autografia I
.
Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo.....uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra
.
O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: conde-
...............nado à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
...............existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loirooutro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente – tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião – não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais – também, já por cá pas-
...............saram.
E sou, no sentido mais enérgico da palavra
na carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
...............passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica.....irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
...............escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha
.
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
...............em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama.....no espaço duma pedra.....em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem
...............lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido
...............entre lagos de incêndio e o teu retrato grande!
.
[Mário Cesariny, in Pena Capital, Assírio & Alvim, 2004]
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