27.12.07

Jorge Silva Melo: entrevista ao Expresso

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A propósito do lançamento de Século Passado, Cristina Margato entrevistou Jorge Silva Melo para o Actual (suplemento do Expresso) de 10 de Março deste ano:
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O PASSADO FOI BEM PASSADO
COMO O BIFE

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Aos 58 anos, Jorge Silva Melo não faz muitos planos. Interessa-lhe, como diz, o que «já cá canta». E «cantam» muitas coisas.
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Não foi desta que Jorge Silva Melo ajustou todas as suas contas com a memória. Em vésperas de lançar Século Passado (Livros Cotovia), uma colecção de crónicas apresentada como autobiografia, o encenador, realizador, actor e dramaturgo preferiu dar a conhecer aquilo de que é feito, o que viu, o que leu, ouviu e «foi vivendo na passiva». São muitas histórias desta vida cheia, «de cão, mas não de luxo», com promessa de continuação em A Mesa Está Posta.
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É difícil defini-lo, tendo em conta que se tem dividido por tantas áreas, mas há uma palavra possível para o fazer: intelectual. É um intelectual?
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Sim, se o intelectual é aquele que aparece no Zola, alguém que intervém na sociedade tendo em vista a justiça, o pensamento, a arte. Gostaria de ter essa esperança, mas sou sobretudo um curioso. Interesso-me pelo que não sei. Uma vez propus dar aulas sobre coisas que não sei. Gosto de uma universidade com pessoas que não sabem e que vão aprender com os alunos. Porque me parece que é o caminho mais bonito. Fui aluno de um homem extraordinário, o padre Manuel Antunes. No primeiro ano da faculdade, lembro-me de ter saído o livro Les Mots et les Choses, de Foucault. Ele estava a lê-lo ao mesmo tempo que nós e a dar aulas sobre ele. Gostava de herdar essa capacidade de estar a descobrir o mundo com outras pessoas…
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Esse não tem sido o seu caminho?
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Sim. Há aliás uma coisa esquisitíssima: já encenei peças de muitos autores e de nenhum com idade acima dos 40 anos. Mesmo os textos de Brecht ou de Shakespeare que trabalhei foram escritos quando eles eram muito novos. Há qualquer coisa no rasgo inicial, do não saber, de querer o mundo inteiro e não ter formas para o captar, que me interessa.
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Em miúdo, o que é que queria ser?
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Queria ser realizador de cinema ou bispo.
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Bispo?
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Sim. Os meus pais tinham um vizinho de que eu gostava muito. Era o bispo Silva Porto, um senhor muito simpático, que me tratava bem. Como não queria ser padre, a hipótese era logo ser bispo e comandar o mundo. A outra hipótese apareceu depois de ter ido ao cinema com o meu pai, aos 4 anos. Nunca mais voltei a ver o filme, mas sei qual é: A Zaragateira, de Luigi Zampa. Como gostei muito daquilo, perguntei ao meu pai quem é que o fazia e passei a querer ser realizador. Mas a melhor resposta de todas é sem dúvida a que dava à minha mãe. Respondia-lhe sempre: «Quero ser filho». Ou seja, nunca quis que o tempo passasse. Provavelmente, sempre andei à procura do primeiro impulso juvenil. E mesmo agora, a cair da tripeça, não quero que o tempo passe.
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Onde é que nasceu?
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Nasci de cesariana numa maternidade em frente à Gulbenkian, que ainda não existia. Curiosamente, depois de nascer, fui viver para o andar onde hoje mora José Sócrates, na Rua Castilho. Os meus pais estavam em África, e a minha mãe era professora primária. Com licença graciosa, ainda viveram cá seis meses e depois voltaram para África, onde vivi até aos 4 anos. Depois é que viemos para aqui (Rua Artilharia I). Era um prédio com graça, porque aqui em cima morava o pai da Esther Mucznik, mais acima os pais da Vera Sam Payo Lemos. Mais tarde percebi que era um bairro judeu.
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A cidade era um círculo pequeno para si?
