31.10.07

A Guerra

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Depois de ver três episódios d’ A Guerra, de Joaquim Furtado (todas as terças-feiras na RTP1, a seguir ao Telejornal), parece-me claro que estamos perante um documento de invulgar qualidade, sem dúvida a melhor coisa que a RTP nos deu nos últimos tempos.
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A série terá no total 18 episódios – mais 6 ainda este ano e os restantes em 2008 – e é de louvar que esteja a passar em horário nobre.

30.10.07

dinheiro, família e igreja

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"Mais do que conduzirem a uma reflexão crítica sobre o estado da escola pública, os supostos rankings escolares que alguns jornais e TVs tanto gostam de mostrar, parecem um exercício de descarado classismo. As melhores notas obtêm-se nas escolas mais caras e mais selectivas socialmente. Obrigado pela informação. Assim os pais dos miúdos que andam nas outras escolas todas ficam a saber que com dinheiro, família e igreja o sucesso é garantido." [...] "A obsessão de alguma media com os rankings vai sempre junto com editoriais sobre a liberdade de escolha das escolas, sobre a definição local de programas, sobre os cheques-escola, sobre a liberdade de educação e por aí fora. Trata-se, simplesmente, de criar o clima social para a conquista de um dos últimos mercados a retirar à coisa pública. O motivo ulterior é a evangelização mercantil."
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[Miguel Vale de Almeida em post n'Os Tempos Que Correm]

God Save the Queen

Anarchy in the UK

29.10.07

30 Anos

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26.10.07

O velho bairro das Picoas

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Jorge Silva Melo em 1968

O PEQUENO CAFÉ ANTIQUADO
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Era um bairro de enormes apartamentos sombrios, explicações de Latim, intermináveis corredores, quartos interiores, altos andares sem elevador, árvores nalgumas ruas, muitos automóveis sempre, prostituição masculina na escada do centro comercial que foi, durante uns tempos, o mais elegante, o das prendas de Natal para a mãe, restaurantes pesados, com aqueles pernil de porco e feijoada à transmontana que fizeram os almoços de domingo; eram as Picoas.
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E sempre que por lá passo, vejo as melancólicas personagens de Maria Judite de Carvalho, mulheres inquietas regressando à sombra das suas casas, aos braços de improváveis maridos, costureiras, modistas, gente remediada ou burguesas em desequilíbrio, mulheres que foram à Baixa de autocarro e regressaram com umas compras que eram feitas na antiga Jerónimo Martins ou nas capelistas da Rua de São Nicolau, vejo-as ainda, nem tão velhas como isso, abrindo esta manhã o chapéu de chuva, que o tempo mudou. Vejo-as e vejo os maridos janotas regressando de empregos e das amantes aos fins de tarde burgueses, indo e vindo da Linha do Estoril de todos os perfumes.
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Por isso estranho estas ruas arremelgadas que agora atravesso a pé, ruas de nomes inseguros – Viriato, Tomás Ribeiro, Filipe Folque, Luís Bívar, qual delas é? perguntamos sempre – por onde tantos anos passei da adolescência e juventude, lendo e voltando das sessões de cinema do Monumental ou de teatros no Villaret, às vezes com o “Nouvel Observateur” debaixo do braço, que às quintas-feiras comprava no quiosque do Monte-Carlo, às vezes com amigos de faculdade, de liceu, gente do contra conspirando pelas esquinas da Maternidade Alfredo da Costa.
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Só há poucos meses entrei na Casa Museu Anastácio Gonçalves, a linda moradia de Norte Júnior, ali especada e rasgada pela bela janela que foi o ateliê de Malhoa. E gostei da exposição que lá estava, João Vaz, paisagista com algum mistério, gostei da casa, recôndita, secreta, vida de tantos tempos, tantos convívios, sobrevivente já antes de mim, aquela sua pompa ingénua fez-me sorrir.
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Ainda lá estarão, nalguns andares mais altos, os escuros quartos de velhas senhoras, que ainda pensam que o mundo gira à volta da chícara de chá pelas cinco da tarde e a cançoneta de crooner, gente esquecida em andares com pouca electricidade, ainda lá estarão os botões por colocar, a farda da criada por revirar, um romance francês, um Simenon em português, umas fotografias de casamentos ou de viagens a Espanha, talvez misturadas, agora, com revistas espanholas das que contam o nascimento da Infanta, como antes terá existido o “Paris-Match”. Mas será nos andares de cima, os esquecidos. Tudo o mais, neste bairro encafuado entre o Corte Inglês e o Saldanha de todos os feíssimos vidros novo-ricos, se remoçou, hotéis, escritórios, vidro aqui, prédio de serviços ali, lojas de xispêtêo, gourmets, coisas dessas que passam por ser cidade e mais aqueles prédios que se chamam Plaza e que costumam ficar em arrabaldes, cidades-satélite de Paris, por exemplo, e aqui contaminam o centro histórico, ai a destruição.
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Mas há gente por todo o lado nesta manhã fria, gente que conversa sobre horários, regalias, idas a despacho, sentenças, faltas, atrasos ao serviço, um bulício imenso de gente suburbana entre o croissant e o emprego, tanto guardanapo de papel envolvendo os bolos, conversando interminavelmente, entrando e saindo destes prédios rejuvenescidos, empinocados, janotas. E os passeios são estreitos para tanta gente, a conversa tem de subir de tom quando três pessoas vão ao lado, os papéis caem das pastas (compradas nos chineses) para a valeta encharcada. Estou no futuro, não me reconheço, manhã atravancada e polida nestes cafés abrilhantados, nestes locais de gente que não sei quem é nem saberei, gente agitada e tagarela.
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Recolhe-me a um café antigo, pequeno, de que me lembro das excelentes tranças, café que foi em frente de um andar onde viveu durante anos o José Mário Branco, café onde tantas vezes conversei com o Paulo Rocha, que vivia ao virar da esquina, café dos anos 70, pequenino, bom, nada bonito, de já velhos empregados atenciosos. E ouço, vinda de outra mesa, uma voz que reconheço, vinda do fim do tempo, voz de uma professora que tive na Faculdade, a Maria Elena Mira Meteus, e que, mesmo agora, reformada, guardou o seu tom de menina. Queria uma meia de leite, eram nove da manhã e ia para o cabeleireiro, sorriu ao ver-me, beijámo-nos à despedida, ainda rimos de estarmos vivos.
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E olha que o velho bairro das Picoas renasceu com a conversa com esta professora que, de vez em quando, cruzo. Voltou-me lentamente a antiga ida à leitaria, o livro lido ao pequeno-almoço, o modesto passar das horas corrigindo provas e teimando em ensinar, voltou-me o tempo da minha juventude, aquele bairro insólito voltou a ser meu. Mesmo sem a galeria que ali havia, a Quadrante, onde pela primeira vez expôs o Eduardo Batarda, onde vi os primeiros trabalhos de Ana Vieira, mesmo sem os locais por onde anda a sombra da conspiração dos anos 60, a sombra inquieta da gente do cinema dos anos 90 agrupando-se à volta do Paulo Rocha, tirando fotocópias, enviando protestos até às tantas, mesmo com tanta gente que por ali anda como se fosse noutra cidade, noutro país, senti-me em casa, voltei para dentro de mim.
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Fui à reunião matinal que tinha e voltei, passada uma hora, ao mesmo cafezinho com forte cheiro a farinha, manteiga e forno. E na mesma mesa onde estivera a professora que evocou comigo os tempos de faculdade, estava agora, folheando o jornal, um outro amigo meu de outros tempos (ou semi-amigo, pois nem íntimos somos, nem telefones trocámos), homem que admiro e sempre leio, intelectual, homem de acções e paradoxos vários, homem inteligente e afável, o Manuel Lucena. E com ele voltei a falar, a conversar, que bom encontrar gente de amanhã, ampara a vida.
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O dia vai indo e a vida entregou-se-me.
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[Jorge Silva Melo, in Século Passado, Cotovia, 2007]

