Em 2005, a propósito do lançamento de
Diário Remendado 1971-1975 (Dom Quixote), Pedro Dias de Almeida entrevistou Luiz Pacheco para a Visão (nº 652, de 1 de Setembro). Deixo-a aqui:
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GUERREIRO PACHECO
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Há três anos que não sai do 1º piso do lar da Liga dos Amigos dos Hospitais, no Príncipe Real, em Lisboa. Mas, 80 anos cumpridos, Luiz Pacheco resiste e enfrenta o mundo com os argumentos de sempre: humor, ironia, desassombramentos, inconveniências, liberdade. O libertino, esse, ficou para trás. Os textos inéditos de Diário Remendado 1971-1975 revelam mais sobre um percurso único na história da literatura portuguesa.
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Como companhia recente, Luiz Pacheco tem um novo rádio – «desses chineses, com leitor de CDs». Mas por enquanto só tem dois discos: um de Bach outro de Stravinski. Na rádio gosta de ouvir as entrevistas da TSF e Antena 1 e a música da Antena 2. Como os seus olhos pioram «de dia para dia» e não lhe permitem saídas nem leituras, é a essa máquina, e às conversas com amigos e familiares, que vai buscar uma ligação ao mundo. Nem sequer a janela – com vista, de esguelha, para o Tejo – lhe devolve o entusiasmo pela vida da cidade. Mas, calma, que Pacheco não é dado a saudades, nostalgias – e, muito menos, a arrependimentos. Nas páginas de Diário Remendado 1971-1975 (Publicações Dom Quixote), nas livrarias na próxima semana, uma das obsessões do escritor, editor e tradutor (além da literatura, do sexo, amizades e inimizades...) é a sistemática falta de dinheiro para pagar a renda da célebre «casa de Massamá» no fim do mês. Como se vê nesta entrevista, Luiz Pacheco não mudou assim tanto nestes 30 anos...
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VISÃO: Quando lê estes fragmentos da sua vida em forma de diário reconhece-se ali?
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LUIZ PACHECO: O pior é que não leio, aí é que está a gaita! Já não vou ler nada disso... Isto que vai ser editado é um fragmento, porque o diário começou no dia 1 de Janeiro de 1970, estava eu no Hospital de Santa Marta. Passavam-se semanas em que eu não escrevia nada, depois quando me dava para escrever, escrevia. E nunca lia o que estava para trás. Por vários acasos, há uns três anos, uma senhora de Coimbra trouxe, a meu pedido, uma parte do diário, fotocopiada e passada à máquina. Já não lia muito bem – mas lia melhor do que hoje – e estive aqui a desfibrar... Quando havia uma coisa que me chateava, ou que não tinha interesse nenhum, cortava o dia todo, logo. Reduzi aquilo a duas partes. O meu filho entregou as duas à Dom Quixote e tenho a impressão que meteram no livro bocados da parte que eu cortei... O que não tem grande mal.
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Mas admira esta personagem, o Luiz Pacheco no início dos anos 70?
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Oh pá, há coisas que acho bem, mas há outras que acho muito mal. Tinha nessa altura um problema sério que era o alcoolismo. Estive duas vezes internado no Júlio de Matos e uma vez em Coimbra – desintoxicação a sério, com tratamento. Saía, e estava assim uns meses sem beber, e depois recomeçava. É claro que isto me foi cansando. Mas eu também não bebia bebidas muito finas. Whisky bebi uma vez ou duas, não gosto nada, bagaço fazia-me muito mal, de maneira que era o chamado tintol da taberna e a cerveja. Não são bebidas muito alcoolizadas. É claro que não comendo, e estando a tomar drogas, como o Valium e outras porcarias, havia dias em que não gravava nada, há muitos dias em que não me lembro de nada. Nada. Mas não foi mau de todo, não foi mau de todo...
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Tem saudades desses tempos da «casa de Massamá»?
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Não é saudades, mas eram outros tempos... Tinha menos uns anitos bons. Em Massamá tivemos períodos com muito pouco dinheiro, e a gente ia-se mantendo... Porque era um pessoal, de facto, muito resistente. Havia ali um ambiente de camaradagem, de despreocupação e maluqueira, isso havia. Vivia com o meu filho Paulo. Tentei arranjar para lá um casal, ou dois ou três, para haver uma senhora que fizesse de mãe do Paulo, para ele ter um bocado de companhia.