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Sim. Era um mundo muito pequeno, no qual era muito simples falar francês, inglês, ir ver as revistas francesas à Alliance Française, receber os livros em alemão, que eram para a minha irmã, ir à Livraria Bucholz, sonhar com Paris, com o cinema francês. Era um bairro provinciano com um ambiente cosmopolita. Sendo a minha irmã mais velha 12 anos e estando ela muito interessada no que acontecia, foi muito fácil presenciar algumas coisas. Durante a campanha do delgado ainda vi cavalos da PIDE a bater nas pessoas no Saldanha. O meu pai, que era republicano, explicava-me. Ele tinha negócios com Barcelona, a cidade maravilhosa. A honra de ser de Barcelona contra a Madrid franquista foram coisas que eu fui aprendendo ouvindo. A parte europeia apareceu muito cedo.
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Tinha consciência da miséria?
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Tinha. Quando houve as cheias de 1967 foi o grande choque para as pessoas da minha idade. Aqui vivia-se numa espécie de redoma recatada, com muita consciência da política. Lembro-me muito bem de quando a irmã da Esther Mucznik foi para Israel. Devia ter 7 anos. A minha mãe explicou-me o que era o «kibutz». Foi mesmo ali junto à janela e disse-me: «Não deves dizer esta palavra na escola». Percebi que havia palavras que não se podiam dizer na escola.
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A consciência política desperta na escola?
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Começa até mais cedo. Vivi num prédio perto da Igreja de São Mamede, onde vivia Manuela Porto, uma actriz que provavelmente abandonou o teatro por não se sentir bem com os convencionalismos burgueses da época. Ela era do grupo anarquista, trabalhou com Lopes Graça, foi tradutora da Virginia Woolf… suicidou-se pouco tempo depois de eu ter nascido, mas ainda assim fazia parte desse ambiente em que vivi. A minha primeira atitude foi nos Maristas, mas inocente: quis fazer uma redacção sobre o dirigente africano Lumumba. Suspenderam-me durante três dias. Como o meu pai me deu dinheiro e autorização para ir ao cinema, a minha tendência acabou por ser aprovada.
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Mas nunca optou pela actividade partidária…
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Estive no MES. Como trabalhava à noite, nunca podia estar nas reuniões com Ferro Rodrigues. Tem a ver com a solidão do teatro…
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Tem um texto sobre o 25 de Novembro no qual conta um episódio de desconfiança em relação à política partidária.
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Vi nascer alguns partidos. O que me interessou sempre foi a hipótese de os movimentos populares ultrapassarem os partidários. Gosto do que está a nascer, do impulso irreflectido, das primeiras peças, das primeiras ocupações de terras. Das segundas não gostei, porque já era o Partido Comunista a organizar o imenso movimento espontâneo… Interessa-me que o desejo possa irromper na rua, de uma forma comunitária e partilhada.
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E ainda vota?
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Voto sempre, mas não fico contente. As eleições em Lisboa ainda me fazem engulho.
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Não tem partido escolhido?
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Não, e a evolução do Bloco de Esquerda é algo que me entristece, embora muitas das coisas me possam ser próximas. Não gosto da arrogância de dizer: «a maioria dos católicos votou» ou «entrámos finalmente na Europa». Há nisto um oportunismo.
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A política está livre desse oportunismo?
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Não. Por isso, gosto dos movimentos pendulares.
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Interessou-lhe algum movimento pendular nos últimos tempos?
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A greve dos liceais em França.
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E em Portugal?
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Em Portugal, confesso que não estou interessado em mais nada. Interessei-me e achei lindíssima a última campanha de Mário Soares. Votei nele com o maior entusiasmo e não posso deixar de estar com esta pessoa que teima, insiste em ser político, tem coisas para dizer e continua a surpreender-me com a sua liberdade de pensamento. Foi o último grito do Rei Lear.
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Pode-se trabalhar para a História…
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Pode-se trabalhar por culpa. Isso tem a ver com algo mais uma vez: o sentido da responsabilidade.
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Não se empolga quando vê manifestações?
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Sim, mas pelo mal-estar da sociedade. Porque não as entendo muito bem, não sei o que pode sair dali. Fico a saber que as pessoas se sentem infelizes. Mas também sei, infelizmente, que com essas pessoas não vou conseguir fazer um novo mundo… Já sei uma coisa que não sabia em 1974. Será sempre isolado que tentarei lutar por algo melhor e vão ser poucas as vezes que ainda vou conseguir estar com grandes multidões.