25.10.07

“Considero-me um homem culto”


Foi este o homem que Cavaco Silva entendeu ter o perfil adequado para Secretário de Estado da Cultura:

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K: Porque é que está sempre calado ao pé do Primeiro-Ministro? Porque é que quando foi para o Parlamento Europeu estava sempre calado, com ar de menino bem comportado atrás do professor Cavaco Silva? Porque é que quando está o Primeiro-Ministro se cala, sendo o Secretário de Estado da Cultura? Porque é que deixou, porque é que admitiu que fosse o Primeiro-Ministro a dizer aquelas coisas no Dia do Teatro? E porque é que não nos disse o que pensa, porque é que não falou para nós? Não sabemos nada do que é que pensa! Percebe? Não o conhecemos de parte nenhuma. O senhor não faz parte do nosso universo. Caiu, apareceu-nos aqui e ficámos todos, quer no teatro quer nas outras áreas, a dizer “mas o que é isto que agora nos apareceu?” E pronto. Tem 33 anos, não é nenhum velhadas horroroso, tem até bom aspecto, já é bom ...
P.S.L. Mas não pertenço ao universo ...
K: Não. Não tem nada a ver connosco.
P.S.L. Em relação a pertencer ao uni­verso, eu isso já tive a oportunidade de conferir e estudar... Nenhum dos meus colegas da cultura, nas Comunidades Europeias ... Eu não sou sempre uno, per­tenço ao que chama o universo ...
K: Mas não me respondeu: como é que caiu aqui?
P.S.L. Não sei, não é cair: foi o Primeiro­-Ministro que se lembrou, que me convi­dou. E eu devo dizer: a cultura ... Vamos lá ver. .. aliás o doutor Lucas Pires, na sua opinião um Ministro da Cultura exce­lente ...
K: Na minha opinião.
P.S.L. Pronto, na sua opinião. Ele é originário até das mesmas áreas do que eu; é um homem da Universidade, da Faculdade de Direito, da ciência política exactamente de onde eu sou.
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K: Acha que tem vocação para ser Secretário de Estado da Cultura?
P.S.L. Acho... acho. Acho que um político não deve pensar que é capaz de executar todo e qualquer cargo, embora eu entenda a política ou tenha uma visão que muitas vezes os inte­lectuais não gostam. Eu julgo que um político tem de ser alguém com uma formação razoá­vel ... uma formação e informação razoável e, depois deve ter uma capacidade de decisão e sentido político.
K: Acha que é um homem culto?
P.S.L. Considero-me um homem culto. Não... não... enfim. Não vou repetir afirmações incor­rectas que algumas pessoas fizeram quando eu tomei posse, mas não me considero um intelectual, nem o pretendo ser. Ainda no outro dia dizia por graça ao Primeiro-Ministro, “Não pense que me tornei num intelectual que nunca fui”. E ele olhou para mim com uma cara tipo “Agora, também este!”... Mas enfim... é o lugar que eu mais gostei de ocupar até hoje. É um lugar fascinante.
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P.S.L. […] O meu amigo Marcelo Rebelo de Sousa punha-me constantemente na Olá! Então, as pessoas tinham a ideia que eu adorava festas sociais, que adorava jantares, cocktails ou recepções, que é uma coisa a que vou tão pouco quanto possível. Gosto muito de dançar e gosto muito da noite. Gosto imenso de estar acordado quando ninguém está. De andar em Lisboa, quando Lisboa está a dormir.

