29.4.08

Álvaro Lapa por Jorge Silva Melo

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Álvaro Lapa: Morte sem Sombra
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Ia a entrar no carro estacionado numa esquecida pracinha de Viseu quando tocou o telemóvel e chegou-me a notícia triste, esperada há uns meses, adiada agora: morreu o Álvaro Lapa.
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Ainda há menos de um mês estivera com ele, passara três tardes a falar, a ouvi-lo, num intervalo de bem-estar e calma daqueles que as doenças graves conferem aos homens, a falar da vida toda, da Évora dos inícios, da descoberta do mundo e da parte maldita do mundo por entre corredores de liceu, pátios, aulas, vadiagem, amigos, alguns professores admirados e rejeitados. Ainda há menos de um mês nos despedimos com um abraço e um sorriso, ainda há dias lhe enviei pelo correio o último livro do Manuel Gusmão, que ele conheceu em pequeno, garoto mesmo, pelas casa de Évora.
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Regressamos de Viseu, de um dia passado em reuniões com artistas, depois de uma estreia, dia calmo que parecia ser o primeiro da Primavera, tarde inteira ao ar livre depois de libertar o quarto do hotel, um almoço daqueles como só na Beira, enchidos, requeijão, doce de abóbora, uma província que mudou definitivamente, onde se sucedem lojas de marca, onde até há galerias de arte (a expor Pedro Portugal), companhias de dança e aquela livraria calorosa ao alto da praça onde passámos o fim de tarde, quando a noite caía e eu a ler Pasolini: rapazes e raparigas dinâmicos, com amor aos livros, à iniciativa, à actividade, um sorriso nos lábios, um orgulho, e gente a falar-me de cineclubes, acções, debates, controvérsias, ansiedade.
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É na livraria da Praça, bonita, calma, com uma pequena varanda nas traseiras, dois espaços, gente a entrar e a sair, que diferentes estão as cidades do interior deste país, diz que foi das estradas e das circulações, das universidades, é aqui que sentimos que o mundo se alterou, e se mantém um desejo, uma ansia, uma intensidade. Falo dez minutos com o rapaz do Cineclube, oiço-lhe os desafios, as informações, o desejo: tanto mundo à sua espera! E é com uma surpresa suave que regresso a Lisboa sempre que passo dois ou três dias fora, nestes teatros refeitos, com a exemplar equipa do Teatro Viriato onde esta temporada já fomos duas vezes, bem tratados, humanamente.
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Mas hoje, ao entrar no carro, veio esta sombra da morte poisar sobre a noite negra. E venho pela auto-estrada a lembrar-me dos encontros que não tive, das conversas que não houve, da resposta que não dei, do irreparável que a morte nos revela sempre, a nós que gostamos de quem morreu e com quem nunca vivemos a aventura que um dia até pensámos ser possível viver em comum. Voltam-me os dias em que via o Álvaro Lapa de longe, depois de perto, ali pelo Marquês, ao pé da Buchholz, com o Rui-Mário Gonçalves a dirigir as operações, conversas num café em frente, cartas trocadas, aquela ida ao Porto quando ele inaugurou a exposição no Museu Soares dos Reis, intensa mostra que foi um primeiro balanço de vida, tanta coisa vivida às vezes de muito perto, outras de mais longe, num segredo.
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E volta-me a imagem daqueles anos ainda 50 vividos em Évora, a sair da adolescência, o retrato que lhe fez o Cutileiro, envolto em fumo na casa do Charrua, adolescente que vê o mundo inteiro à sua frente e o quer para si, petulante, ousado, misterioso. E imagino-os, arrogantes, sem um tostão, folheando revistas, procurando informações nas livrarias de Évora ou nas fugazes vindas a Lisboa, ele, o Paolo, o Joaquim Bravo, o Henrique Ruivo, ansiando, ansiosos, hereges, libertando-se de liberdade e coragem numa cidadezinha pesada, sorumbática, claustro censório. Que ousadia, aqueles finais dos anos 50 com os saberes conquistados e partilhados, autodidactas, corajosos, determinados, incorruptíveis, com o futuro inteiro à sua frente e tão pouca coisa para se defenderem do presente, tão irremediáveis, tão incuráveis!
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As cidades de província mudaram entretanto, deixo Viseu com a tranquilidade de que ali se está a viver com uma nova noção do que é responsabilidade e aventura, risco e alegria. Mas não posso deixar de saudar aqueles rapazes e raparigas que, numa cidade de província, há cinquenta anos, debaixo da ditadura, mesmo à sombra da Pide e da Legião, ousaram desafiar não apenas a cidade, mas a autoridade: a escola, o ensino, as belas-artes, o saber. E o conquistaram.
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Álvaro Lapa terá morrido e a sua modéstia ética fê-lo, anos a fio, recolher-se do mundo, eremita na sua casa de Leça, tímido, caloroso, atento e no entanto distante de tanta coisa. Mas a aventura da sua vida é nossa; e nasceu de uma cidadezinha de província, Évora, onde o Inverno era frio e o Verão sem sombra.
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[Jorge Silva Melo, in Século Passado, Cotovia, 2007]

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