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Em Março deste ano o Ípsilon publicou uma reportagem de Joana Gorjão Henriques sobre os editores que trabalham os livros com os escritores, como na tradição anglo-saxónica. Um dos casos apresentados foi a &etc, dando como exemplo os livros de Alberto Pimenta e as sugestões de Vitor Silva Tavares. Aqui fica:
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VITOR SILVA TAVARES DESCOBRIU O TÍTULO DO ÚLTIMO LIVRO DE ALBERTO PIMENTA
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É uma relação editor-autor que dura há 30 anos. Vitor Silva Tavares é o primeiro leitor da poesia de Alberto Pimenta. Lê e faz sugestões que o poeta “quase sempre” aceita e considera “boas”.
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Houve um “sopro” que saltou do último livro de poesia de Alberto Pimenta.
Como noutras vezes, Vitor Silva Tavares, o editor, estava a ler um poema e teve “uma certa reticência” num verso. Alberto Pimenta reparou na sua expressão. “Eu disse logo: é o sopro.”
Alberto Pimenta já tinha a noção de que era preciso outra palavra. Andou à procura, não teve tempo, não conseguia saí dali – e o facto é que Vitor Silva Tavares tropeçou nela. “Está ver o tipo de mergulho no poema e a minudência com que se faz este mergulho?”, pergunta o editor da &etc.
O sopro saiu e ficámos sem saber que palavra entrou na “Planta Rubra”, o livro. Como também não saberemos que título tinha antes deste. “Esta planta rubra aparece tantas vezes [no livro] e eu arranjei um título complicadíssimo. ‘Porquê um título tão complicado havendo uma coisa tão boa que já cá está?’, [perguntou o editor]. E eu disse logo: ‘Pois é evidente.’”
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Vitor Silva Tavares recusa a ideia de ter sido sua a ideia. Atribui-a ao texto, “que disse a autor”, por seu “intermédio”, “que o título devia ser aquele”: “Limitei-me a ser o porta-voz daquilo que já lá estava, era o texto que estava a pedir que fosse aquele o título.” Não é uma sugestão do exterior porque a sua leitura do poema “é um mergulho dentro do texto do Alberto”. “E é de dentro dele que posso ou não sugerir, aqui ou acolá, algo que me fez tropeçar nessa linha da leitura, a um tempo sensível e crítica – e em casos muito pontuais, porque regra geral existe uma enorme sintonização e cumplicidade, não apenas relativamente ao texto mas à própria feitura do livro, para que possa sair uno, do ponto de vista estético.”
São mais de 30 anos de relação editor-poeta, desde “HomoSapiens”. Sabendo que, como já dissemos, na &etc só se publicam textos de que Vitor Silva Tavares gosta – e se assim é “normalmente, não irá mexer profundamente no texto, quando muito faz sugestões”, diz Alberto Pimenta. “E não o fará a todos mas faz a mim e sou eu que lhas peço. Não tenho ninguém com quem conversar acerca das coisas que escrevo e isso faz falta. De maneira que, como escrevo sozinho numa obsessão cada vez maior e como sei que, a certa altura, já não sei bem ali como é, sempre que lhe entrego um manuscrito digo-lhe ‘Diga-me o que é que acha’. E ele diz o que é que acha e eu quase sempre aceito as sugestões e considero boas.”
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Não há ninguém, nem mesmo Vitor Silva Tavares, a quem Alberto Pimenta mostre os manuscritos – quando sente que tem interesse, reúnem-se para jantar. O livro está terminado, mas não tem o ponto final. “Nos últimos quatro, cinco livros deixei de usar pontuação, o que obriga a um ritmo muito bem marcado de verso para verso. Aí o Vitor também detecta muito bem, melhor que eu, às vezes.”
Por ser poesia, não significa que exista uma relação diferente com a sugestão, ela não tem nem maior nem menor peso para Alberto Pimenta. “Pode ser uma questão de ritmo, em encontrar subitamente um termo que, pelo número de sílabas que tem, passe de um verso para o verso seguinte.” Pequenas coisas que podem alterar a leitura, “e, no momento que que alteram a leitura, alteram o texto”. Uma vez que quando escreve poesia “escreve 20 vezes o mesmo texto”, ou seja, “o mesmo texto pode ter 20 formas”, isso significa que o poeta as aceitou em algum momento. “E porque é que não pode haver uma 21ª hipótese”, levantada pelo editor?
Esta 21ª hipótese não se trata – “é impossível” – de uma sugestão “Olhe, transforme aí o segundo capítulo”. “Não é o segundo capítulo que tem de se transformar, o que tem de se transformar são pontos ao longo do livro para que tudo conflua para um rio que corre”.