[excertos de uma entrevista de Pedro Santana Lopes a Graça Lobo, Kapa nº 1, Outubro de 1990]

24.10.07

Livros em Desassossego

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Recomeça hoje a nova temporada de Livros em Desassossego, na Casa Fernando Pessoa. O tema de hoje é “Concentração Editorial: Perigos e Vantagens” e vão estar presentes João Amaral (do novo grupo de Paes do Amaral), António Lobato Faria (da Oficina do Livro), João Rodrigues (da Sextante) e Francisco Vale (da Relógio D’Água). Vai estar também Inês Pedrosa, a apresentar um novo romance. A moderação, como de costume, é de Carlos Vaz Marques.
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Vamos ter portanto “editores independentes” versus “grandes grupos editoriais” a discutir um tema muito relevante. Portugal tem assistido nos últimos tempos a uma preocupante concentração de editoras, o que não augura nada de bom.

23.10.07

A disneylandização da cidade

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“A Zara de um lado e a sueca H&M disputam o mercado do giro-para-esta-semana, a Fnac vende livros que sei lá, agências de viagens prometem Cuba sem que se veja comunismo, a velha fábrica de mostarda também vende massa para cozer num minuto, as pizzarias sucedem-se, Massimo Dutti aqui, Springfield ali.
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Limpa, esta cidade esqueceu. Não o século XIV que continua a cobrar, renovadinho, para reformados, nem o século XVII, que especula no imobiliário. Mas esqueceu a sua vida, os seus amores e crimes, o bulício; as suas nódoas foram desinfectadas, espurgadas, rasuradas. Ouve-se Nelly Furtado pela rua. Uma mansa (violenta porque mansa) disneylandização rasurou a cidade para vender aos turistas que lá vão, hora a hora, do Van Eyck à Pizza Hut.
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Também quando, no outro dia, disse ao Miguel Borges: “encontramo-nos na esquina do Condes”, ele olhou para mim, olhou e disse “Onde?” como se eu fosse marciano.
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E é isso mesmo: fiquei marciano.
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É que também a “minha cidade” (a da esquina do Condes, do Monte-Carlo, do Monumental) já naufragou.”
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[Jorge Silva Melo, in Século Passado, Cotovia, 2007]

22.10.07

Século Passado

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Século Passado, de Jorge Silva Melo é um livro excelente. Sendo constituído por textos que JSM foi escrevendo, a maioria para o Mil Folhas (suplemento do Público) mas também para o Público propriamente dito, para o Magazine Artes, para o Jornal de Letras, para a Epicur, entre outras publicações, acaba por funcionar no seu conjunto como uma espécie de livro de memórias. Memórias de uma geração e da sua Lisboa, dos seus filmes, dos seus livros, da sua política, das suas pessoas, enfim da sua cultura em sentido lato.
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Temos assim abundantes referências a pessoas como Glicínia Quartim, Mário Dionísio, Sophia de Mello Breyner, Miguel Lobo Antunes, Álvaro Lapa, Isabel de Castro ou Eduarda Dionísio; livros de Elio Vittorini, José Rodrigues Miguéis, Augusto Abelaira, Cesare Pavese ou Armando Silva Carvalho; filmes de Jacques Tati, John Ford, Raoul Walsh, Paulo Rocha, João César Monteiro ou Hitchcock; cidades como Madrid, Paris, Milão ou Berlim.
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E depois há essa Lisboa de outros tempos, vista com imensa nostalgia: os bairros das Picoas ou das Amoreiras, a Rua da Artilharia Um, os velhos cinemas desaparecidos (Lys, Rex, Royal, Tivoli, Éden, Monumental, São Jorge), os cafés, como o Monte-Carlo, o Liceu Camões ou a Livraria/Galeria 111.
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A edição é da Cotovia, lindíssima, de capa dura e com uma série de fotografias, embora com um preço pouco convidativo.

19.10.07

“Vivo em Lisboa, cidade em que cresci. E todos os dias cruzo lugares da minha infância, sítios onde encontrei não sei quem. Ter uma pátria deverá ser isso: uma terra a que se sobrepõem imagens com os anos que passam, uma cidade palimpsesto da nossa memória. Ter pátria há-de ser isso: ter uma infância.”
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[Jorge Silva Melo, in Século Passado, Cotovia, 2007]
“Entristecem-me as traduções que vejo saírem, livros de nostalgia para gente que bebe chá, Edith Wharton, Evelyn Waugh.”
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[Jorge Silva Melo, in Século Passado, Cotovia, 2007]
“Ideia para uma editora: um roteiro dos locais onde se conspirou, se juntou gente, trabalhou, se sentou, transitou, a Graça dos anos 20, a Alcântara do pé descalço. E um livro sobre o que veio depois, nos anos depois do Delgado, as vidas cruzando-se na cidade mais nova, o Tatu dos associativos, a Suprema dos Pêcês, a 111, a Barata onde se comprava Mao Tsé Tung, o Imperial dos cineclubes finais, tantas discussões sobre a fundação do cinema mais os filmes possíveis, os de Dino Risi, não apenas as prisões, não apenas as torturas, mas os sonhos, as ideias, separações, os abraços, que andam a pairar sem nome sobre mim, as traições também – e as mentiras.”
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[Jorge Silva Melo, in Século Passado, Cotovia, 2007]

18.10.07


[Fernando Lemos, Rua do Sol ao Rato]

17.10.07

Jorge Silva Melo e João Bénard da Costa no Chiado

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Jorge Silva Melo e João Bénard da Costa vão hoje falar sobre os seus recentes Século Passado (Cotovia) e Os Filmes da Minha Vida Vol. 2 (Assírio & Alvim), respectivamente. Vai ser na iniciativa “5 Livros, 5 Autores”, inserida na “Festa no Chiado”, e começa às 19h no Grémio Literário (Rua Ivens, nº 37).