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Ficou circunscrito a uma minoria…
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Sempre estive. No 1 de Maio de 74 era tudo muito entusiasmante, mas a música que as pessoas cantavam era algo que me horrorizava. Pensei. «Porque é que estamos aqui neste momento tão entusiasmante? O ideal estético é este? Ainda se estivéssemos a cantar Schubert!» Os meus amigos estavam a cantar para poderem estar em comunhão. Zanguei-me imenso. Não podia ceder. Percebi isso entre a semana do 25 de Abril e o 1 de Maio.
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Quando entrou para o teatro, este ainda tinha importância política…
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Sim. O teatro é uma resposta política, no sentido em que é uma resposta comunitária. Íamos aos espectáculos juntos e comprávamos os mesmos livros, havia uma espécie de cultura geral. Fiz um filme sobre o Álvaro Lapa, que é da idade da minha irmã, e descobri na biblioteca dele os mesmos livros na mesma edição que eu tinha. Ele estava interessado na pintura, eu no cinema, mas líamos o mesmo. Havia um saber comum, porque havia espaços comuns. Uma das coisas que me aflige é que em Lisboa já não há espaços comuns. Em Madrid e Paris há. Este esvaziamento do coração da cidade faz com que já não saiba onde há cinemas, porque estão quase sempre na periferia ou nas entradas e saídas das auto-estradas.
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Como é que interpreta o facto de a crítica ter hoje cada vez menos peso nos jornais?
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É muito estranho. Parece que há um desnorteamento nos leitores e proprietários dos jornais. Pacheco Pereira colocou muito bem os pontos nos is num artigo que escreveu para o «Público» sobre a elite portuguesa. A elite portuguesa vive uma vida de província em que a vida comunitária está ausente. Já não há cafés, e o jornal deixou de ser um espaço comunitário entre as pessoas. No início dos anos 80, as grandes salas da Gulbenkian estavam vazias, porque as velhas, que iam ouvir a música, não tinham educado bem as filhas. As filhas estavam todas a comprar a casa de campo e iam mais facilmente ao CCB ouvir música ligeira de charme. É na burguesia que há um desinteresse completo pela capital. O que morre não são os jornais. É Lisboa. A vida quotidiana desapareceu, e é por isso que o teatro deixou de ter importância. Todos querem despachar o trabalho e ir para casa ou ir jantar com o casal amigo.
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Ainda tem amigos da sua idade?
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Sim. Curiosamente, não vêem o que faço, mas lêem o que escrevo. Tenho dupla personalidade. O que escrevo atinge pessoas da minha idade; o que faço pessoas de outras idades. Sou bígamo, fiz teatro e fiz cinema, vivi em Portugal e no estrangeiro. Não sou do signo Gémeos, mas sou duas pessoas. O teatro que faço não interessa aos meus colegas de faculdade e aquilo que escrevo não interessa às pessoas que fazem teatro comigo.
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Num dos textos que inclui no livro fala do que é ser português. Há nele a expressão de uma certa marginalidade em relação ao mundo.
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Sim, necessariamente. Há imensas coisas que não pude viver com as pessoas da minha idade também por ser português. Não quis viver a famosa libertação sexual dos anos 60. Estava em Londres entre 68 e 70, e os meus colegas estavam drogadíssimos, charradíssimos, a assistir aos concertos dos Pink Floyd na maior nuvem de fumo que já vi na minha vida. Eu sentia o peso do antifascismo e pensava: «Não posso ter prazer enquanto a situação não estiver resolvida no meu país, estou em Londres para aproveitar todos os segundos, enquanto eles são uns privilegiados que podem gozar o seu prazer…» Havia esse lado de castigo próprio, militância, dever e culpa. A culpa é, aliás, um sentimento dos intelectuais portugueses. O Vasco Pulido Valente é o exemplo perfeito da pessoa que tem culpa e que, por isso, acha que está tudo errado. Se ele pudesse tinha melhorado isto, mas não é capaz porque só há senhores Silvas à sua volta.
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Nesse texto há também uma certa inferioridade de ser português?
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Sim. Mas há outras coisas que devo ao fascismo, como o facto de ser poliglota. Fui preso numa manifestação pela PIDE e foi fantástico. Raparam-me o cabelo, e ao sair leio no jornal que Jacques Tati está na embaixada de França. Precipitei-me para lá. Se não tivesse sido preso, não teria a lata de ir à embaixada. Se calhar, esperava pela sessão de cinema onde ele ia apresentar o filme. Na embaixada estavam lá todos os fascistas, e o António Lopes Ribeiro a receber o Tati. E é o Tati que olha para mim, um rapaz careca em 1968! Ele recusou as entrevistas, deu-me uma e dedicou-me o filme no dia em que o apresentou. Foram os privilégios de uma certa arrogância intelectual.
