28.3.08

Mário Cesariny: a entrevista ao Independente (1988)

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Está quase a fazer 20 anos que saiu o primeiro número d’ O Independente. Foi a 20 de Maio de 88 e logo no primeiro número foi publicada esta entrevista a Mário Cesariny feita por Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas:
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A CONVERSA DE CESARINY
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Mário Cesariny é um génio mas não tem culpa. Os génios fazem falta em Portugal. Cansado por causa da inauguração da sua exposição, na véspera, informa-nos que tomou um comprimido para espevitar. Deita-se ao comprido arranjando as almofadas. Está mortiço. Ri-se: «Se calhar tomei a pastilha errada». Levanta-se. Liga um Grundig gigantesco dos anos 50. Sai ópera. Deita-se. Depois levanta-se outra vez. Puxa pelo fio eléctrico e com um safanão desliga a telefonia. Passaram dois minutos. Volta a deitar-se. Olha à volta. Anima-se: «Se calhar, já posso tomar um Optalidon!» Levanta-se e vai ao tupperware onde tem os remédios. Com um sorriso de puto-da-cola mete o comprimido na boca e diz: «Agora vamos ver como é que a diligência salta!» A diligência salta.
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O Independente – Lê jornais?
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Mário Cesariny –
O «Diário de Notícias» todas as manhãs. Eu acho que até é um bom jornal, mas quando a gente acaba de ler é um desânimo muito grande. Também não sei o que é que se devia ler…
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Porque é que fica desanimado?
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São só desgraças… Ardeu o poço do petróleo, mataram três à esquina da brasserie, sida aumenta, vulcão explode. Isto são as notícias em Portugal. Aliás… se os jornais dessem notícias felizes, vinha tudo para a rua, era uma revolução. Assim, as pessoas ficam em casa cheias de medo.
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Compra jornais para o fim-de-semana?
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O «Expresso» e o «Semanário». Mas é outro horror, por causa do peso – são quase trinta toneladas de papel, mas lêem-se num instante.
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Gosta da televisão?
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É raro. A televisão ainda dá piores notícias. Tenho vontade de escrever cartas, partir o aparelho.
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A televisão é má em si própria?
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É um abuso. Havendo alguém em casa é impossível não a abrir, depois é impossível não a olhar. A televisão é um narcótico: boa para os governos e para a polícia.
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Não tem utilidade?
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Só para os casais desavindos e para as discussões de família. Põem-se todos a ver e daí a dez minutos acabou.
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Porque é que os portugueses gostam de ver televisão espanhola?
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Porque sempre se percebe menos.
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É sócio do Grémio Literário?
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Fui proposto. Morreu não sei quem e o Sales Lane, com boa vontade, propôs-me. Tentei averiguar se podia lá ir comer à borla. Eu só queria aproveitar uma vez por mês… Mas não – é só para pôr um fato giro e ir como os outros. Portanto, não me interessou.
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Tem ligações à Associação Portuguesa de Escritores?
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Acho que sempre paguei quotas até que percebi que ninguém paga – e deixei de pagar. Aquilo não serve para nada… nem dado.
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Dá prémios…
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O David Mourão-Ferreira recebeu quatro no mesmo ano. Ora, quatro prémios pela mesma coisa dá uma imagem de país de imbecis e doidos varridos. Isto contado em França dava cancelamento de passaporte.
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Porque é que os escritores nacionais têm pouco conhecimento dos estrangeiros?
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Tiraram-lhes a Galiza. A mim não me faz falta; mas a eles, a isto aqui… Sempre era mais gente para ajudar.
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A Biblioteca Nacional serviu-lhe de alguma coisa?
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Gosto da gente de lá. E fiz lá um estudo obre a literatura de cordel.
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Usa dicionário?
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Consulto muitas vezes. Primeiro, porque estou um bocado desmemoriado. Segundo, porque já apanhei três reformas ortográficas. Põe acento, tira acento; e há o caso do c, que nunca se sabe onde fica, se no bolso se à cabeça.
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NOVOS ESCRITORES
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Conhece os novos escritores?
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O Dante impressiona-me muito. A história do novo para mim não funciona. O actual é um bocado perigoso.
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A sério…
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Há por aí um espanhol que jura que o Sol anda à volta da Terra. É muito interessante.
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Mários Cláudios, Saramagos, dizem-lhe alguma coisa?
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Ainda não li. Mas pergunto a pessoas de confiança. E tenho duas informações curiosas. Chega-se à oitava página do Saramago e ainda não se viu um ponto final. É a primeira. A segunda é que diz mal do D. João V. Mas a família real não era nada daquela besteira.
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Agustina é um caso.
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A gente abre uma página do livro dela e percebe que é boa em qualquer parte do mundo. Complica, mas isso não é defeito.
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Confia nos críticos literários?