16.10.07

Pó dos Livros

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Um dos problemas do mercado português do livro tem a ver com a elevada concentração de vendas em apenas duas cadeias: FNAC e Bertrand. Se lhes juntarmos os hipermercados, muito pouco resta para as livrarias independentes. Estas são constituídas por um lado por livrarias clássicas, digamos assim, que eram a referência antes desta situação (por ex. a Bucholz ou a Barata) e por um outro tipo de livrarias, que podemos designar como “alternativas”, como a Ler Devagar ou a Letra Livre.
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Isto vem a propósito da inauguração recente se uma livraria, a Pó dos Livros, que fica na Av. Marquês de Tomar, nº 89, e que tem características pouco vulgares no nosso país. É uma pequena livraria que evita a última novidade light e aposta em fundos editoriais (encontrei algumas coisas curiosas) e num excelente atendimento. Tem um ambiente moderno e sofisticado, com uma decoração quase totalmente preta, e uma pequena cafetaria.
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Esperemos que tenha sucesso, a excessiva concentração económica no mundo do livro (e não só, claro) não é saudável, basta ver o caso recente da Bertrand, com as exigências absurdas que tem vindo a fazer aos editores.

Fátima

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"Fátima é um embuste, uma alucinação de miúdos impressionáveis que a Igreja aproveitou para circunscrever, à distância, o perigo vermelho que começava a emanar da velha Rússia. Tudo o resto é esperteza saloia (os três segredos), crendice de raízes pagãs e retórica reaccionária urdida pelo lado mais obscuro da hierarquia católica. Terceiro-mundista, anacrónica, parola, com as suas lojas de pechisbeque e néon, atafulhadas de Cristos em holograma e Nossas Senhoras que mudam de cor com a humidade, Fátima continua a atrair magotes de gente? É verdade. Como há magotes de gente a estupidificar-se ao domingo nos centros comerciais e a dar maiorias absolutas a Alberto João Jardim."
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[José Mário Silva, em post para a grande gala "Azinheira Spoken Word", excelente iniciativa do Irmão Lúcia]

15.10.07

Tomai lá do O'Neill

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A não perder hoje, às 23.40, na RTP2, logo a seguir aos Sopranos, Tomai lá do O'Neill, documentário de Fernando Lopes sobre Alexandre O'Neill.

12.10.07

Boa pergunta

"porque não sobrevive nenhum jornal de esquerda em Portugal e há vários de direita, quando pelo menos metade dos portugueses e dos leitores são de esquerda?"
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[Daniel Oliveira, no Arrastão]

11.10.07

Prémio Nobel da Literatura 2007

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Doris Lessing

Dennis McShade

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O Que Diz Molero não foi o primeiro livro de Dinis Machado. Antes, já tinha escrito três policiais com o pseudónimo de Dennis McShade. Dinis Machado estava à frente da colecção de policiais Rififi, da editora Ibis, e propôs ao seu editor a escrita de três livros. Resultaram daqui Mão Direita do Diabo, publicado em 1967, Requiem por D. Quixote (1968) e Mulher e Arma com Guitarra Espanhola (1968).
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Em Mão Direita do Diabo (único que li) acompanhamos Peter Maynard, assassino profissional, num policial bastante original, passado em várias cidades norte-americanas.
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Infelizmente, só em alfarrabistas é possível encontrar estes livros e mesmo assim com dificuldade. No ano em que se comemoram os 30 anos de O Que Diz Molero alguma editora podia aproveitar a embalagem e reeditar estes três. Ainda por cima o primeiro até comemora uns “redondos” 40 anos de aniversário.

10.10.07

O Que Diz Molero (4)

Na entrevista a João Pedro George, que já referi a propósito do Café Gelo, Luiz Pacheco fala-nos sobre a sua contribuição para o sucesso de O Que Diz Molero:
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JPG - O Luiz foi um dos grandes responsáveis pelo sucesso de O Que Diz Molero. Como é isso se passou?
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LP - Eu estava em Massamá e tive a informação de que a Bertrand me queria editar a Obra Completa. Um dia fui à Bertrand, na Venda Nova, e encontrei o Dinis Machado, que foi gentilíssimo comigo e com o Paulo... encheu-o de álbuns, papel, livros... e deu-me as provas do Molero – portanto a minha crítica saiu no Diário Popular antes do livro estar à venda. No dia seguinte comecei a ler aquela merda, aquilo são dois gajos a discutir, e eu disse ao gajo onde estava o meu filho Paulo, o Henrique Garcia Pereira: “opá, eu estou fodido com este gajo, este gajo foi tão simpático comigo e com o meu filho, deu-me tanta merda, e agora isto é uma porcaria, não se percebe nada”. Até que de repente entrei na cegada da cena de porrada com os camones no Bairro Alto... aquilo tinha uma coisa, é que era um livro que já não era escrito com medo da censura, via-se que havia ali... o gajo não era nenhum novato, já tinha escrito 3 romances policiais... havia ali de repente uma força, porque estes gajos se tivessem um bocadinho de vergonha não publicavam os livros que publicaram durante o fascismo… bom, então escrevi o artigo “Descobri um Autor”. Só na semana seguinte é que o Molero saiu à venda. Estava na feira do livro e apareceu-me o Afonso Praça: “olha, comprei aquela coisa do Molero por causa da tua crítica, opá julguei que estavas a gozar, mas tinhas razão, aquilo é muito giro…” Depois disse muito mal do Reduto quase final, numa entrevista ao B.B. Um gajo também não escreve só obras-primas, há altos e baixos... Se um gajo vai a facilitar, a não pensar, se o gajo não é o leitor mais exigente de si mesmo, está fodido, tem a classificação que merece. Eu de facto não descobri autor nenhum, descobri um livro giro…

9.10.07

"um livro-bomba, uma obra d'arromba"

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Luiz Pacheco foi um dos primeiros a reparar em O Que Diz Molero e teve a sua quota-parte de responsabilidade no sucesso que se seguiu, depois de ter escrito este texto para o Diário de Noticias de 5 de Maio de 77, que fui buscar aos seus Textos de Guerrilha 2 (Ler, 1981):
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DESCOBRI UM AUTOR
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Um livro-bomba. Uma obra referenciada para gente nova. Contém cenas eventualmente chocantes aos literatos da nossa praça e já está. Não recomendável a ceguetas, que cinema («o cinema é um álbum, o mais fabuloso e embriagador dos álbuns imaginários», afirma o guarda da última fronteira) e banda desenhada (álbum ou folhetim semanal também fabuloso e embriagador, afirmo agora eu) passeiam-se muito pelas suas páginas. O Gaspar Simões não vai gostar (excelente coisa!). A malta vai (excelentíssima coisa!).