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O Paulo é, aliás, quem aparece mais neste livro...
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O Paulocas é o pivô do livro. Eu aluguei a casa de Massamá para evitar que ele fosse para a Casa Pia. O [Carlos] Manaças não queria que o miúdo ficasse lá em casa mais tempo... E eu tive que vir à Casa Pia, aqui no Bairro Alto, para autorizar a ida dele, mas lá onde devia assinar a autorização escrevi: «Não quero o meu filho na Casa Pia», e fui-me embora, muito satisfeito! Aluguei então a casa, de quatro assoalhadas, só paredes, sem água nem luz nos primeiros tempos. A água e a luz ainda era como o outro, havia uns truques... Agora a renda era implacável, e era muito alta: um conto e trezentos.
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Arrepende-se muito de alguma coisa que fez, ou que não fez?
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Isso não vale a pena, não vale a pena porque é inútil. Recordo algumas coisas e penso: olha que maluqueira! Mas não me vou arrepender. Isso não me diz nada. O que dá é isto: às vezes estou para aqui a fazer um balanço e a testar a memória, para ver como é que ela está. Começo a dizer os nomes dos reis todos, com as alcunhas, ou o nome dos rios afluentes do Douro e do Tejo... Na minha vida às vezes também penso, e estou aqui a comentar coisas que fiz e que foram um disparate, algumas maldades, claro que fiz algumas...
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Da fama não se livra...
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Ah, isso sei eu... Mas não as sabem todas, não as sabem todas! Tenho uma fama danada. Simplesmente, a fama não me irrita nada. Houve agora um filme aí [Luiz Pacheco, Mais um Dia de Noite, com realização de António José de Almeida]... Eu recusei-me a ver, porque não vou agora desmentir o que eles lá dizem. Chamei àquilo filme-cangalheiro: morte minha e aquilo ia logo nessa noite para a televisão! Mas há para lá muita aldrabice. Recusei-me a ver antes e agora... Mas chegam-me cá os ecos, as marés. Não será de propósito, mas há lá pessoas que também já estão com a cabeça um bocado... O Mário Soares é mais velho do que eu.
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E vai candidatar-se à presidência...
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Pois é, ainda bem. Acho isso muito giro. Eu vou votar no gajo. Ele não vai candidatar-se se tiver muitas dúvidas sobre o resultado, não vai arriscar... E é um bom adversário para o Cavaco. O Manuel Alegre pode ser um grande poeta, bom tribuno e um gajo muito giro, com pinta, mas não tem o prestígio nem o conhecimento de anos e anos de governação do Soares. E o Soares tem muito cuidado com a saúde. Depois de almoço está sempre meia-hora a dormir. É muito cuidadoso. Se formos a ver aquilo como bravata é giro, acho graça, acho graça...
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Como é que olha hoje para a sua família, para a sua descendência? É uma espécie de lastro anárquico que deixou na Terra...
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Também não é tão caótico assim. E não estão mal... Que eu saiba estão todos bem. Há um filho de quem eu não sei nada que é o nº 3. O nº 4, que é o Luís Zé, o que foi educado na Casa Pia, está bem, casado, com dois filhos, está nos seguros... Outra foi para África, depois foi parar à Turquia, casou lá, não faço ideia nenhuma do que é feito dela... Ela nunca veio aqui. Alguns nunca vêm cá. E os que vêm não vêm cá muito, de mês a mês, nos anos... Estão ocupados, não é? E eu também já estou em lares há muito tempo, desde 1996 acho eu. Mas eles dão-se bem. Nesse aspecto foi um bom êxito porque é possível que tivessem más recordações de infância – e tinham mesmo. Mas vá lá, vá lá, não foi tão mau como isso...
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E bisnetos, já tem?
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Não. Tenho uma bisneta que é uma cadela, porra! Porque agora a moda não é ter filhos, é ter cães. A minha neta mais velha, do Montijo, filha do João Miguel, comprou uma cadela siberiana, branca, aliás muito bonita, comprou-a por 60 contos ou não sei quê... Não tenho bisnetos, mas podia ter. É a pílula... Não há mão nos filhos quanto mais nos netos. Os pais que os aguentem...