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Naquele período pós-Cornocópia…
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Vivi em Berlim, cheguei ao fim da esquerda que conheci. Vou estar nos círculos ex-maoístas do Schaubühne, do Peter Stein, mas com a atitude de que já não sou responsável, sem culpa de ser português. No regresso de Berlim vivi um período doloroso durante dois anos. Nem um artigo, nem uma tradução. Passava os dias em casa, e a minha única esperança do dia era ver um programa da Teresa Guilherme ao fim da tarde.
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Tinha pouco mais de 30 anos, e o teatro era já um assunto que dava por arrumado. O que é que o levou de volta ao teatro?
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Não pensava em voltar a Portugal e em fazer teatro. Só o fiz por causa do Quarteto, do Heiner Muller. A Titina Maselli podia fazer um cenário para a peça ao mesmo tempo que tinha uma exposição na Gulbenkian. Quando estou a fazer o Coitado do Jorge conheço o Manuel Wiborg e a Joana Bárcia. Nessa altura, sinto-me culpado. Têm um talento e uma energia que não vi crescer. Senti-me culpado de os abandonar, e a única maneira de estar com eles ou com outros era criar uma companhia de teatro. Apareceu a Artistas Unidos, não tanto para fazer encenações, mas para poder viver com gente. Da mesma forma que em casa gosto de viver sozinho, e não tenciono viver com ninguém – até porque ninguém me permitiria esta desarrumação –, também gosto de ir ter todos os dias com dez pessoas e saber dos seus problemas, das suas borbulhas…
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Mas se tivesse todo o dinheiro do mundo, não escolhia apenas o cinema?
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Não. O cinema não me permite viver com os outros. O realizador tem uma vida muito solitária, autista, obstinada… O teatro é, realmente, um convento, fora das regras da outra sociedade e dos horários dos outros. Interessa-me a vida da comunidade autogerida. Gosto da ideia militante, católica, da comunidade que sobrevive às várias adversidades.
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Não gostando da noite, nem de copos, o seu sonho dos últimos anos era ter ficado no Bairro Alto. O que é que o atrai naquele sítio?
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Agora, vou lá pouco. Gostava do bairro popular, no qual ainda há pessoas. O Bairro Alto é uma aldeia durante o dia que se veste de Carnaval para a noite.
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A ruptura com a Cornucópia e com Luís Miguel Cintra é algo de que vai falar algum dia?
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Nunca vou falar.
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É uma jura?
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Sim.
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Entre os dois?
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Não.
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Não foi uma época importante para si?
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Não sei. Não vou falar.
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Não fala nem do tempo da Faculdade de Letras (lugar embrionário da Cornucópia)?
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Da Faculdade de Letras falo. À medida que fomos aparecendo, o Luís Miguel, a Eduarda Dionísio, o Nuno Júdice e eu, decidimos que não precisávamos de mestres. Não gostávamos do teatro que se fazia. Enquanto grupo, não queríamos apenas criar um espectáculo como criámos, mas também, como aconteceu depois, criar uma revista, a que se chamou «Crítica», e uma cooperativa. Os espectáculos foram a parte mais emergente da nossa acção. Nenhum de nós estava ligado a partidos políticos, e houve quem pensasse que estávamos a pôr em causa algumas directrizes. Tínhamos vontade, talento, como era o caso do Luís Miguel Cintra. Havia uma vida de grupo que não queríamos deixar de ter e que existiu até à formação da Cornucópia – na qual só participa o Luís Miguel e eu. A Eduarda e o Júdice foram para o ensino. Foi-se perdendo a base do movimento…
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O livro é uma vasta colecção de crónicas. Porque o apresenta como uma autobiografia?
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As crónicas foram agrupadas segundo as fases da vida, embora tenham sido escritas fora da época. Este é um livro daquilo de que sou feito, mais do que daquilo que fiz. É mais natural que fale dos filmes que vi, dos livros que li, do que do teatro que faço. Guardarei todos esses textos para outro livro, a que chamarei A Mesa Está Posta, no sentido em que servi o jantar. Este é um livro sobre o que me foi fazendo os amigos, os professores, os outros…
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A sua escrita é muito racional. A exaltação é a do conhecimento. Isso corresponde exactamente ao que é ou à forma como gosta de se apresentar?