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Confirmações do que já suspeitava
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As sugestões que Pimenta incorpora, sente-as depois como suas? “Não são tão extensas, mas são aquelas confirmações daquilo que já suspeitava. Ou são novas, porque são formais. O autor tem que ter a capacidade de dizer: ‘vou acabar por aqui’. Senão é como os bolos: se coze demais queima. Se começa a mexer e mexer, torna-se outra coisa.”
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Fica-nos a dúvida: para um homem como Vitor Silva Tavares, que só publica aquilo de que gosta, como é gerir o gosto nas intervenções editoriais? “O meu gosto tem várias camadas, como a cebola. O mais íntimo dos íntimos nem revelo. Coíbo-me de intervir em questões que digam respeito a ideologias. Mas dentro das minhas várias camadas, que até podem disparar em várias direcções, procuro fazer uma simbiose – até que ponto é que cada uma das coisas que chegam à minha mão vai ao encontro de um determinado tipo de gosto que tenho. Não vou intervir porque aquilo vai chocar com o meu gosto. Aí costumo ter um ponto de partida, o que não quer dizer que seja um ponto de chegada, uma frase do Luiz Pacheco: o autor tem sempre razão. Já tenho feito intervenção nesse sentido: há certos autores que usam nas suas poesias muitos ramalhetes de flores, muita hortaliça, muitos miosótis. E eu sou um bocado avesso a tanta botânica no interior da poesia. Até por causa da própria história da poesia, o recurso à imagem que necessite de flores põe-me pele de galinha. É isto uma questão de gosto? É, mas advém da própria história, das modulações estéticas que se foram operando desde que existe poesia portuguesa.”
Que fique claro: o “sopro” que saltou do poema de Alerto Pimenta não foi uma questão de gosto. Pareceu-lhe apenas que a palavra usada era “dissonante”, “pouco significava para a compreensão mais profunda do poema”.
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[Joana Gorjão Henriques, Ípsilon (suplemento do Público) de 14/03/2008]
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VITOR SILVA TAVARES DESCOBRIU O TÍTULO DO ÚLTIMO LIVRO DE ALBERTO PIMENTA
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É uma relação editor-autor que dura há 30 anos. Vitor Silva Tavares é o primeiro leitor da poesia de Alberto Pimenta. Lê e faz sugestões que o poeta “quase sempre” aceita e considera “boas”.
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Houve um “sopro” que saltou do último livro de poesia de Alberto Pimenta.
Como noutras vezes, Vitor Silva Tavares, o editor, estava a ler um poema e teve “uma certa reticência” num verso. Alberto Pimenta reparou na sua expressão. “Eu disse logo: é o sopro.”
Alberto Pimenta já tinha a noção de que era preciso outra palavra. Andou à procura, não teve tempo, não conseguia saí dali – e o facto é que Vitor Silva Tavares tropeçou nela. “Está ver o tipo de mergulho no poema e a minudência com que se faz este mergulho?”, pergunta o editor da &etc.
O sopro saiu e ficámos sem saber que palavra entrou na “Planta Rubra”, o livro. Como também não saberemos que título tinha antes deste. “Esta planta rubra aparece tantas vezes [no livro] e eu arranjei um título complicadíssimo. ‘Porquê um título tão complicado havendo uma coisa tão boa que já cá está?’, [perguntou o editor]. E eu disse logo: ‘Pois é evidente.’”
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Vitor Silva Tavares recusa a ideia de ter sido sua a ideia. Atribui-a ao texto, “que disse a autor”, por seu “intermédio”, “que o título devia ser aquele”: “Limitei-me a ser o porta-voz daquilo que já lá estava, era o texto que estava a pedir que fosse aquele o título.” Não é uma sugestão do exterior porque a sua leitura do poema “é um mergulho dentro do texto do Alberto”. “E é de dentro dele que posso ou não sugerir, aqui ou acolá, algo que me fez tropeçar nessa linha da leitura, a um tempo sensível e crítica – e em casos muito pontuais, porque regra geral existe uma enorme sintonização e cumplicidade, não apenas relativamente ao texto mas à própria feitura do livro, para que possa sair uno, do ponto de vista estético.”