Podiam ser frases publicitárias. Quem ler «O QUE DIZ MOLERO», de Dinis Machado (Bertrand), por ruas e montras e olhos ávidos de maravilhados ou espavoridos leitores nos próximos dias, confirmará que não: é que é mesmo assim, como eu digo.

Fiquei banzado. Para já, para já, não julgava poder haver disto em português tão cedo. A livralhada de minha lavra envelheceu vinte anos a partir de hoje. Não faz mal. Faço 52 no sábado, se lá chegar, é tempo de reforma. Vou-me dedicar à pesca (de dólares, de marcos, como o nosso Primeiro), vou deixar a Associação Portuguesa de Escritores (é o deixas!, eu cá sei as linhas com que me coso) e ingressar no Mercado Comum dos Cravas. Felizmente não sou invejoso, cada um, cada geração cumpre a sua rábula e passa o facho. É a Lei.

Trouxe da minha experiência de editor o arrepio que é deparar-se-nos, de um autor desconhecido, de quem nada sabíamos ou lêramos, obra original, íssima, íssima, e autêntica (que agora aqui invejo é a Bertrand). Isto me dá, como leitor ou crítico (e o crítico que será senão um leitor especial, obrigado a botar sua opinião em público?) ou, até, escriba, uma real disponibilidade de captação de entusiasmo sincero e barulhento (começo a ferver, a explodir alegria) perante o novo (cf. o frisson nouveau causado pelo Baudelaire). Meus colegas de escrita, muitos e entre eles os mais celebrados da Hora, os vejo, os percebo, mordendo-se pelas costas, disputando-se editores e clientela, numa ciumeira pegada. Nunca me deu prá-i. Quando embirro com um escritor é porque ele escreve mal e me fez perder tempo, e havia tanta obra-prima que não li e já não vou ler. Chatos duma figa!

«O QUE DIZ MOLERO»: à abertura, comecei a ficar muito arreliado. «Mas que raio é isto?! Uma conversa entre um tal Austin e um Mister DeLuxe e logo a seguir uns burriés colados à parede para secar… mau, mau. Temos estopada.» Mas segui viagem, página a página. E comecei a ficar contagiado, envolvido. Daí em diante, uma cavalgada furiosa de episódios, uma feira, um tropel de gente, uma festa popular de malucos e malucas, tudo chalado, uma alegria enorme quase insensata o sintimento nos momentos doloridos (ex.: a morte e o funeral de César), mas tudo tão perto de nós e tão naturalmente reproduzido na escrita.

Não tenho a mínima pretensão de sequer revelar, no pouco espaço que me é concedido, uma breve ideia do que seja «O QUE DIZ MOLERO». É este excessivo para se reduzir. Deturpava, por certo. Assim, e muito esquematicamente, irei limitar-me ao que me parece ali mais relevante.

A cena de pancadaria entre o Ângelo, «danado para a porrada», e os camones (e já antes com os ciganos) que provocavam girls naquele bairro pobre e a ressaca do festival de mocada que o Ângelo lhes proporcionou é, pelo movimento, pelo achado dos detalhes, pela embalagem descabelada mas a rigor, um morceau de bravoure, que ficará (para mim não restam dúvidas) como das coisas mais bem conseguidas da nossa literatura. É humor, é violência álacre, é cinema escrito, recorda-me, superando-o, uma cena de um romance de Beckett («Murphy»? «Molloy»? Tive os livros, tive de os vender (comer), não consigo localizar a cena. É uma zaragata entre bêbados, jogando a pontapés um saco de cinzas de um amigo morto. O leitor que ajude. Diga para cá onde é) – não estou a exagerar.

Também na parte imaginária do livro há umas páginas (162-166) um pouco forçadas ou esforçadas no tom (mas não será propositado?), pois já li daquilo não sei onde (ou saberei?), o texto que o rapaz entrega, no Tibete, ao dono da loja de ferragens, por sinal dono do único cão azul conhecido na região, é agora em lírico, dos mais belos do volume. Não esqueço, claro, os poemas que nele se entroncam e o trecho (págs. 65-66) aliciante de imagens e de contenção comovente, outro ponto alto do relatório de Molero.

Uma teoria que me ocorreu, e não posso aqui desenvolver, é se Dinis Machado não usou, entre outras, uma finta: dos quatro protagonistas, o rapaz que apenas conhecemos pelo que diz Molero, e já interpretado por este nas suas divagações e comentários; o rapaz, de que nem o nome ficamos a saber e se some, desaparece no ar como o Mandrake, voilá Molero, que é por sua vez explicado, traduzido, por Austin que transmite a Mister DeLuxe, o qual, hierarquicamente superior e filosofante, extrai sempre uma conclusão teórica, uma síntese ideológica, desse contraponto surgiu-me a suspeita de que a osmose dos quatro era mais perfeita daquilo que se nos apresenta. Que eram um em quatro, e os quatro quase heterónimos do Autor, cúpula mal escondida nos bastidores da intriga («tudo o que criamos é apenas o que somos», está lá escarrapachado).

