14.10.08

Dinis Machado por Clara Ferreira Alves

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Dinis, o Deus das pequenas coisas
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Estava pouca gente. Os enterros de escritores costumam ser mais concorridos, com muita celebração e muita elegia, a admiração dos amigos e dos leitores, e esse sentimento difuso dos que julgam conhecer um desconhecido pelo simples facto de o terem lido. Na verdade, Dinis Machado, o escritor de O Que Diz Molero, o bom malandro chamado Dennis McShade, não cabia em nenhum armário ou nomenclatura, não cabia em nenhum fato por medida. Não era reconhecido pelas catedrais do saber nem pelas academias, não era objecto de teses ou cerimónias. Teve bons editores e foi lido pelos seus leitores, e muito lido no caso do Molero, com uma atenção e um culto que merecem as coisas novas que nunca existiram antes, ou nunca existiram assim, porque a literatura existe sempre e a boa escrita também, e as duas carregam o corpo do escritor para a cripta do "best-seller". O Que Diz Molero, um livrinho saído da experiência da infância lisboeta de Dinis Machado e da imaginação delirante do adulto que resolve inventar uma linguagem nova para contar sobre personagens e mundos novos, é uma obra original, e isto de poucos livros pode ser dito.
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Original pela narrativa, pela forma, pela linguagem, pela história, pelas personagens, pela utilização do tempo e do espaço, pela medida certa do que deve ficar e do que deve sair da frase até ela ser considerada perfeita. Uma história da rua e das estrelas que o teatro revelou como um lugar sem pecado original, um lugar isento da convenção literária ou plástica. Um lugar de liberdade absoluta do verbo, graças ao Nuno Artur Silva e ao António Jorge Gonçalves, dois devotos que reinventaram Molero no palco. O Que Diz Molero foi assim um livro e uma peça que não cabem em categorias, uma espécie de vanguarda estética, a última coisa que o Dinis esperaria. A humildade cívica, moral e intelectual que fazia dele um grande ser humano e um grande conversador, nunca conseguiu conviver com a modernidade daquela escrita, rara nos realismos da altura.
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Quando o conheci, nos idos de 80, o Dinis andava triste. Morava sozinho numa casa modesta de uma avenida de Lisboa, tinha ficado viúvo, não sabia se voltaria a escrever. Só sabia escrever quando lhe apetecia. Era, como o José Cardoso Pires, escritor bissexto, mais do que bissexto, escasso, escassíssimo. Era então um homem de cinquenta e tal anos, encurvava os ombros ao falar e tinha no olhar uma sombra de malícia que remetia para os apartes da conversa, o sumo da coisa. O Dinis foi sempre um grande comentador das pequenas coisas da vida, dos pequenos acasos, das pequenas picardias, dos pequenos encontros. Eram um modo de viajar, não tinha dinheiro para mais. E por trás estavam os filmes e os policiais, a banda desenhada, em que ele lia a realidade a cores e preto e branco. O cinema era uma paixão, e o Dinis lembrava-se sempre de um filme a propósito, e havia uma tela de cinema e uma cena de cinema, com actores de cinema, no dia-a-dia da sua obscuridade. Às vezes, penso que ele viveu assim, nessa obscuridade desejada, porque se sentia sentado num cinema, à espera da luz do ecrã e que o filme começasse. Um dos seus grandes amigos, já morto, era o Pedro Bandeira Freire, o homem do Quarteto. Outro foi, durante uma época, António Lobo Antunes, que ouvi chamar ao Dinis "o sétimo irmão". E outro Cardoso Pires. Depois afastaram-se, a amizade entre escritores de qualidade tem uma cauda comprida e muito pisada. Falou sempre deles com admiração e estima, eram os seus companheiros literários mais próximos, escritores de uma cidade apinhada de personagens por descobrir, personagens populares e destituídas das cortesias da aristocracia literária.
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Dinis Ramos e Machado nasceu em Lisboa e foi um homem de Lisboa. Habitou a cidade como uma personagem, não intermediando a realidade com subtilezas formais, antes a moldando até a tornar linguagem e literatura. É isto um escritor, dizem os manuais. Alguém que transcende a sua experiência e a torna universal. A Lisboa de Molero é uma Lisboa mítica, onírica, poética e profundamente real. Doentiamente real. As personagens de Molero reluzem num quotidiano cinzento. A única liberdade é a da imaginação, que se solta com um furor anárquico. Dinis Machado nasceu a 21 de Março de 1930, numa primavera de Salazar. Viveu boa parte da vida nesse regime que deu bons escritores, e viu os tempos e os costumes mudarem-se até ao fim das grandes proibições existenciais. Hoje, tudo ou quase tudo é permitido, tudo ou quase tudo é mostrado, e nesse conhecimento pornográfico do mundo, instantâneo, os pormenores perdem-se e a atenção a eles também. As pequenas coisas. "O universo machadiano", disse o Fernando Assis Pacheco, "não podia ser contado por outrem".
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Com a passagem dos anos, o Dinis foi esmorecendo. Nunca mais escreveu um livro como Molero, de 1977, e talvez ele achasse imperdoável não o ter feito. Talvez não. Os amigos elogiaram-no e partiu sozinho. A Última Fronteira, como no Molero. Foi um Mr. "DeLuxe" e um homem livre que nunca perdeu a inocência. E isto de poucos escritores pode ser dito.
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[Clara Ferreira Alves, Expresso (revista), 11-10-2008]

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