São mais de 30 anos de relação editor-poeta, desde “HomoSapiens”. Sabendo que, como já dissemos, na &etc só se publicam textos de que Vitor Silva Tavares gosta – e se assim é “normalmente, não irá mexer profundamente no texto, quando muito faz sugestões”, diz Alberto Pimenta. “E não o fará a todos mas faz a mim e sou eu que lhas peço. Não tenho ninguém com quem conversar acerca das coisas que escrevo e isso faz falta. De maneira que, como escrevo sozinho numa obsessão cada vez maior e como sei que, a certa altura, já não sei bem ali como é, sempre que lhe entrego um manuscrito digo-lhe ‘Diga-me o que é que acha’. E ele diz o que é que acha e eu quase sempre aceito as sugestões e considero boas.”
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Não há ninguém, nem mesmo Vitor Silva Tavares, a quem Alberto Pimenta mostre os manuscritos – quando sente que tem interesse, reúnem-se para jantar. O livro está terminado, mas não tem o ponto final. “Nos últimos quatro, cinco livros deixei de usar pontuação, o que obriga a um ritmo muito bem marcado de verso para verso. Aí o Vitor também detecta muito bem, melhor que eu, às vezes.”
Por ser poesia, não significa que exista uma relação diferente com a sugestão, ela não tem nem maior nem menor peso para Alberto Pimenta. “Pode ser uma questão de ritmo, em encontrar subitamente um termo que, pelo número de sílabas que tem, passe de um verso para o verso seguinte.” Pequenas coisas que podem alterar a leitura, “e, no momento que que alteram a leitura, alteram o texto”. Uma vez que quando escreve poesia “escreve 20 vezes o mesmo texto”, ou seja, “o mesmo texto pode ter 20 formas”, isso significa que o poeta as aceitou em algum momento. “E porque é que não pode haver uma 21ª hipótese”, levantada pelo editor?
Esta 21ª hipótese não se trata – “é impossível” – de uma sugestão “Olhe, transforme aí o segundo capítulo”. “Não é o segundo capítulo que tem de se transformar, o que tem de se transformar são pontos ao longo do livro para que tudo conflua para um rio que corre”.
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Confirmações do que já suspeitava
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As sugestões que Pimenta incorpora, sente-as depois como suas? “Não são tão extensas, mas são aquelas confirmações daquilo que já suspeitava. Ou são novas, porque são formais. O autor tem que ter a capacidade de dizer: ‘vou acabar por aqui’. Senão é como os bolos: se coze demais queima. Se começa a mexer e mexer, torna-se outra coisa.”
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Fica-nos a dúvida: para um homem como Vitor Silva Tavares, que só publica aquilo de que gosta, como é gerir o gosto nas intervenções editoriais? “O meu gosto tem várias camadas, como a cebola. O mais íntimo dos íntimos nem revelo. Coíbo-me de intervir em questões que digam respeito a ideologias. Mas dentro das minhas várias camadas, que até podem disparar em várias direcções, procuro fazer uma simbiose – até que ponto é que cada uma das coisas que chegam à minha mão vai ao encontro de um determinado tipo de gosto que tenho. Não vou intervir porque aquilo vai chocar com o meu gosto. Aí costumo ter um ponto de partida, o que não quer dizer que seja um ponto de chegada, uma frase do Luiz Pacheco: o autor tem sempre razão. Já tenho feito intervenção nesse sentido: há certos autores que usam nas suas poesias muitos ramalhetes de flores, muita hortaliça, muitos miosótis. E eu sou um bocado avesso a tanta botânica no interior da poesia. Até por causa da própria história da poesia, o recurso à imagem que necessite de flores põe-me pele de galinha. É isto uma questão de gosto? É, mas advém da própria história, das modulações estéticas que se foram operando desde que existe poesia portuguesa.”
Que fique claro: o “sopro” que saltou do poema de Alerto Pimenta não foi uma questão de gosto. Pareceu-lhe apenas que a palavra usada era “dissonante”, “pouco significava para a compreensão mais profunda do poema”.
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[Joana Gorjão Henriques, Ípsilon (suplemento do Público) de 14/03/2008]
1 comentário:
Eis aqui dois grandes homens da cultura de Portugal, da Europa, do Mundo. Digo, e assino por baixo, mesmo correndo o risco de ambos me mandarem ir catar caracóis nas Galápagos - sabendo eles, e nós também que, como Pimenta escreveu uma vez, «basta lançar um olhar em redor para ver como tanta gente confunde a cultura com a cabeça atada». Não é, evidentemente, o caso desta dupla única e irrepetível, prova viva de que a dignidade ainda é uma palavra com sentido. Mesmo em Portugal.
Num tempo de tantas ignomínias, é bom saber que o Alberto e o Vítor andam por aí. Atentos, como sempre, mas nunca veneradores e muito menos obrigados seja ao que for. Salut!, meus irmãos.
E, já agora, que nunca o «funcionário» se deixe descansar...
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