Um breve senão: a meu entender, o A. Fornece em demasia pistas escusadas. As referências a Pessoa, Pessanha, Breton, Beckett, etc., se podem ser muito do agrado de literatos enfadam o leitor medianamente informado. Eu já tinha detectado aquele quarteto, e mais: um que Dinis Machado não cita, parece-me, e muito injustamente: o Almada do «Nome de Guerra» e ainda mais o Almada da «Engomadeira», que – baba-te, Dinis Machado! – é texto que «O QUE DIZ MOLERO» por assim dizer continua, saltando por cima de meio século de literatura parva, imitada, gaga prosa que se retrogradou ao Júlio Diniz e parece filha de «O Feliz Independente»… Também o Cesariny de «Corpo Visível» ou do «Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos» por ali corre.

Outro: as mui discretas, quase sumidas no contexto, alusões à situação política nacional, num momento particularmente crítico (a acção decorre durante a Segunda Guerra Mundial e seu termo). O herói positivo seria apenas o Bigodes Piaçaba, «que era contra o Governo». Tão-pouco se acredite, apesar da discrição, na indiferença ou inocência da obra; pois num comentário de Mister DeLuxe se pode ler esta carapuça, a enfiar sem disfarces nos nossos políticos pluralistas (e outros, mais à direita): «é óbvio que a autoridade dos líderes assenta quase sempre sobre autênticas puerilidades.» Valeu!

Repito e finalizo: um livro-bomba, uma obra d’arromba.

8.10.07

O Que Diz Molero (2)

