6.7.07

José-Augusto França em entrevista ao Diário de Notícias (2004)

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(imagem tirada daqui)

Os cardiologistas já descobriram as escadas do seu quarto andar para a prova de esforço?
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Acham que faço bem subir duas vezes por dia. Há uma técnica de respiração para subir escadas. E só tenho uns 57 quilos...
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Ao fim de tanto ver e escrever sobre os outros, sobretudo na área das artes plásticas, que o levou a voltar-se agora decididamente para a ficção?
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Quando escrevi Memórias para o Ano 2000 arrumei aí toda a tentação confessional e idealista, vacinei-me dessa tendência, o que me permite fazer romances que nada têm a ver com memórias.
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Em nenhum romance o autor estará como papel branco. Basta lerem-se o seu Buridan e o mais recente Regra de Três...
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Os romances têm sempre a ver com experiências do autor. É preciso, no entanto, distinguir o sujeito do complemento directo. Não conheci nenhuma das personagens tal como se apresentam nesses livros.
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E nos contos (acabou de publicar Cem Cenas Quadros e Contos) há um certo desespero existencial?
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Escrevo-os à mão e surpreendem-me sempre. Nunca sei o que vai acontecer, é como na vida. A literatura está muito perto da vida nesse sentido da surpresa, da imaginação permanente.
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Sendo um homem da investigação, da realidade, depois dos 80 anos a ficção é para se compensar?
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Sou investigador da realidade como historiador. Investigo e procuro aproximar-me da realidade com os dados que a investigação me dá. Ou então posso imaginar essa realidade, aí é o romancista. Ambos estão diante da realidade, um investiga, o outro imagina. O poeta cria, isso é outra coisa.
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Romancista não é um criador?
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Cria porque faz coisas, o historiador também. Mas a criação total é o poeta quem a assume. O mais alto é o poeta, sempre. Estou à vontade porque o não sou.
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Sei que faz poesia. Por que não publica?
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O poeta tem de ser profissional. Profissões tenho estas: professor, historiador e romancista. Considero-me profissional do romance, não é fantasia de um octogenário que desatou a fazer romances; faço-os com toda a consciência profissional.
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Existem correntes defendendo que a arte deve ter um sentido amador...
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Dizia António Pedro: «Amador é aquele que ama».
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Por isso mesmo...
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Mas é preciso saber amar. Não basta fazer olhos bonitos à menina, é preciso fazer alguma coisa mais para que o amor se realize…
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Amor não dispensa a estética...
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Estética, com certeza, sou, todavia, contra o arrebique na forma.
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Não gosta do barroco?
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O barroco serve muito bem os portugueses, é a maneira de encher o espaço para não dizer nada.
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Os grandes mestres do barroco são nada?
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Falo do barroco tal como em Portugal foi assumido, que não é o espanhol nem o italiano. Sou pelo Nuno Gonçalves, pelo Marquês de Pombal, pela Lisboa pombalina, contra a Lisboa joanina.
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Alguma vez analisou os painéis de Nuno Gonçalves?
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Todos aqueles rostos são de gente que está a fazer qualquer coisa para Portugal, a fazer um país novo. Como aquilo foi feito? Ninguém sabe, mas quanto mais teses melhor. É a maior pintura do ocidente europeu do século XV.
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Nunca se enganou nas suas críticas?
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Com certeza, porém não muito. Talvez tivesse deixado passar uma ou outra coisa que mais tarde procurei recuperar. Tenho uma carreira conscienciosamente consciente.
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Enquanto historiador e crítico foi educando o olhar?
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Na arte só há uma maneira de lá chegar: ver, ver, ver. Escrevi uma vez: Olhei dez mil quadros, vi mil, estudei cem e compreendi dez. Uma obra de arte é uma garrafa deitada ao mar, encontra-se ou não se encontra.
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Como podem as culturas, por exemplo, fomentar o terrorismo?
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Não são as culturas que fomentam o terrorismo. Há interesses que se servem das culturas para desencadearem processos circunstanciais. É preciso anular, económica e politicamente, esses interesses.
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É das pessoas que faz o que gosta, nem todos conseguem. Não é esse um dos dramas das novas gerações?
