feitos. Metê-los no papel? Brrr…
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O seu olhar é eminentemente poético, marcado pela vivência rural.
- E a visão desde a infância. Ver tudo, com muita atenção. Podia escrever um livro de memórias, relatando a vivência com uma gente de que pouco se sabe, das histórias que lhes ouvi.
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Portugal não tem tradição de livros de memórias. As biografias, noutros países, vendem-se como pão quente.
- Em Portugal as biografias não pegam, não sei dizer porquê. Eu gostava de fazer, sobretudo pela vivência forte que aí tive, humanamente. É quase uma dívida que queria saldar. Podia juntar a minha experiência no Alentejo. E a minha experiência enquanto editor; podia fazer um livro extraordinário sobre os poetas que conheci, não só os poetas que publiquei, mas todos os outros: o Manuel da Fonseca que ia tanta vez à Assírio, o Rui Cinati que ia diariamente à Assírio…
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As relações que a editora mantém com alguns poetas é mítica. É verdade que vão levar o almoço diariamente a casa do Cesariny?
- É. Mas não é preciso contar isso.
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O que me interessa é perceber a relação familiar que se estabelece entre si e alguns destes autores.
- Sim, são a minha família, não há nenhuma dúvida. Mas há outros, que nem sequer são da Assírio, com os quais tenho uma relação igualmente profunda. Caso do Eugénio de Andrade: falamos dia sim, dia não.
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Pensou muito neste projecto no último ano, desde que sabe da sua doença? Mesmo que trabalhe a partir de casa e vá à Assírio ocasionalmente, imagino que esteja mais recolhido em si e nas suas memórias.
- É verdade. Mas tanto penso em fazer isso, como logo a seguir penso em não fazer. Sou muito assim. Na minha vida as coisas quando têm de acontecer, acontecem. Não falo de um deixar-se reger, de um determinismo exterior à minha vontade; mas fui ganhando alguma sabedoria, percebendo que as coisas impõem-se.
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Prefere que as coisas lhe aconteçam?
- Sim. A minha vida é feita de acasos, de circunstâncias. Nunca forcei muito as coisas, nem as relações amorosas. Suponhamos que as coisas andam num caos e que tendem para uma harmonia. Se não as precipitarmos, elas tendem para uma pacificação. Tudo, tudo o que está no universo é assim. Se calhar é a lógica da vida toda.
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Poucas foram, então, as opções de vida tomadas de forma categórica.
- Sim. No trabalho, claro, é diferente.
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A propósito dessa vida que lhe acontece, como ficou, a páginas tantas, a relação com o divino?
- É uma relação harmoniosa, sempre foi. Tenho fé, tenho. Há a perplexidade que algumas coisas inevitavelmente nos suscitam; por outro lado, há ainda tanta coisa por conhecer que é uma arrogância julgar que já estamos no fim do processo. Só posso falar da experiência própria. Não posso falar a alguém do encantamento que me dá ver um melro ali à frente no ramo, ou de uma pequena flor que me enche completamente de vida. Então neste momento actual enche a sério. Como não podia, quando era mais novo, ler um poema às pessoas que me respondiam «Lá vem este com o poema, agora com esta merda».
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Harmoniosamente foi fazendo a síntese entre a sabedoria das pessoas e da terra.
- É a mais importante.
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E o saber livresco e o que deriva do contacto com outras pessoas. Foi este o seu labor.
- Aprendi muito vendo, vendo a natureza. Isto é uma escola permanente, é uma escola permanente. O grande problema é que está a morrer a nossa sensibilidade, a nossa disponibilidade. A relação com os outros está terrível. Esta coisa do novo-riquismo, esta ansiedade desenfreada que não leva absolutamente a nada. Um punhetaço, como dizem os espanhóis. Há uma coisa infernal que retira às pessoas a sua tranquilidade, a sua liberdade. E estamos a matar aquilo que, em putos, no tempo da festividade, do amor e tal, tínhamos como capital incrível, e que era o afecto.
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Na altura já sabia disso?
- «O nosso grande capital é o amor». Era a nossa grande riqueza, o que queríamos. Depois logo nos safávamos, íamos a França, enfim. Agora precisam de não sei quantos contos para ir para a estância de neve, mais não sei quê que só vai com determinadas condições. Estamos a perder a liberdade. Mais: a perdê-la sem ter consciência disso.
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Esse conforto material em que vive agora, esta sua casa tão simpática, a casa da aldeia…
- Mas eu posso viver em qualquer sítio. Se não fosse a Manuela a arranjar a casa, algum dia tinha isto? Não, não me mexe muito. Seria uma estupidez dizer que não gosto de ter um bom carro, em vez de ter um carro a abanar por todos os lados. Agora, que não signifique hipotecar a liberdade da pessoa. Se não puder ter, não há problema, até não há problema absolutamente nenhum.
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Estas coisas ficaram mais flagrantes para si porque as pessoas ficam sacudidas quando estão doentes?
- Não, absolutamente nada. Tinha consciência delas, mas andava tão alienado que me apetecia chegar aí, ligar a televisão e ver a bonecada porque me dava o sono. Neste momento sinto-me melhor fisicamente, por incrível que pareça. A minha cabeça parece que estourava, com milhões de preocupações, permanentemente tau-tau-tau. Não tinha paz. E sinto-me tranquilo.
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Sente? Não o invade uma angústia quanto ao futuro?
- Se morrer quero ir para a minha terra.
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Foi nisso que imediatamente pensou?
- Foi. Logo. E disse-o à Manuela. Às vezes, depois das quimios, vou-me um bocadinho mais abaixo, fico mais mole e psicologicamente fico mais afectado. Agora, como hoje me sinto… Fico aqui sentado a ver os melros, de que gosto muito, os pequenos rebentos das folhas.
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Porquê os melros?
- É um pássaro muito bonito, canta extraordinariamente bem. Quando tinha seis anos, havia uma japoneira ao pé da casa dos meus avós e cantava lá um melro ao amanhecer; contam que dizia: «Ó Vó, olha o que o melro está a dizer!, o que é que está a dizer?, queres comer, queres comida?». Era eu que estava com fome.
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Teve um encontro, com um livro ou poema, que tivesse sido determinante na sua relação com a literatura?
- Quando comecei a sentir a poesia a sério, assim poesia de estremeção, foi nos Simbolistas, Gomes Leal e Camilo Pessanha. Sobretudo Pessanha, a gente dizia: «O que é isto?»
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Que verso ou poema traduziria a essência de si e que escolheria para seu epitáfio?
- Ah, não sei. Tenho muitas dúvidas sobre mim, não pense que não. Muitas convulsões, muitas dúvidas. Sou um toiro. Agora estou partido. Quem é que me domava? Nem eu. Energia. Alegria. Era capaz de levar uma multidão. Era uma coisa genésica e telúrica. Ao mesmo tempo, tenho uma dose de feminilidade forte, que não enjeito. A mulher herdou uma sabedoria de muitos séculos, de velha aranha que sabe esperar, perceber o silêncio. Os homens são tipos de uma ingenuidade total, de uma generosidade inexcedível, só qualidades; e depois há qualquer coisa de bruto, de guerreiro, de incapacidade de crescimento.
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Que conversas tem com o seu pai e com a sua mãe?
- Ao meu pai gosto muito de o abraçar, estamos sempre agarrados um ao outro, «Então a poda já está feita?», «Está quase», e tal. Com a minha mãe falo das coisas da casa, das minhas irmãs, deito água na fervura. E é assim.
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As partes mais íntimas de si ficam para quem?
- São coisas que a gente digere em nós, não é? Nunca matei ninguém, não tenho nada que me atormente. (pausa) Precisávamos de ter várias vidas, não é?, para acertar com uma. Esta é muito pequena. Mesmo que a tenha vivido intensamente. Morrendo brevemente, já ganhei muita coisa. Claro que gostava de mais, de fazer isto e aquilo; mas por outro lado, mesmo 100 anos não é nada, 200 também não. Estou habituado a ver a biografia de escritores… Isso passa tudo. É uma lucidez que convém ter afinada. Sempre a tive, não é de agora. Pelo contrário, agora tenho mais ganas de viver. Mas sempre percebi o quão relativo isto era: 90 anos, 100 anos, 200 anos. Não se dá conta; julga-se que quando se for mais velho se vai saber mais e também não se sabe nada.
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Que idade tem?
- 48.

