23.2.11

.
.
DIÁRIO ÍNTIMO DE JOÃO DE DEUS
.
Segunda-feira, 8 de Julho
.
As cuecas da filha da Dona Assunção desapareceram da corda da roupa.
.
Terça-feira, 9 de Julho
.
Esqueço-me sempre de comprar um vaso para plantar uns pezinhos de salsa.
.
Quarta-feira, 10 de Julho
.
Há dias em que um homem não pode sair de casa.
.
Quinta-feira, 11 de Julho
.
Escapa-me a obstinação de Stravoguine quando, olhos nos olhos, afiança a Chatov que nunca conspurcou crianças.
.
Sexta-feira, 12 de Julho
.
O terramoto de 1755 não é suficiente para explicar este misterioso rumor nocturno.
Abyssus abyssum invocat…
.
Sábado, 13 de Julho
.
Ganhei este dia aziago sem sinal de azia. Benditos carapauzinhos com arroz de pimentos.
.
Domingo, 14 de juillet
.
Punheta? Seja, pois.
A propósito: As cuecas da filha da Dona Assunção apareceram num monturo de entulho. Está salva a honra do convento.
.
[João César Monteiro, in Uma Semana Noutra Cidade, & etc, 1999]

2.2.11

.
.
HINO ÓRFICO À NOITE
.
(Grécia)
.
Cantarei a criadora dos homens e deuses - cantarei a Noite.
Noite, fonte universal.
Ó forte divindade ardendo com as estrelas, Sol negro,
invadida pela paz e o tranquilo e múltiplo sono,
ó Felicidade e Encantamento, Raínha das vigílias, Mãe do sonho,
e Consoladora, onde as misérias repousam as campânulas de sangue,
ó Embaladora, Cavaleira, Luz Negra, Amiga Geral,
ó Incompleta, alternadamente terrestre e celeste,
ó Arredondada no meio das forças tenebrosas,
leve afastando a luz da casa dos mortos e de novo te afastando tu própria.
A terrível Fatalidade é a mãe de todas as coisas,
ó Noite Maravilhosa, Constelação Calma, Ternura Secreta do Tempo,
escuta, ó Indulgente Antiga, a imploração terrena,
e aparece com teu rosto obscuro e lento no meio dos vivos terrores do mundo.
.
[Herberto Helder, in O Bebedor Nocturno, poemas mudados para português, Assírio & Alvim, 2010]