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O que gostam não será, sobretudo, queixarem-se de não poder fazer? Quando não me deixavam fazer uma coisa não me queixava, procurava reagir. Não fui o único. O remédio não é cantar o fado sobre o que nos acontece, o que é uma coisa muito portuguesa. Antigamente ia-se para os cafés e às vezes aquilo também era o fado do desgraçado... Agora também já não há cafés em Lisboa. Em Paris não se vê uma esquina sem cafés. Trabalha-se muito mais mas as pessoas têm tempo para ir ao café, ler os jornais, estão ali meia ou uma hora e vão à sua vida.
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Em transportes acessíveis...
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Também é muito importante. Os jornais da tarde em Portugal desapareceram porquê? Porque acabaram os cafés da Baixa. As pessoas saíam às seis horas, passavam pelo café, compravam o jornal e apanhavam o carro eléctrico para casa. Hoje não é possível, falta igualmente o carro eléctrico.
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Há alguns. O eléctrico ainda poderia ser uma boa solução de transportes públicos?
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Está a pensar-se nele outra vez, no trólei, até em França. O que empata o trânsito não são os eléctricos mas sim os automóveis. Sou apologista dos eléctricos, que estão a regressar a algumas cidades europeias. Concordo, por exemplo, com a aplicação do eco-imposto; em Londres já fez diminuir a circulação de carros na ordem dos 16 por cento. França também está a pensar aplicar essa medida. Fazia grandes passeios de carro eléctrico.
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Em especial no 28 que lhe inspirou um livro. Alguma peripécia de que se lembre nessas viagens?
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Lembro-me de uma corrida atrás de um carro eléctrico com Eduardo Lourenço. Estávamos em Campolide, ele vinha jantar a minha casa e dissemos: Vamos apanhar o eléctrico. Começámos a brincar com a história dos Maias, de Eça de Queirós: «Ainda o apanhamos, ainda o apanhamos». Corremos. Eu, mais rápido, saltei para o eléctrico e vi-o aflito, pálido, fiquei assustadíssimo. Ele a dizer: «A gente já não tem idade p'ra isto». Tínhamos 50 e tal.
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Para a velocidade da vida actual, o eléctrico não anda muito devagar?
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Nós é que andamos depressa demais. Criou-se um vício de velocidade e de comunicação. Toda a gente na rua a falar ao telemóvel... Como é que em tão pouco tempo se criou esta nova necessidade? Não se criou uma necessidade, criou-se uma moda.
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Não se criando novas necessidades ficaríamos na Idade da Pedra...
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Precisamos de saber distinguir entre necessidade e ilusão. Não sou economista, mas está a discutir-se, seriamente, se não seria bom para a humanidade o regresso a situações mais modestas quer de comunicação quer de produção. O progresso não é um progresso estético. Picasso não é melhor que Ticiano, nem Ticiano melhor que Picasso. Cada época tem as suas perguntas e as suas respostas, porém, às vezes tem mais respostas que perguntas.
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Diz Maupassant (personalidade que lhe é grata) que «cada artista se esforça por dar e impor a sua ilusão aos outros». Não necessitamos todos de ilusões?
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Mas não devemos ser ilusionados. Não devemos ser vítimas das ilusões dos outros. Veja-se o êxito dos hipermercados: uma pessoa vai lá para comprar uma coisa e acaba por comprar dez. E à saída descobriu que se esqueceu de comprar aquela de que precisava.
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Tem com Lisboa uma relação de amor-ódio?
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Vivi em muitas casas e muitos bairros. Conheço bem Lisboa, o cheiro de Lisboa. A partir dos «alvalades» é que já não sei nada. No tempo do meu pai, o Campo Pequeno era fora de portas e ainda se ia passar o Verão ao Campo Grande. Hoje, para mim, Sete Rios é um mistério. Fico indignado com certas coisas mas não tenho nenhum ódio a Lisboa. É uma linda cidade, ondulada e não só fisicamente. As pessoas são diferentes de um sítio para o outro.
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A capital portuguesa é o exemplo acabado dos fluxos imigratórios?
