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Adolescência de que não nos libertamos
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Sempre, sempre andei com prazer - e moedas que logo se sumiam - por alfarrabistas. Nada de edições de luxo, encadernações, primeiras edições, embirro. Era para encontrar livros editados antes de mim, coisas que não encontrava, letras de gente da República, filhos do anarquismo ou do fim da monarquia, Camilos encarnados, Maupassants de antes da Estúdios Cor, Ibsen da Guimarães, Júlios Vernes. Um dos prazeres que tenho em Milão (cidade de que ninguém gosta e onde, será por isso?, me sinto tão bem) é ir ao Libraccio da Via Solferino, enorme dispensário de edições italianas e onde, ano após ano, desde 1978, encontro, na mesma estante, a mesma manuseada edição do Vittorini e acabo sempre por deixar no lugar os belos Mondadori, essa admirável Pléiade italiana. Agora, os alfarrabistas são net-encontráveis, sou cliente, mando vir, há-os excelentes, baratos, eficazes, rápidos. Mas falta-lhes o cheiro atrofiado dos livros velhos, a poeira, o mofo, aquela insalubridade que fazia com que a minha mãe aqui em casa proibisse livros em segunda mão ("sabe-se lá por que mãos isso andou... a tuberculose...", etc.), cheiro a morte sem crisântemos.
No outro dia, dia de assim chamadas férias, lá fui à Baixa (descer no Largo da Misericórdia, passear até ao Rossio) a pretexto de procurar um Fialho (Actores e Autores) para não oferecer o que tenho e às vezes me faz rir. Mas, nos alfarrabistas abertos em esplendoroso Agosto-de-ninguém-em-Lisboa, já não havia Fialho. Sei que o há na Rua Anchieta, lá irei sábado, é bom falar com os vendedores, gente finalmente culta e amante da letra impressa, descobrir coisas novas (isto é, velhas).
Vão-se esgotando os espólios, são já raros os livros de 1800 e tal, escasseiam os de 1910. E dou por mim, fascinado, a encontrar todos os livros que comprei era eu adolescente, entre Delgado e a Greve Universitária de Sampaio (esses anos seminais que vão de 1958 a 1962) - e os que não comprei, caros ou fora dos então meus limitados interesses. É que quem agora morre, está na idade, são os meus exactos contemporâneos, ligeiramente mais velhos, talvez, gente que, nesses anos, comprava as edições da Ulisseia, da Arcádia, Portugália, Europa-América, Cor, Livros do Brasil, o melhor de então.
Passei o Verão a recuperar livros que não li na sua altura, e que prazer foi Max Frisch, "Chamem-me Gantenbein", ou o maravilhoso "Não Sou Stiller" admiravelmente traduzido (do francês?) por Fernanda Botelho, edição de 1958, tinha eu dez anos, lembro-me de o ver nas livrarias que já não há, não "é para ti", diziam-me.
Encontrei-os agora, cada qual três euros, cada um deles três noites de adormecer ofegante, recuperados do espólio de alguém que até talvez eu tenha conhecido, somos tão poucos nestas letras. Pois não encontrei um "Avant-Scène" com "La Petite Datcha", comédia ligeira de Chkvarkine, assinado, com cuidada caligrafia, pela actriz (maravilhosa lembrança) Constança Navarro, que vivia aqui ao pé de mim, à direita de quem vai para o Jardim das Amoreiras, quase ao lado do prof. Delfim Santos?
Já estão nos alfarrabistas os Marx, os Gramsci, os Martha Hornecker, até o João Martins Pereira, o Arnold Hauser, os Goldmann das minhas educações políticas, o "Círculo do Humanismo Cristão" da Maria Isabel Tamen (belas edições), a literatura que me fez e a que invejei mas não cheguei a ler depois do buço (Moravia, cujo "Agostinho" leio agora com voracidade, belíssima capa de Sebastião Rodrigues e Sena da Silva), Butor (encontrei os "Graus", nem me lembrava), Caldwell (bem mais divertido do que se dizia).
É nestes livros de mortos que me encontro, a sós comigo neste Agosto. Pois nunca nos libertamos da adolescência, não é? Nem eu destas capas de artistas que ganhavam tostões antes de o Jorge de Brito - recém-falecido na superior qualidade de benfiquista, esquecidos que andam os jornalistas - lhes ter aberto o "mercado" (Charrua para a Portugália - belas, as capas de "Erica e os Irmãos" de Vittorini e, sobretudo, a do "Vento" de Claude Simon, Vespeira para a Ulisseia, "Flagelados do Vento Leste" de Manuel Lopes que agora comprei, formas informais ardendo, como na capa do Castro Soromenho que também trouxe, Espiga Pinto para os livrinhos de poesia, pois não é que encontrei a Fiama, "Barcas Novas", dois euros?).
Não, não nos libertamos da adolescência. Só que eu não esperava que ela assim me voltasse, em Verão abrasador, no papel amarelecido dos alfarrabistas.