“Chegou uma esquadra”, disse Austin, “e aqueles a quem chamavam os camones invadiram a cidade, tingindo-a com a brancura das suas fardas. Meia dúzia deles enfiou pela rua acima, passou pelos Vai ou Racha, estes cuspiram para o chão em sinal de desprezo, o Zuca foi atrás deles de braço estendido, esfregando o dedo polegar no indicador, eh, camone, money, money, um camone atirou um monte de moedas ao ar e a miudagem lutou bravamente para apanhar o dinheiro”. “essas excursões a bairros desconhecidos desvendam mundos novos”, interrompeu Mister DeLuxe. “fiz duas ou três desse género e tirei excelentes fotografias”.Austin sorriu. “bem”, disse ele, “os camones continuaram a subir a rua, pararam junto ao Ângelo, que estava sentado no seu banco de madeira a experimentar a harmónica, um deles aproximou-se e disse girls, e fez com o braço o movimento respectivo, we want girls, o Ângelo disse girl é a tua mãezinha, estás a perceber ou precisas de explicador?, sim, a tua mãezinha, o camone riu-se para os outros, um deles avançou e fez uma espécie de passe à Fred Astaire, conta quem sabe, e de repente o Ângelo já tinha guardado os óculos e a harmónica no bolso, começou a despachar os camones, enfiou um pela loja de móveis do Ventura, outro foi cair numa das cadeiras da Barbearia Hollywood, exactamente em cima do Pimentel, que estava a ser escanhoado pelo Joaquim Navalhinhas, um terceiro mergulhou no tanque de roupa da Miquelina Fortes, outro ainda foi também remetido para a loja do Ventura, encontrou o primeiro no caminho, vinha de regresso, e estatelaram-se os dois numa cama de casal, o Ângelo com os pés, com as mãos, com a cabeça, vai disto, os camones enfiavam por tudo quanto era porta, positivamente distribuídos ao domicílio, o Zuca diria mais tarde que Ricardito entre Chamas e Bandidos, a sua fita número um, ao pé daquilo não era nada. A certa altura, com os camones, estoicos a irem e a virem, os Vai ou Racha começaram a subir a rua, meteram-se no vespeiro, foi o Pé de Cabra que disse chegou a hora, o Padeirinha ouviu a frase histórica e havia de transmiti-la mais tarde, nunca se chegou a saber a que hora se referia ele, também não se chegou a saber se tencionavam ajudar o Ângelo que de resto, segundo Molero, conta quem sabe, se havia alguma coisa de que ele precisasse não era com certeza de ajuda, ou ajudar os camones, ou apartá-los, simplesmente o Ângelo começou também a despachar os Vai ou Racha, o Gil Penteadinho deu duas voltas no ar e foi aterrar na carroça das couves do Hipólito, o Tonecas Arenas ficou sentado no primeiro andar do andaime de um prédio que estava a ser pintado, entornando uma lata de tinta cor de rosa sobre o príncipe-de-gales novo do Joca Farpelas , isto depois de passar pela banca de peixe do Zeca Trampa, espadanando carapaus e lulas por todos os lados, o sombrero, esse, voou e entrou pela janela do segundo andar da Dona Ermelinda, o Bexigas Doidas, que quase tinha sido atado pelo Ângelo a um camone, conta quem sabe que fez nó com o braço direito de um e a perna esquerda do outro, entrou com ele sem pedir licença pelo Ás de Espadas, Lda., levaram ambos consigo o Rufino, o Aranhiço, o Roque Sacristão e o Vovô Resmungas, que estavam a jogar à sueca, saíram todos um pouco à balda pela porta do fundo, acrescentados do Douglas Fazbancos e do Chico Dominó, que estavam ali a discutir o Sporting-Benfica do domingo anterior, o Pé de Cabra foi de cabeça contra a parede e até fez eco, abriram-me a cabeça, dizia ele, abriram-me a cabeça, o que, segundo Molero, devia ser por demais evidente, o Peito Rente foi chutado com efeito para a tipografia do Celestino , deu duas voltas lá dentro fazendo parar máquinas que estavam a trabalhar e pondo a funcionar máquinas que estavam paradas, alguém tinha espetado uma faca na barriga do Lucas Pireza, talvez um camone, de certeza que foi um camone, diria mais tarde o Zuca, os camones são uns naifistas do caneco, garantia ele, o Lucas Pireza segurava os intestinos com as mãos, falava baixinho para eles, parecia rezar, os camones iam e vinham, espartanos, segundo Molero, até à medula, a certa altura, numa ressaca, levaram com eles, pelo ar, o Metro e Meio, o Ângelo tinha-os juntado a todos num molhinho, enfeitou-os com o metro e meio, e vai disto, tudo pelo ar, rumo ao Marocas Papa-Milhas, que tinha uma motocicleta cheia de cromados, e a mania das curvas rápidas, já tinha atropelado três gatos e duas pessoas, ia a fazer uma bela curva naquele momento, foi contemplado com a colecção de camones coroada com o Metro e Meio, despistou-se, disse foda-se, foda-se, subiu o passeio, virou de pantanas o mostruário do Raúl Pechisbeque, choveram colares de vidro, pulseiras, broches e anéis, o Marocas continuou em prova descontrolado e tudo, devolveu para dentro de casa o berço que a Gertrudes tinha colocado à porta com o bébé, atravessou a rua aos ziguezagues, embateu na caixa da criação da Mafalda Capoeira e terminou a prova contra o balcão da carvoaria do Galego, lançando o pânico nos elementos do Grupo Excursionista Moscatel, que estavam a beber o meio litro da praxe, enquanto as pessoas assomavam alvoroçadamente às janelas, as mulheres gritavam, o bebé da Gertrudes, que era o melhor pulmão lá do bairro, berrava como nunca, o papagaio do Pimentel, que tinha caído do poleiro e dançava suspenso na correia de metal, esganiçava a sua expressão preferida, ó da guarda, ó da guarda, muitíssimo apropriada, segundo Molero, às circunstâncias, o Fox Terrier do Silva Farmacêutico filava um camone pelo fundilho das calças e fazia questão de não o largar, as galinhas da Mafalda Capoeira corriam espavoridas num cacarejar infernal e num dilúvio de penas, o burro do Hipólito zurrava, os gatos da dona Maria Bicharoco miavam e pulavam, o Alsácia do Tó Peneiras ladrava com aquela fúria só dele, camones entravam por aqui, ex- Malhoas saíam por acolá, às vezes dava certo, parecia que o Ângelo tinha controle sobre a confusão, à distância, o Zuca diria mais tarde que, tirando algumas partes cómicas que pareciam à Charlot, aquilo tinha sido uma coisa iglantónica, o Ângelo era igualzinho a um tal Lone Ranger, só lhe faltava a mascarilha”. Houve uma pausa. ”o rapaz assistiu a tudo isto dentro da mercearia do João Azeiteiro, atrás de um saco de feijão, atónito perante aquilo que Molero denomina o maior fogo de artifício de que há memória em matéria de pancadaria, a balbúrdia plena, o filme de trinta e uma partes em carne viva, o real que se sobrepõe ao mítico, sonhar é pouco, é entra rapaziada, é entrar, eis a maior zaragata de todos os tempos, resolvida numa só sessão e sem ser preciso comprar bilhete, sem cenários de cartão, sem trucagens, sem intervalo segue imediatamente, cabeças, pernas e braços indiscutivelmente partidos, a cara do Pé de Cabra tapada pelo sangue que lhe escorria da cabeça, o Lucas Pireza transportado para o hospital na carripana do Bigodes Piaçaba, os intestinos enfiados outra vez na barriga um pouco à pressa, os camones espalhados pela rua, as mulheres a trazerem bacias de água e toalhas para limpar os feridos, as acusações mútuas, ó camone porque é que não vais jogar à porrada para as tuas streets ? ...não foram os camones, foi o Ângelo, o Ângelo é que começou logo a enfardar, isto foi coisa dos Vai ou Racha, os Vai ou Racha e os camones juntos são a lepra e a diarreia, as lágrimas e os gemidos, Vovô Resmungas de bengala no ar a despontar à esquina ao colo do Roque Sacristão,a Mafalda capoeira a correr atrás das galinhas, o Zeca Trampa a procurar lulas e carapaus nas couves do Hipólito, o Metro e Meio a vomitar coisas de cores esquisitas, esverdeadas e lilases, o Celestino a dizer ao Peito Rente mas tu não podias foder o material a outro?, o Tonecas Arenas a pedir para o ajudarem a sair do andaime, o Joca Farpelas de casaco na mão a chamar de filho da puta para cima a toda a gente, o Gil Penteadinho à procura do dente de oiro, se virem um dente de oiro é meu, o Pimentel à porta da barbearia com meia barba por fazer e o guardanapo ao pescoço, a Gertrudes com o bebé ao colo, alternando, num tom de voz claramente diferenciado, o ó papão vai-te embora, deixa dormir o menino, com o cambada de malandros, cambada de malandros, o Raul Pechisbeque a recolher, de nariz no chão e no boné de um dos camones, pedrinhas coloridas, colares, broches e anéis, o Silva Farmacêutico a tentar tirar da boca do fox-terrier os fundilhos das calças do camone, os Moscatéis a perguntarem ao Marocas se a carvoaria era uma pista de corridas, o Marocas a coxear e a dizer foda-se, foda-se, não mexam na mota, não mexam na mota, o Tó Peneiras rua abaixo em grande velocidade agarrado à trela do Alsácia que perseguia um dos gatos da Dona Maria Bicharoco, o Ventura dos móveis a explicar a um camone que a bed estava partida, o camone a contar com os dedos os galos que tinha na cabeça, o Zeferino Torrão de Alicante a dizer que desta vez ainda tinha sido melhor do que com os ciganos, o Chinês a dizer que sim com a cabeça, o carro da policia achegar, o Joaquim Navalhinhas a perguntar mas o que é que a policia vem fazer agora?, vem contar os mortos?, o Ângelo a por os óculos e a desaparecer, o Zuca havia de dizer mais tarde, que ele desaparecera no ar como o Mandrake, a Dona Ermelinda a devolver o sombrero do Tonecas Arenas pela janela por onde tinha entrado, o sombrero a descrever uma curva larga, planando e caindo suavemente aos pés do Dick Tracy, que era o policia à paisana lá da área, e o Dick Tracy, segundo Molero, conta quem sabe, de sombrero na mão, a perguntar a toda a gente e a ninguém: o que é que se passou?, o que é que se passou?, o que é que se passou?..."
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[Dinis Machado, in O Que Diz Molero, Bertrand, 2007]

