18.5.07


O INVENTOR DO SUBMARINO

(publicada originalmente do Diário de Lisboa de 7 de Novembro de 1968)

Pegou-me na mão e, de mansinho, experimentou repetir o convite: «Vá, anda ver!» Eu, que o enxotara já duas vezes, desci do Cáucaso, levantei os olhos do livro (Nouvelles Asiatiques, Gobineau) e, com eles, fui coroar de ternura a cabecita de cabelo «à bestla», que, a meu lado, acenava, a pedir que sim.
Na banheira, o H-327 derivava lentamente entre duas águas. Maravilha! Senti – que querem que lhes faça! – um sincero grande orgulho. Eu era o pai do inventor do submarino! Quando pus os olhos nos olhos do Inventor, este semi-sorria, corado de prazer.
H-327: um tubo de vidro transparente de quase dois palmos e de diâmetro igual ao de uma cápsula de garrafa de cerveja («carica», no especializado vocábulo dos inventores). Onde desencantara o Inventor o tubo foi coisa que eu nunca quis apurar. De rãs salteadoras a despertadores de caixa de latão desventrados, de frascos de boca larga com cabeçudos nadadores, mais pequenos que fiapos, a escreverem continuamente Zés (zzzzzz) na água suja, em rápidos, eléctricos movimentos de corpo, a um estranho dínamo manual que fazia tfft-tfft-tfft a cada faísca que saltava dentre as escovas, o Inventor habituara-me a todos os aprestos de que o seu génio criador necessitava. Mas o H-327, assim à deriva sob meio palmo de água, era positivamente de tarar!
O inventor ajustara-lhe duas rolhas duas rolhas dentro e rolhara-o, nas extremidades, com outras duas. Criara, deste modo, três compartimentos no H-327. O compartimento central abrigava a tripulação: duas moscas desasadas. O comandante-mosca (ou a mosca-comandante) distinguia-se do resto da tripulação (simbolizado, muito inteligentemente, pela outra mosca) porque o Inventor lhe pintara um sim-senhor de vermelho. Os compartimentos das extremidades constituíam os depósitos do lastro: água e, para melhor contrabalanço, algumas tachas.
A tripulação parecia atenta (já estaria meio asfixiada?) e o Inventor resolveu experimentar, mais uma vez, a estabilidade em imersão, do H-327. Arregaçou a manga, meteu a mão, em espátula, na água e desencadeou na banheira uma tempestade pior que a que meteu a pique a Invencível Armada. Aí é que o meu entusiasmo abandonou todo e qualquer paternalismo, para se tornar um entusiasmo de igual para igual. O H-327 era simplesmente formidável!
A banheira deixou de ser a banheira. Passou a Base Naval Coelho da Rocha (por esta altura nós morávamos em Campo de Ourique, na rua do mesmo nome). Eu corri à colecção do Paris-Match, que tem muito bom papel para aviões, e em três tempos fiz duas esquadrilhas de combate anti-submarino. O Inventor, entretanto, protestava que a banheira não podia ser a Base Naval Coelho da Rocha, que era, evidentemente, o alto mar. Eu não o contrariei, confiado como estava na superioridade da minha aviação.
Ao terceiro bombardeamento, com o mar muito agitado pelo Inventor, o H-327 foi atingido por uma bomba das grandes: mola de roupa de arame. O submarino virou-se sobre si mesmo. O comandante sacudiu o sim-senhor vermelho e firmou-se melhor nas patinhas. A mosca-marinhagem não dava sinal de vida.
Eu perdera, contudo, um avião de observação, que, numa vrille desastrada, fora cair na base, perdão, no mar. Soraya, cujo retrato, por um feliz acaso, coincidira com o verso de uma das asas desse avião, sorria-me de dentro de água, já muito desbotada.
O Inventor rejubilava com a estabilidade do H-327, que atravessara, bravamente, a terrível prova. E os bombardeamentos continuaram pelo que restava da tarde. Eu e o Inventor revezávamo-nos na produção ininterruptas de tempestades e de ataques aéreos. O H-327 sofreu tratos em fim: o tremendo impacto das bombas de profundidade (para o delirante efeito, lindas grageias de sonífero furtadas da farmácia da velha), o tiro de salva de baterias costeiras cujo longo alcance fora engenhosamente garantido por duas ligas de velhota, enfim, um sei-lá de truques bélicos, qual deles o mais arrasador. Nada! O H-327 era um grande vaso de guerra.
Já com a batalha a passar-se à luz da electricidade, o Inventor, que estava, nessa altura, «ao submarino», pediu tréguas para trazer o H-327 à superfície. Concedidas por dez minutos.
E foi durante esse curto período de tréguas que a gloriosa carreira do H-327 se viu abruptamente cortada pela entrada prosaica da nossa velhota (minha mãe e avó do Inventor). Cansada de dar ao dedo na agá-césar o dia todo, por conta de Matos & Carthó, Lda., Arameiros Reunidos da Pampulha, a Joana não consegui sintonizar o comprimento de onda altamente poético que eu e o Inventor estávamos a emitir.
– Tu já prà cama, e sem jantar! E tu (era eu…) devias ter vergonha ! Que linda educação estás a dar ao teu filho!
Cabisbaixos, eu e o Inventor separámo-nos com um magoado entreolhar de solidariedade.
Por essas onze horas, com a Joana a cabecear sobre mais um capítulo da Vida e Aventuras do Padre Quilhó de Alvarado, levei uma bucha, pé ante pé, ao Inventor.
Como se uma mola o mudasse, truca, de posição, o Inventor sentou-se na cama, esfregou energicamente os olhos e fez questão de saber: «Então, gostaste do H-327?» Passei-lhe a côdea. «Muito! Mas já estou a pensar no H-1000…» Trincadela e pergunta: «No H-1000?» Festa na cabeça e resposta: «Sim! No H-1000, com motor atómico!» O Inventor pôs-se de pé na cama. «Motor atómico!» Obriguei-o a deitar-se e não levei muito tempo a satisfazer-lhe a expectativa.
«Imagina um submarino como o H-327, mas com um compartimento extra. Nesse compartimento mete-se uma pastilha de Alka-Seltzer. O H-1000 submerge. Tira-se a rolha à sala do reactor, que é a da pastilha, claro… Que achas que acontece?»
Não sei se o Inventor conseguiu dormir naquela noite. Eu não. Nem o Gobineau me fez esquecer o longo abraço quente de admiração com que o Inventor saudou, na pessoa do seu pai, o aparecimento no horizonte dos génios, dessa nova maravilha: o H-1000.
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[Alexandre O'Neill, in Crónica Jornalística do Séc. XX (org. Fernando Venâncio), Círculo de Leitores, 2004]

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