13.8.10

“Foi justamente nesses dias que Drogo se apercebeu de como os homens, por muito que se estimem, permanecem sempre distantes; de que se alguém sofre, o sofrimento é unicamente seu, ninguém pode chamar a si uma pequena parte dele; de que se alguém sofre, lá por causa disso os outros não sentem nenhuma dor, mesmo que o amor que os une seja grande; e isso é a causa da solidão da vida.”
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[Dino Buzzati, in O Deserto dos Tártaros, Cavalo de Ferro, 2005]

6.8.10

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Abel Pereira da Fonseca, 1929
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Passa depressa, pequena,
com as bordas da boca sujas de chocolate
e com um pouco de esperma
nas outras que à cona pertencem.
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Eu sei agora o que é ter nas mãos
um corpo de noventa e um anos,
desnudo, flácido e incapaz. É o corpo
que hás-de ter, moça luxuriante
- se não morreres entretanto, que é como sabes
Uma das inúteis hipóteses do teu destino absurdo,
Embora comas chocolates que te adoçam a boca
Mas menos a vida. O teu prezado clítoris
há-de um dia causar repúdio até a esses cães
que com tanto nojo afastaste.
O amor não interessa – porque passa.
E assim todas as coisas. Repara
como são incisivos os tonéis, pedindo-nos
o desespero, a lamúria fácil, o gesto
imperfeito (eu bebo dos tintos, se alguém
se vier a interessar pela minha biografia).
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Acabemo-nos já, como findam solenes
e contudo grosseiros o chocolate e o esperma
que em breve esqueceremos. É como te digo,
possuído por este vinho cruel que nenhum deus
me obrigou a beber e que por isso bebo:
passa depressa, pequena, e não cuides
que o amor é o nome de um bálsamo
ou uma flor para ti. E porquê para ti?
O teu destino foi corrompido
antes mesmo de nasceres, ainda que não o saibas.
Acautela-te da hérnia que te há-se ternamente
explodir, bem como do fluxo hemorroidal
que tanto te desfeará a rósea carne possessa.
Um cancro do pâncreas vale mais do que qualquer
axioma, mas não deixes de viver por causa disso.
A própria metafísica serve quando muito
para nela limparmos o cu.
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Passa apenas, minha pobre pequena
- e ensina-me se puderes
a passar eu também
ao encontro da minha morte.
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[Manuel de Freitas, in Os Infernos Artificiais, frenesi, 2001]

5.8.10

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[Brassaï, Arbres sur les quais, 1935]