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Nos anos 20 ninguém tinha ainda nascido em Lisboa. Era uma imigração que de todo o lado vinha, cresceu durante esses anos, agora parou. De um milhão de habitantes que se contava para Lisboa estamos só com 700 mil. As pessoas vão para a linha ou para a outra banda. Chega a noite, as ruas ficam desertas e começam a ser perigosas.
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Lisboa teve uma vida nocturna intensa que passava nomeadamente pelos cinemas e teatros...
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Em cada bairro havia um ou dois cinemas, eram um núcleo de convívio, os cinemas viviam dos seus bairros. As pessoas não ficavam em casa como hoje. Calcorreei Lisboa (e Paris) de lés a lés para ver filmes. Os cinemas estão agora mais em supermercados e coisas assim. Desapareceram todas as minhas referências topográficas dos cinemas de Lisboa.
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Um público mais jovem responde bem a essa nova localização das salas de cinema...
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Responde?, não sei. As salas são mais pequenas, mais fáceis de encher. Vou muito à Cinemateca mas também está pouca gente.
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Parque Mayer, que lhe parece?
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Tenho uma pergunta: conseguiu-se fazer a chamada «movida» do Bairro Alto, a da 24 de Julho, não será possível uma «movida» no sítio do Parque Mayer?
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Uma «movida» que fizesse a integração de tempos?
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Que recuperasse valores antigos, restaurantes, cabarés, cinemas, teatros. Coisas que pudessem chamar outra vez gente à Avenida da Liberdade. Acho possível e sem a batota, a batota vão pô-la noutro lado mas sou contra a batota em qualquer sítio.
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Teatro de revista ainda faz sentido?
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Desapareceram as grandes parcerias de autores, no entanto poderá aparecer nova gente com novas fórmulas. Há hoje uma liberdade de crítica que a revista pode reflectir como aconteceu nos anos 20 e 30 antes de Salazar. O próprio aspecto erótico do Parque Mayer desapareceu, contudo é possível adaptá-lo a novas situações.
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Em termos geracionais, os gostos vão ganhando outro perfil à medida que se atinge a maturidade?
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A responsabilidade e as chatices da vida modificam as pessoas. Veja-se o fenómeno do futebol. É um fenómeno contínuo, permanente, lúdico. As gerações sucedem-se e os velhinhos, avós, pais, filhos, netos e bisnetos vão gritar pelo seu clube. Julgo ser possível, em relação a outro tipo de divertimento, criar-se psicologicamente um discurso oscilante mas contínuo. Todas as sociedades são movidas ludicamente.
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Lisboa está a reconciliar-se com o rio?
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Com a reconquista da beira-rio, Lisboa está a recuperar-se. É bom porque Lisboa é o rio.
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Mantém a expectativa de ver a Baixa de Lisboa declarada património mundial?
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Ainda não tem condições neste momento mas tem potencialidades. Se houver uma boa gestão do actual e uma boa projecção para o futuro, por que não? Essas coisas passam por dois estádios: primeiro fica-se uns anos no purgatório; depois, quando as condições estiverem reunidas, faz-se a votação. Lisboa entrará com certeza porque é a primeira capital moderna do mundo, não só da Europa.
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Um cantinho de Lisboa que gostasse de dizer-me: não se esqueça de ir ver...
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O Alto do Longo, uma aldeiazinha no Príncipe Real (que foi já passada a polimento...) Andei lá uma noite com Amália. Ela queria fazer uma casa de fados em Lisboa. Marcelo [Caetano] tinha-lhe prometido a Casa dos Bicos. Disse-lhe que a Casa dos Bicos não era para o fado e levei-a ao Alto do Longo, ficou encantada, isto há 30 anos. Mais adiante está o Pátio do Tijolo, com o palacete onde morreu Fontes Pereira de Melo.
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Se fosse presidente do município lisboeta qual a primeira medida que tomaria?
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Faria como Duarte Pacheco quando foi nomeado presidente da câmara. Desceu a Avenida da Liberdade com um colaborador, a ver aqui, acolá. É preciso ver de perto as pequenas coisas, essa é a maneira de salvar a cidade.
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Como caricaturaria Bordalo Pinheiro a actualidade portuguesa?
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Tinha pano para mangas.
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Criava outro Zé Povinho?