Adolescência de que não nos libertamos
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Sempre, sempre andei com prazer - e moedas que logo se sumiam - por alfarrabistas. Nada de edições de luxo, encadernações, primeiras edições, embirro. Era para encontrar livros editados antes de mim, coisas que não encontrava, letras de gente da República, filhos do anarquismo ou do fim da monarquia, Camilos encarnados, Maupassants de antes da Estúdios Cor, Ibsen da Guimarães, Júlios Vernes. Um dos prazeres que tenho em Milão (cidade de que ninguém gosta e onde, será por isso?, me sinto tão bem) é ir ao Libraccio da Via Solferino, enorme dispensário de edições italianas e onde, ano após ano, desde 1978, encontro, na mesma estante, a mesma manuseada edição do Vittorini e acabo sempre por deixar no lugar os belos Mondadori, essa admirável Pléiade italiana. Agora, os alfarrabistas são net-encontráveis, sou cliente, mando vir, há-os excelentes, baratos, eficazes, rápidos. Mas falta-lhes o cheiro atrofiado dos livros velhos, a poeira, o mofo, aquela insalubridade que fazia com que a minha mãe aqui em casa proibisse livros em segunda mão ("sabe-se lá por que mãos isso andou... a tuberculose...", etc.), cheiro a morte sem crisântemos.
No outro dia, dia de assim chamadas férias, lá fui à Baixa (descer no Largo da Misericórdia, passear até ao Rossio) a pretexto de procurar um Fialho (Actores e Autores) para não oferecer o que tenho e às vezes me faz rir. Mas, nos alfarrabistas abertos em esplendoroso Agosto-de-ninguém-em-Lisboa, já não havia Fialho. Sei que o há na Rua Anchieta, lá irei sábado, é bom falar com os vendedores, gente finalmente culta e amante da letra impressa, descobrir coisas novas (isto é, velhas).
Vão-se esgotando os espólios, são já raros os livros de 1800 e tal, escasseiam os de 1910. E dou por mim, fascinado, a encontrar todos os livros que comprei era eu adolescente, entre Delgado e a Greve Universitária de Sampaio (esses anos seminais que vão de 1958 a 1962) - e os que não comprei, caros ou fora dos então meus limitados interesses. É que quem agora morre, está na idade, são os meus exactos contemporâneos, ligeiramente mais velhos, talvez, gente que, nesses anos, comprava as edições da Ulisseia, da Arcádia, Portugália, Europa-América, Cor, Livros do Brasil, o melhor de então.
Passei o Verão a recuperar livros que não li na sua altura, e que prazer foi Max Frisch, "Chamem-me Gantenbein", ou o maravilhoso "Não Sou Stiller" admiravelmente traduzido (do francês?) por Fernanda Botelho, edição de 1958, tinha eu dez anos, lembro-me de o ver nas livrarias que já não há, não "é para ti", diziam-me.
Encontrei-os agora, cada qual três euros, cada um deles três noites de adormecer ofegante, recuperados do espólio de alguém que até talvez eu tenha conhecido, somos tão poucos nestas letras. Pois não encontrei um "Avant-Scène" com "La Petite Datcha", comédia ligeira de Chkvarkine, assinado, com cuidada caligrafia, pela actriz (maravilhosa lembrança) Constança Navarro, que vivia aqui ao pé de mim, à direita de quem vai para o Jardim das Amoreiras, quase ao lado do prof. Delfim Santos?
Já estão nos alfarrabistas os Marx, os Gramsci, os Martha Hornecker, até o João Martins Pereira, o Arnold Hauser, os Goldmann das minhas educações políticas, o "Círculo do Humanismo Cristão" da Maria Isabel Tamen (belas edições), a literatura que me fez e a que invejei mas não cheguei a ler depois do buço (Moravia, cujo "Agostinho" leio agora com voracidade, belíssima capa de Sebastião Rodrigues e Sena da Silva), Butor (encontrei os "Graus", nem me lembrava), Caldwell (bem mais divertido do que se dizia).
É nestes livros de mortos que me encontro, a sós comigo neste Agosto. Pois nunca nos libertamos da adolescência, não é? Nem eu destas capas de artistas que ganhavam tostões antes de o Jorge de Brito - recém-falecido na superior qualidade de benfiquista, esquecidos que andam os jornalistas - lhes ter aberto o "mercado" (Charrua para a Portugália - belas, as capas de "Erica e os Irmãos" de Vittorini e, sobretudo, a do "Vento" de Claude Simon, Vespeira para a Ulisseia, "Flagelados do Vento Leste" de Manuel Lopes que agora comprei, formas informais ardendo, como na capa do Castro Soromenho que também trouxe, Espiga Pinto para os livrinhos de poesia, pois não é que encontrei a Fiama, "Barcas Novas", dois euros?).
Não, não nos libertamos da adolescência. Só que eu não esperava que ela assim me voltasse, em Verão abrasador, no papel amarelecido dos alfarrabistas.
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[Jorge Silva Melo, Mil Folhas (suplemento do Público), 22-09-2006]
1 comentário:
belo texto do jorge.
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