12.1.09

Rodrigues da Silva (1939-2009)

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Morreu na madrugada do dia 10 José Manuel Rodrigues da Silva, brilhante jornalista e editor do Jornal de Letras desde 1992, depois de ter passado pelo Diário Popular, Diário de Lisboa e O Jornal.
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Foi este o último texto que escreveu para o JL, publicado em 8/10/2008:
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Um imenso adeus
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Inicio hoje a célere caminhada para o esquecimento. Uma caminhada, na verdade, já iniciada há uns meses, quando, devido ao cancro, fiquei de baixa médica permanente, deixando de escrever para este jornal, para o qual escrevia, número após número (sem falhar um único) desde 1993.
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Com 68 anos de idade e doente, pedi a reforma, que note-se ninguém me impôs; impu-la eu a mim próprio, porque me recusei a prosseguir de rastos uma profissão onde me orgulho de durante 40 anos ter sempre andado de espinha direita. E meu orgulho maior sem apoio de partidos, igrejas, maçonarias, mundanismos, lobbies de qualquer espécie e quaisquer corredores de poder, que nunca frequentei, até porque jamais votei nos partidos de governo.
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Mas se digo que inicio hoje, ou iniciei já há meses, a célere caminhada para o esquecimento, é porque este é bem capaz de ser o meu derradeiro texto para o JL, jornal em cuja ficha técnica o meu nome, como editor, aparece hoje, dia 8 de Outubro de 2008, pela última vez. A partir de depois de amanhã, dia 10, estou reformado; ponto final. A pensão (à volta de 2 mil euros, mais uns picos, menos uns picos, ainda não sei ao certo) é a que é me devida após quatro décadas ininterruptas de jornalismo, antecedidas de três anos na defesa da Fé e do Império pelas plagas afr icanas. É uma reforma ligeiramente inferior à daquela rapaziada que passou uns anitos (ou nem isso) pela administração da Caixa Geral de Depósitos, e também menor do que a daquela outra rapaziada que, sem levantar cabelo, se mantém, mui quieta e posta em sossego, dez anos no Parlamento.
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Mas a vida é assim, nem todos possuem vocação deputal e, quanto ao resto, como na Fanny Owen sentenciou a Agustina, «uns têm sorte, outros têm paciência».
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Mas dizia eu do esquecimento. E dizia porque o jornalismo contém em si uma epistemológica contradição. Como historiadores do instante, os jornalistas fabricam a memória, mas, incapazes de reter a História do Jornalismo (que não é a mesma coisa que a História da Imprensa), fabricam em simultâneo o seu próprio esquecimento. Na avidez na notícia, vampirizam o presente, e o presente paga-lhes na mesma moeda: jornalista que deixe de escrever deixa de existir, para em breve nunca sequer ter existido. As stars jornalísticas do momento que se preparem: por muito que hoje andem nas bocas do mundo, um dia virá em que ninguém sabe quem são, em que ninguém sabe quem foram.
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Sei de dezenas de grandes jornalistas, a quem o jornalismo português muito deve, mas que hoje nem os próprios jornalistas sabem que existiram. Alguns, a maior parte deles já falecidos, tenho-os como meus mestres na tarimba da profissão, e podia evocá-los neste texto. Podia e talvez devesse, mas não o farei.
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Porque neste texto de despedida optei por, em vez de evocar os meus mortos, invocar os meus vivos. E os meus vivos neste momento não podem ser outros senão os camaradas do JL, um jornal fundado em 1981 e dirigido até hoje pelo Zé Carlos de Vasconcelos.
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Se sublinho isto, que toda a gente sabe, é porque faço questão de aqui declarar que, durante quatro décadas de profissão, em nenhum outro jornal gozei de tanta liberdade criativa como no JL, onde sempre escrevi o que quis e sobretudo como quis. Razão pela qual considero que é neste JL que jazem os meus melhores textos jornalísticos.
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Mas a invocação dos meus vivos não passa apenas pelo Zé Carlos. Passa também pela Maria Otília (dele e nossa secretária), pelo João Ribeiro (velho repórter fotográfico, meu companheiro de mil e um serviços), pelo Miguel Eduardo (gráfico com quem há quinze anos trabalho face a face, não raro trocando impropérios), pelas Maria João e Maria Leonor (de cujo percurso sou cúmplice há mais de duas dezenas de anos), como cúmplice sou também, mas mais recente, do Manel Halpern e até da Rita e da Marta (duas noviças que ainda não percebi se querem mesmo professar no jornalismo).
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Falta alguém a esta lista de grandes camaradas e de excelentes profissionais? Falta, sim senhor, e não por acaso, porque quis reservar para o fim dois dos mais jovens jornalistas a quem este jornal já muito deve. Sem desprimor para ninguém, o seu voluntarismo, o seu entusiasmo, o seu dinamismo, a sua solicitude e a sua generosidade são contagiantes.
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Nesta hora esperar-se-ia que eu dissesse, evocando os mortos, que ando no jornalismo há tantos anos que ainda trabalhei com A, B e C, tudo jornalistas esquecidos. Mas não é isso que eu vou dizer. O que eu vou dizer é que ando nisto há tantos anos que ainda tive o privilégio de trabalhar com o Luís Ricardo Duarte e com a Francisca Cunha Rêgo. E digo mais: digo que, graças ao modo como eles encaram e praticam a profissão, fazem parte daquela infantaria do jornalismo a que me orgulho de sempre ter pertencido. Como a restante redacção do JL, são gente da minha espécie, daquela espécie para a qual um jornalista está sempre em serviço. Isto porque o jornalismo (o verdadeiro, não a sua abjecção) é uma honra mas também um sacerdócio.
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Uma espécie que, noutros tempos, acreditava que os jornalistas iam desaparecendo, mas os jornais não; como instituições, eram eternos. Mas afinal não eram: dos dez jornais diários que se publicavam em Lisboa nesse remoto 30 Junho de 1968 em que me iniciei na profissão sobra um, e da meia dúzia de revistas então existentes, nem isso: foram-se todas. Não refiro isto por saudosismo, mas porque sei que nada, nem ninguém está seguro no jornalismo português actual. Mesmo quem pensa que está, provavelmente está-o bem menos do que julga. Daí que, neste meu texto de despedida alerte os leitores para a possibilidade de esta redacção, que durante década e meia integrei, um dia se desfazer. Como se a minha passagem à reforma fosse o início de um fim, e esse sim, seria o meu maior desgosto; um desgosto de morte. Todavia, se tal acontecer, não percam de vista o Zé Carlos, as Joões, as Leonores, os Halperns e os jovens Ricardo e Francisca. Eles todos hão-de continuar a escrever por aí, honrando a profissão. Acreditem em mim, que sou macaco de rabo pelado e ando nisto há 40 anos. Ou andava...
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Rodrigues da Silva

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