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O dele chega perfeitamente. Já reparou que o Zé Povinho nasceu no mesmo ano do Desterrado, de Soares dos Reis? O Desterrado muito triste e o outro a fazer os seus cumprimentos. Portugal está entre as duas coisas. Queres saudades, ora toma!
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O humor está em crise?
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Fazem-me rir mais os comentaristas sérios.
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A sua mordacidade...
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Não é mordacidade. Por que diabo um sujeito há-de ter opinião todos os dias sobre uma coisa?
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Gostava de poder voltar a nascer?
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Qualquer dia tenho um bisneto, chega.
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«ENSINO DE ARTES COM ATELIERS LIVRES»
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A arte passou a estar mais sujeita às modas dos mercados?

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Em Portugal menos, na medida em que não temos realmente um mercado de arte. Um mercado leva três gerações a fazer; estamos numa primeira geração, a anterior abortou. Houve uma explosão mercantil em princípio de 70 com a primavera marcelista; a seguir ao 25 de Abril caiu a pique e, a partir dos anos 80, voltou a subir, todavia não há profissionais no mercado. Há pessoas com uns conhecimentos e umas relações.
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Desapareceu a figura do «marchand»?
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Agora chamam-se galeristas, uma moda de linguagem; mas se vendem têm de chamar-se «marchands» e não galeristas. Alguns são de uma ignorância crassa.
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Acaba sempre por aparecer um público interessado na aquisição de arte?
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Há bancos a investir em arte, bem ou mal orientados não sei, às vezes vejo que estão a ser mal orientados e acabam por criar falsas valorizações. Temos em Portugal artistas desvalorizados porque existem outros cuja promoção é mais indiscreta. Alguns coleccionadores estão a passar ao lado de coisas que não sendo moda são valores sólidos. O comércio de livros de antiguidade, por exemplo, caiu imenso. Todos os alfarrabistas se queixam. Há um leilão e os preços não levantam voo.
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Em termos de qualidade criativa também é céptico?
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Não sou céptico. Não temos actualmente nenhum génio, situamo-nos numa qualidade-média internacional. Não vejo hoje nenhum artista que marque uma posição como, por exemplo, uma Vieira da Silva.
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Essa é a tese «depois de nós o dilúvio». Não está muito fechado num tempo?
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Há sempre pequenos dilúvios. A terra enxuga outra vez. Não é o fim da história.
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O fim da Colóquio/Artes, que dirigiu, uma lacuna não mais preenchida?
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Tenho a impressão que a única pessoa que na Gulbenkian lia a Colóquio/Artes era o dr. Azeredo Perdigão, e lia de fio a pavio. Mas as publicações são mortais e as fundações também.
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Aumentam os divórcios na cultura?
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Qual é a taxa de analfabetismo em Portugal? E não só o analfabetismo, o iletrismo. As pessoas sabem ler e escrever, contudo, não lêem nem escrevem. São alfabetizadas estatisticamente todavia são iletradas de uma maneira muito mais grave. Mesmo os alunos das faculdades não têm capacidade de crítica; chega-se ao fim de um curso de 30 pessoas e só três ou quatro não ficaram pelo caminho. Acabam por ser doutores mas não se cultivaram na sua função discente. Não acontece só em Portugal, os franceses, por exemplo, queixam-se do mesmo.
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O ensino das belas-artes deveria ser reestruturado?
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Deveria passar, a meu ver, pela criação de uma base teórica estruturada e por um sistema de ateliers livres em que o professor seria escolhido ad hoc. Defendi isso ao presidir recentemente à comissão de avaliação desse ensino.
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Não se alterou entretanto o conceito de cultura?
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Foi alterado com a desculpa de que a cultura não deve ser elitista. O problema não é que seja elitista ou não, o problema é que deve exigir-se de cada um de nós capacidade de fazer parte dos melhores, de uma república aristocrática no melhor da palavra, e não por cunhas, por batotas. Tivemos uma geração que deu cartas na vida portuguesa: a da Primeira República; depois o Estado Novo representou uma cilindragem política e social. Temos hoje excelentes cientistas que andam pelo estrangeiro mas Portugal foi um ponto de partida e não de chegada.
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O Estado Novo caiu há muito. Não se inverteu essa situação?
