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O último patuleia das letras, conservador e insurrecto
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Abjeccionismo. Pacheco não foi surrealista, mas um clássico que utilizou a libertinagem
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“Eu sou um atraso de vida, porque sou um gajo de 1800 e tal ou 1900. Olha, nunca andei de avião”, declarava Luiz Pacheco, em entrevista a Carlos Quevedo e Rui Zink, para a revista K, de Julho de 1992. Um exercício de auto-análise muito lúcida.
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O mito do Pacheco surrealista não passa disso mesmo, de um mito. O autor de O Teodolito acompanhou os surrealistas portugueses – o surrealismo chegou cá com décadas de atraso – e outros vanguardistas, mas é um clássico: escrevia o português de Camilo Castelo Branco, condimentado com a oralidade da língua portuguesa da segunda metade do século XX. Isto significa que Pacheco é uma espécie de porta aberta que conduz do passado para o presente. Outros houve antes dele: Fialho de Almeida, por exemplo. Fialho foi panfletário, Pacheco também; Fialho foi polemista, Pacheco também; Fialho foi um camiliano apimentado pela Geração de 70, Pacheco foi um camiliano fecundado pelo surrealismo.
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Pacheco nunca escreveu romances porque a sua literatura era de urgência: de matar a fome, de zurzir os bonzos que mandavam nas letras pátrias, de atacar o salazarismo a golpes de impropérios e gargalhadas, não por causa da condenação lavrada por André Breton contra o género. Deixou-se proteger por um guarda-chuva inventado por ele e pelos seus amigos do lisboeta Café Gelo – Mário Cesariny, António José Forte, Virgílio Martinho, Manuel de Lima, etc. – o abjeccionismo. Uma espécie de revolução individual e colectiva, sobretudo individual, que se exprimia no nojo. A ditadura política do salazarismo e a ditadura dos costumes herdada da Inquisição deixaram marcas na obra de todos eles.
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O principal texto do abjeccionismo foi precisamente da autoria de Luiz Pacheco. O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor. E não há narrativa mais portuguesa no seu falhanço: um libertino, o próprio Pacheco, é claro, tenta conquistar, em Braga, uma rapariguita; ele adorava rapariguitas e por causa delas bateu várias vezes com os costados na cadeia. Nada consegue. Tenta a sorte com um magala, numa muito desamparada investida homossexual. Nada. A noite acaba tristemente em masturbação solitária.
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O contraponto de O Libertino… é o belo monólogo Comunidade, elogio da família-clã, da paternidade, da filharada. Porque o autor, defendendo embora o aborto livre, defendia também a procriação. Aspecto esquecido da sua obra é o da sensibilidade para o tempo que passa; leia-se a narrativa A Velha Casa, antologiada em Exercícios de Estilo: “Olhou para onde há pouco havia sol e já não o viu.”
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Com Pacheco morre certo Portugal antigo. Contraditoriamente conservador e insurrecto. Luiz Pacheco foi o último patuleia das letras.
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[Torcato Sepúlveda, DN, 7/1/2008]
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Abjeccionismo. Pacheco não foi surrealista, mas um clássico que utilizou a libertinagem
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“Eu sou um atraso de vida, porque sou um gajo de 1800 e tal ou 1900. Olha, nunca andei de avião”, declarava Luiz Pacheco, em entrevista a Carlos Quevedo e Rui Zink, para a revista K, de Julho de 1992. Um exercício de auto-análise muito lúcida.
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O mito do Pacheco surrealista não passa disso mesmo, de um mito. O autor de O Teodolito acompanhou os surrealistas portugueses – o surrealismo chegou cá com décadas de atraso – e outros vanguardistas, mas é um clássico: escrevia o português de Camilo Castelo Branco, condimentado com a oralidade da língua portuguesa da segunda metade do século XX. Isto significa que Pacheco é uma espécie de porta aberta que conduz do passado para o presente. Outros houve antes dele: Fialho de Almeida, por exemplo. Fialho foi panfletário, Pacheco também; Fialho foi polemista, Pacheco também; Fialho foi um camiliano apimentado pela Geração de 70, Pacheco foi um camiliano fecundado pelo surrealismo.
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Pacheco nunca escreveu romances porque a sua literatura era de urgência: de matar a fome, de zurzir os bonzos que mandavam nas letras pátrias, de atacar o salazarismo a golpes de impropérios e gargalhadas, não por causa da condenação lavrada por André Breton contra o género. Deixou-se proteger por um guarda-chuva inventado por ele e pelos seus amigos do lisboeta Café Gelo – Mário Cesariny, António José Forte, Virgílio Martinho, Manuel de Lima, etc. – o abjeccionismo. Uma espécie de revolução individual e colectiva, sobretudo individual, que se exprimia no nojo. A ditadura política do salazarismo e a ditadura dos costumes herdada da Inquisição deixaram marcas na obra de todos eles.
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O principal texto do abjeccionismo foi precisamente da autoria de Luiz Pacheco. O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor. E não há narrativa mais portuguesa no seu falhanço: um libertino, o próprio Pacheco, é claro, tenta conquistar, em Braga, uma rapariguita; ele adorava rapariguitas e por causa delas bateu várias vezes com os costados na cadeia. Nada consegue. Tenta a sorte com um magala, numa muito desamparada investida homossexual. Nada. A noite acaba tristemente em masturbação solitária.
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O contraponto de O Libertino… é o belo monólogo Comunidade, elogio da família-clã, da paternidade, da filharada. Porque o autor, defendendo embora o aborto livre, defendia também a procriação. Aspecto esquecido da sua obra é o da sensibilidade para o tempo que passa; leia-se a narrativa A Velha Casa, antologiada em Exercícios de Estilo: “Olhou para onde há pouco havia sol e já não o viu.”
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Com Pacheco morre certo Portugal antigo. Contraditoriamente conservador e insurrecto. Luiz Pacheco foi o último patuleia das letras.
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[Torcato Sepúlveda, DN, 7/1/2008]
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