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O ensino de Mário Dionísio foi muito importante. Era um professor extremamente culto, e com ele aprendi muitas coisas que me causa alguma perturbação não serem mais partilhadas: a clareza, o saber dizer, a expressão trabalhada… escrevo por causa disso e, se calhar, não é isso que interessa quando represento e até pode ser por isso que gosto cada vez menos de representar.
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Porque é que acha que é um mau actor?
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Nunca fui actor. Os actores são pessoas que encontram os desejos dos outros, e eu nunca encontrei os desejos dos outros. Sempre trabalhei em espectáculos feitos por mim ou pelo luís Miguel, o que ia dar ao mesmo. Sou criador de espectáculos, encenador, porteiro… Calhou-me algumas vezes ser actor, mas detesto deitar-me tarde. E a história de vir para casa às 11 da noite e deitar-me às duas da manhã é-me impensável, tal como o vazio que a vida de actor é. Não suporto a angústia de representar à noite. Gosto de acordar cedo e de trabalhar de manhã. Agora, como os telejornais são gigantescos, consigo adormecer a meio.
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Cruzou-se, como conta no livro, com vária figuras interessantes do último século. Quando esses encontros aconteciam, tinha a noção da importância dessa pessoas?
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Nalguns casos não. Tenho uma muito engraçada sobre pessoas célebres e que não está no livro. Quando estudei em Londres, tinha um quarto muito agradável, com duas camas. Um dia, um amigo canadiano perguntou-me se me importava de receber um amigo dele. Chamava-se David e só se interessava por artes plásticas. Durante o tempo em que lá ficou encontrámo-nos poucas vezes. Era simpático, mas muito recatado. Passados uns anos, jantei com o meu amigo Erik. Fazíamos 40 anos. No jantar, ele perguntou-me: «então já viste o que é que aconteceu ao David?» «Qual David?», perguntei. O David que tinha ficado no meu quarto era o Cronemberg. Dormi com o Cronemberg e não o sabia de todo.
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É uma vida cheia?
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Sim. É uma vida privilegiada. Foi uma sorte ter nascido naquela época. Muitas pessoas gostavam de ter tido as mesmas oportunidades e não as tiveram, com o fim do fascismo e com a Gulbenkian a funcionar. Quando apareço, já muita coisa existia. Os outros já as tinham inventado, como aconteceu com o Cinema Novo. Se invento alguma coisa é no teatro.
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Nunca escreveu um romance?
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Tentei escrever um romance e não deixo de colocar de lado essa hipótese. Quem sabe em A Mesa Está Posta...
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Qual é o futuro?
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O passado foi bem passado, como os bifes. O futuro não sei. Já cá cantam 58 anos. Sou feliz.
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E não tem medo de ficar sozinho?
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Não. Dá-me um certo prazer ficar sozinho. Sou masoquista suficiente para tal. Foi uma coisa que o Tati me ensinou na estreia de Play Time: «Este filme vai acabar comigo, mas eu sei que fiz uma coisa que mais ninguém vai conseguir fazer», disse-me ele. É essa sensação de que este já cá canta, mesmo que não consiga fazer mais nenhum filme, mesmo que fique na miséria, mesmo que não tenha reforma… Direi sempre: «Este já cá canta.» Tive tanta sorte, nunca fui empregado de ninguém, trabalhei sempre no que queria, vivi um pouco por toda a Europa, sem grandes responsabilidades, sem grande dinheiro… Mas consegui atravessar este mundo à vontade. Fantástico! Tenho esta sensação de que estou sozinho, mas hei-de persistir. Há uma frase de Margaret Mead que diz: «Nunca duvides que um pequeno grupo de pessoas que pensa e age pode mudar o mundo. De facto, foram os únicos que o fizeram.» Vinha de uma exposição em Londres em que reunião os trabalhos de Klee, Macke e Moilliet. Três homens que, andando pela Tunísia, mudaram o mundo em três dias, mas não sabiam o que tinha mudado. O que me interessa é estar com essas duas ou três pessoas.

2 comentários:

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