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“A não ser nas ‘editoras independentes’ (e cada vez mais timidamente, porque as condições a isso obrigam), desapareceram as colecções com um programa coerente e afirmativo. As próprias chancelas editoriais tornaram-se irreconhecíveis e as editoras mal de distinguem umas das outras: a diferença de critério editorial é cada vez mais ténue e a apresentação gráfica deixou de ser um sinal de identidade. Percebemos melhor o que se passa quando vemos o que está a acontecer com frequência: muitos livros que fazem parte do património literário nacional ou universal são editados como se fossem livros para as massas. É fácil reconhecer aqui uma anomalia da nossa situação editorial: o problema não está em editar Júlia Pinheiro, mas em editar “Amor de Perdição” como se edita “Não Sei Nada sobre o Amor”. Fazer com que um romance de Camilo passe como um produto editorial que se parece com o romance popular ou o feuilleton inventados no século XIX (veja-se a edição recente deste clássico pela Difel) é uma manobra que é preciso perceber como reveladora do que alguns editores acham dos leitores.
Este exemplo seria meramente anedótico e inócuo se não proliferassem muitos casos idênticos, se não fosse o sintoma de uma situação mais geral. Portugal é certamente o único sítio do mundo onde “Norte”, de Céline, tem uma inscrição na capa a acenar ao livro de reportagem (efeito que é acentuado pela fotografia de uma cidade bombardeada): “Uma viagem sem regresso a um mundo de violência e ruínas”; ou onde “Ulisses”, de James Joyce, é caucionado por uma citação retirada de um jornal (O Expresso, precisamente); ou, pior ainda, onde “Se Isto É Um Homem”, de Primo Levi, tem uma inscrição na capa que nos assegura tratar-se de um “Best-seller clássico da literatura mundial”. O pressuposto é sempre o mesmo: os leitores a que os livros se destinam não têm critérios para exercer o seu livre-arbítrio e para fazer escolhas é preciso atraí-los para um Joyce com os mesmos métodos com que lhes impõem uma Stephanie Meyner. Mas a verdade é que ninguém chega ao Joyce ou ao Céline por acaso, e pensar que é possível traficar estes autores à boleia dos livros de consumo imediato pode ser fatal. Eis como, progressivamente, os leitores no sentido mais próprio do termo (aqueles que sabem usar a sua razão e não precisam de ser tutelados) se afastam das livrarias. Se pensarmos que este pressuposto domina o percurso do livro em todas as suas etapas – edição, comercialização, divulgação e crítica – temos aqui o retrato de um percurso regressivo.”
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“Os leitores esclarecidos e autónomos foram banidos dos cálculos das grandes editoras e de todas as instâncias de mediação, e em vez deles entraram em cena os consumidores de livros.”
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“Por mais transformações que se tenham dado na actividade editorial, ela nunca deixou de ter um funcionamento próprio – uma dupla face –, que advém de uma tensão que a atravessa permanentemente: a tensão entre o cultural e o económico. Daí a ideia tantas vezes manifestada pelos editores de que há um certo número de códigos que importa não transgredir. Ora, querer vender Céline como se fosse prosa de reportagem pode ser uma dessas transgressões fatais: quem quer ler Céline, está consciente do que vai ler e rejeitará tal edição; quem se deixou enganar pelas dissimulações editoriais não passará da primeira página. No limite, e em jeito de caricatura da situação vigente, poderíamos dizer: editar livros é exercer uma actividade dirigida a quem não gosta de ler.”
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[António Guerreiro, Actual (suplemento do Expresso), 20-06-2009]
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