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É isso que me aflige. Tinha três anos quando se instalou a ditadura e saí dela com 50. Sou de uma geração que viveu contra e, quando deixou de haver o contra, ficou-se sem alvo.
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Malraux falou do «tempo do desprezo». Será esse o tempo que vivemos?
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Um pouco. Olho para os meus companheiros de geração com muita estima e admiração por alguns. Poucos se salvaram na passagem para uma nova situação. Tenho alguma vaidade em dizer que fui um dos que se salvou.
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Sonhou com um grande Museu de Arte Moderna em Portugal. Onde está?
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Sonhei um pouco em abstracto. Ainda antes do 25 de Abril, achei que arranjaria dinheiro para isso com um imposto sobre o futebol. Não estou hoje tão convencido da necessidade e da possibilidade. O Museu do Chiado responde na medida do possível. Há pequenos núcleos a fazerem coisas positivas na vida portuguesa. Não podemos ser excessivamente ambiciosos.
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É membro do Comité Internacional do Património. Este núcleo tem logrado os seus intentos?
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A figura de património mundial criada há 30 anos pela UNESCO já salvou muitas coisas de perdição. Deu consciência do valor de património aos respectivos países ou ajudou a mantê-lo em economias mais abandonadas. E criou responsabilidade no detentor de um património específico.
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Como sensibilizar as pessoas para a arte, para o património?
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A arte deve começar pela educação. Quando dos estados-gerais do Partido Socialista, propus estruturar-se o governo português em dois grandes ministérios de Estado: Ministério da Cultura e Ministério da Economia, os outros seriam de serviços. O da Cultura assumiria ainda a educação. Acharam interessante mas deviam ter pensado que não convinha, não quisesse eu ser ministro...
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Chegou a ser convidado ou não?
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João Freitas Branco falou-me... Mas estou muito contente de não ter sido. Acabava por estar lá 15 dias e criava muito má fama, já a tenho. Não sou homem de bastidores, nunca fui candidato a coisa nenhuma. Só quero fazer aquilo de que gosto, neste momento escrever romances. Tenho a ideia de fazer também um romance policial. Encontrei um detective, um historiador de arte...
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Continua a defender que não deveríamos ter ministro da Cultura?
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Para que serve um ministro da Cultura?
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Dramático é ter de perguntar-se para que serve...
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Não serve para muito. Houve um chamado Malraux, que inaugurou um posto, os outros andaram a reboque.
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A memória é um património?
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É a nossa referência. Ainda vivemos as civilizações grega e a judaica. Os gregos inventaram o logos, pensamento. Os judeus inventaram outra coisa: o daath (grafia ocidentalizada). Daath, o conhecimento sensível que poderá ser físico também. É o conhecimento por penetração das coisas, que pode ser até sexual no sentido do conhecimento do outro através de um coito.
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Dois pólos fundamentais, o intelectual e o sensível?
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Dão-nos o conhecimento. Ai do desgraçado que seja um racionalista puro e simples, passa ao lado de uma data de coisas. Ai do que passe também a vida a sentimentalizar todas as situações porque fica à margem do conhecimento.
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A razão não tem de afastar as emoções, Damásio o diz...
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Damásio está a chover no molhado. O que ele diz, os surrealistas sempre o disseram.
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Os surrealistas andam mais pelo sonho, embora o sonho passe pelas emoções...
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O surrealismo é um dos elementos do realismo. Vivemos na realidade e essa realidade pode ser também sonhada mas quando estou a sonhar crio realidade. Não vivemos no irreal. O contrário de realismo não é surrealismo, é irrealismo. Surrealismo é ultrapassar, oniricamente, aquilo que o realismo nos dá, enriquecendo esse realismo com o imaginário.
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Há quem afirme que, na arte, o real mata.
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Copiado, mata. Michaux dizia que o mal não está em pintar a vaca, está em não pintar a alma da vaca.
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Tenciona pintar alguma tela?
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Não. Mas vou atirar-me a um romance sem fim, vou morrer a escrever um grande romance, uma sinfonia inacabada.
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Habituamo-nos a um José-Augusto França que diz não ser nostálgico mas acabo de ver como é capaz de se emocionar...
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Sou um sentimental como todos os portugueses.

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