4.10.07

O Que Diz Molero

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Comemoram-se este ano os 30 anos de O Que Diz Molero, de Dinis Machado, com o escritor a ser alvo de diversas homenagens. A Bertrand lançou esta bonita edição comemorativa, com ilustrações de António Jorge Gonçalves.
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O livro é fabuloso e merece todos os elogios que recebeu e continua a receber. Tem uma escrita contagiante, com um toque surrealista, e uma estrutura muito original: Mister DeLuxe e Austin lêem e comentam um relatório de Molero sobre o “rapaz”, tudo isto de uma forma algo policial, sem nunca se chegar a saber quem são exactamente estas personagens. O relatório centra-se sobretudo na infância do “rapaz”, num bairro típico de Lisboa, durante os anos 30/40 (é preciso não esquecer que Dinis Machado viveu no Bairro Alto desde que nasceu, em 1930, até aos anos 60). Deparamo-nos assim com uma diversidade de figuras fascinantes: o Zuca, o Bigodes Piaçaba, o Peida Gadocha, o Descoiso, o Vampiro Humano ou os Vai-ou-Racha. A cena de uma autêntica batalha campal com um grupo de “camones” é absolutamente delirante. Temos depois uma parte, quanto a mim menos interessante, sobre as posteriores deambulações do “rapaz” pelo mundo.
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Foi um livro que, não sei se revolucionou a literatura portuguesa como por vezes é referido, mas certamente influenciou muitos escritores e abriu novos caminhos e ainda hoje, passados 30 anos, se lê com muito agrado.

3.10.07

"Desde que me lembro de mim que a timidez é o meu obstáculo número um. Um entrave que atravanca o mundo. Uma vez, na escola primária, uma professora mandou-me pedir não sei quê a um contínuo. Não me recordo dessa incumbência, mas tenho a certeza que não cumpri. Fui saindo a medo, vagueei pelos corredores, fiquei sentado nas escadas, talvez até me tenha escondido atrás de uma porta. Demorei uma eternidade, enrodilhado na minha incapacidade de ir ter com o contínuo e de lhe dar um simples recado. Longuíssimos minutos depois, regressei à sala e disse, obviamente, que não encontrava o contínuo em lado nenhum.
Ora isto é uma doença, tão doença como uma gastrite. Ou, se quiserem, uma condição permanente, como sofrer de sinusite. Neste episódio eu era uma criança, mas em todas as épocas me lembro de casos assim. Se pudesse, evitava entrar em contacto com uma pessoa desconhecida ou pouco conhecida. Subi e desci avenidas erradas (mesmo em território estrangeiro) apenas para não ter de pedir uma indicação. Comprei o que não queria em supermercados porque não perguntei onde estava o que procurava. Deixei de almoçar vezes sem conta só para não encetar um temível diálogo com a empregada. Sempre que me põe à frente um ignoto concidadão, eu embatuco. Não comunico, olho para os ladrilhos, perco o pio, faço de astucioso Ulisses o possível para não termos de entrar em concílio.
Um dos problemas maiores da timidez é que por vezes parece aos outros um defeito de carácter. O tímido é um menino da mamã (tese proustiana). Ou então um arrogante, que detesta toda a gente e se enclausura na sua carapaça. Ora, creio que em geral o tímido sofre com a sua timidez, e tem vontade de contacto como toda a gente. Reparem: eu sou, e gosto de ser, uma pessoa discreta e reservada. Não cultivo a menor ambição de acordar no próximo sábado festivo como um jamaicano. Estou muito satisfeito com a circunspecção, a introspecção e outras cólicas do espírito. Mas não desgostava de cumprimentar as pessoas sempre que entro nalguma sala (em vez de observar a carpete gasta). Como não me desprazia uma cavaqueira com um colega de viagem ou com alguém que ficasse sentado ao meu lado num repasto (em vez de me refugiar nos classificados da Arrentela ou no cardápio de peixes grelhados). Eu sou aquele típico pateta que numa festa se esgancha contra uma coluna, de copo alto meio vazio, olhando para toda a gente como se fossem fantasmas translúcidos. E é melhor nem entrar no capítulo «sexo oposto» (mais conhecido como «o oposto do sexo»). Dos quinze anos aos trinta e dois, a minha timidez é quem mais ordena. E ordena sempre que me mantenha quieto e calado. Que não manifeste interesse ou intenção. Nem que a moça se pareça com a Cameron Diaz, tenha sido deixada pelo namorado há dez minutos e use um cartaz fosforescente em que pede conforto masculino.
Por essa e por outras é que acho que a timidez é uma doença. Por causa da timidez não fazemos imensas coisas. E nós morremos de remorsos pelo que fizemos mas sobretudo com remorsos por tudo o que deixámos passar. É um comboio que se põe em andamento e acaba com o momento propício (procurem o poema de Thomas Hardy Faintheart in a Railway Train). A timidez acaba connosco. Com uma enganadora gentileza. Os ingleses costumam dizer que uma pessoa é «dolorosamente tímida» (painfully shy). E dizem bem, porque se trata de um sofrimento oculto mas realíssimo. Um tímido fica preso a si mesmo, não se mexe, é um invisível que se vê. E sofre por querer o contrário do que mostra (que é nada)."
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[Pedro Mexia, in Primeira Pessoa, Casa das Letras, 2006]