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Não me costumam dizer se um livro é uma novela histórica ou uma ficção científica. Li na revista mexicana «Vuelta» que o Memorial do Convento é uma novela histórica. Aqui não dizem o que é nem se chega a saber se gostaram ou não.
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Foi sempre assim?
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O Gaspar Simões faz muita falta. Mesmo quando dizia asneiras a gente sabia onde ele estava e ele sabia quem era. Depois de ele se ter ido embora não há outra referência. O Gaspar Simões ensinou muitos escritores como se escreve. Ele dizia que isto estava bem; e aquilo, mal. O Alves Redol, no livro seguinte, emendava.
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E o Eduardo Prado Coelho?
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Aqueles artigos de três páginas que ele publicava no «Diário de Lisboa», sobre o neo-realismo, a semiótica e a metalinguagem! Depois deixou-se disso… e eu sinto falta.
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PROBLEMAS CONTEMPORÂNEOS
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Vai ao teatro em Portugal?
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Nunca. Sempre foi mau e agora exageram.
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Gosta das cidades?
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Porto e Lisboa, sim. Coimbra não me convence, não me apetece descer do comboio.
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Tem parecer sobre as amoreiras?
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Não acho mal. É uma extravagância. O monumento aos Descobrimentos em Belém é muito pior. Devia ser rapado dali.
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Prefere a Lisboa Pombalina?
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A Baixa desenhada pelo Marquês é fantástica. Tem as proporções certas – não humilha nem envergonha. A Baixa podia ser Nova Iorque no século XVIII.
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Porque é que toda a gente passa férias no Algarve?
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Não vale a pena protestar. Acho que são todos ingleses, já. O mais engraçado é que o Algarve é o único sítio do mundo onde há ingleses pobres. Electricistas e gente assim…
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O Cesariny fuma a rodos. O Estado quer proibir o tabaco…
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Cada época tem os seus puritanismos. Agora é o tabaco. Há uns dias ia de táxi e ouvi uma descompostura medonha. O condutor era um rapaz novo e começou a praguejar – porque os senhores são assassinos, prejudicam o próximo, portam-se como suicidas. Tive de o mandar parar e saí. Paguei só para não ter de o ouvir mais.
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Mas o cigarro vale a pena?
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O fumo dos cigarros é o luxo dos pobres. Quem não tem dinheiro para ir ao cinema acende um cigarrito. Alivia.
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E o 25 de Abril?
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Foi uma revolução ortodoxamente neo-realista, com Óscar Lopes em presidente de Portugal.
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Colonialismo, ainda há?
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Começou outro. Quando o Samora Machel cá veio foi ver a Sé Velha a Coimbra. Ficou encantado – isto é que é! Estava deslumbrado. Percebi, então, que os chefes africanos não querem ser chefes africanos. Sonham com o Reagan, o De Gaulle, o Salazar. Imaginem o Hegel a 60 graus à sombra! Falam de Marx. Isto é, dispensam o que é verdadeiramente negro. A verdadeira colonização começa agora.
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Quem se dá mais ao respeito: um rei ou um presidente?
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Um, outro ou nenhum. Mas esta história do Gorbachev faz-me pensar nisso. Dizem que é bem intencionado. Mas vai falhar. E se falhar é porque não tem a coragem de ir ao tesouro imperial dos czares. Ia lá, agarrava na coroa e punha-a na cabeça. Mal o fizesse, aquelas repúblicas maravilhavam-se. É como os ingleses. A rainha não serve para nada, mas há um sagrado que conta. Só não sou monárquico por não haver eleições tibetanas, em que os velhos vão aos tugúrios e escolhem uma criancinha. Às vezes, claro, também se enganam.
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PORTUGAL E A EUROPA
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Sente-se bem na Europa?
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A CEE quer dizer: tu plantas batatas, ele planta tomates, os morangos vêm de acolá, as calças de ganga fazem-se ali. Depois, todos consumimos. Isso é o lado melhor.
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Traz dinheiro.
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As massinhas que vêm, acho que já foram todas gloriosamente gastas a comprar automóveis e quintarolas. Mas a Europa não se deve zangar muito com isso. Ao menos, nós nunca faremos a bomba atómica.
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Portugal é europeu?
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As instituições são. O povo não. Mas eu gosto do atraso. Digo mal da Europa mas, apesar de tudo, é um quadrado onde nos deixam morrer à vontade. Viver é que não.
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O português não pode ser internacional?
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Eu já andei à procura do esquimó. Essa ideia da nação, no sentido mais antigo, está além-fronteiras. Quer dizer, o português pode ser alheio à coisa nacional e à coisa internacional. Não há ninguém tão português como o Teixeira de Pascoaes. Os pés e os sapatos dele são portugueses. Mas o resto dele é universal. Não tem que ver com Lisboa, Madrid ou Londres – o resto dele á com as estrelas.
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Os portugueses mudaram.
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Já não há povo que queira ser povo. Era povo, e queria sê-lo, a rapariga que aparecia de lenço, o rapaz de bigode e da patilha. O povo agora tem pena de ser povo. Quer vestir ganga ou calcinha de flanela. De fora só ficam os ciganos. Continuam a ser o que já eram. E os analfabetos. São uma reserva: De gente ainda não doutrinada. Mas também devem estar a dar cabo deles.

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