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A sua vida mais libertina e aventurosa teve muito mais vitalidade nos anos do Estado Novo do que depois do 25 de Abril... É só uma questão de idade?
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Não sei... Mas essa vida de libertinagem era um pouco anti-Estado Novo, era um bocadinho uma forma de reagir ao País que tínhamos. E a bebedeira, também era um bocado isso. Não sei... Não me deu para isso, talvez. E depois um gajo vai amolecendo. Eu já era muito livre antes da liberdade do 25 de Abril.
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Lendo este Diário Remendado dá ideia de que as suas preocupações pessoais o fizeram passar um bocado ao lado do fervilhar político e ideológico do pós-25 de Abril...
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Isso é verdade, é verdade. Mas eu quando vinha a Lisboa a alguma coisa, uma manifestação ou assim, não ia escrever... Mesmo o texto do 25 de Abril foi escrito bastante depois do dia – toda a gente andava a contar «o meu 25 de Abril», aquilo meteu- -me raiva, e também fiz «o meu 25 de Abril»! Limitei-me a contar aquilo que se passou: foi um dia em que saí à rua para beber uma cerveja, estava a rever provas, e o meu barbeiro viu-me na rua e disse-me «Ó Sr. Pacheco, venha cá ouvir a rádio, há revolução em Lisboa!». E, tal como estava, lá fui para Lisboa. Estive no Carmo, depois fui atrás do chaimite que levava o Marcelo – foi uma multidão que foi atrás, andava lá feito massa, inteiramente pateta... Aquele entusiasmo com a mudança do regime, para mim quebrou logo no próprio dia 25, ou 26, quando vi a Junta de Salvação Nacional. Quando vi as caras daqueles gajos... O Rosa Coutinho e o Pinheiro de Azevedo, tinham um ar apagado mas simpático, mas depois o Costa Gomes, o Spínola e o Galvão de Melo, um nazi chapado, e um Neto qualquer que tinha vindo de Angola... Nesse momento caíram-me um bocado os tomates aos pés. Aquele cartel não tinha saída, como de facto não teve. E tudo me parecia uma estupidez: o País não ia mudar por causa de uma merda aqui no Carmo, o País não muda assim de um dia para o outro. Ainda hoje, não mudou tanto como isso. Às vezes parece que há uns golpes de mágica e tudo muda, mas não é realista...
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O funeral de Álvaro Cunhal marcou-o?
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Não. Não quis estar a emocionar-me com isso. Mas se fosse lá tinha-me emocionado, com certeza. É uma reacção natural... Uma coisa que ainda me emocionou foi o enterro dos ‘Tarrafalistas’, os gajos que tinham morrido no Tarrafal, que saíram numas urnas pequeninas da Sociedade Nacional de Belas-Artes para o Alto de São João, num cortejo cheio de gente... Já foi há muito [1978]. Ainda estou inscrito no PCP, tenho as quotas em dia. Mas nunca estive com o Cunhal. O Cunhal não era o tipo de pessoa que se encontrasse a passear no meio da rua. Não era fácil de encontrar...
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E o Nobel da literatura para Saramago deixou-o feliz?
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Com certeza que sim. Fiquei. Aí a raiva de muita gente não foi contra o escritor – que não lêem – nem foi contra o próprio Saramago – que não conhecem de parte nenhuma –, foi contra o comunista que ganhou o Nobel. E também contra o gajo que ganhou cento e tal mil contos! Inveja em estado puro. Eu fiquei muito satisfeito, mesmo. Nem é questão de saber se escreve bem ou não. O Saramago não é um grande escritor. Mas o Nobel não é um prémio literário: premeia a carreira, uma obra, com aspirações sociais. Pode não ser um grande romancista mas é um tipo pessoalmente muito correcto, muito a sério. Lidei com ele no Diário de Lisboa e era de uma correcção como é raro encontrar nos jornais.
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Sacrificou muitas vezes o seu conforto, a sua vida pessoal, em nome da literatura. Hoje sente orgulho por isso?
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Não... Tenho é a vantagem de receber um subsídio mensal. Ou nem podia estar aqui. Hoje recebo 120 contos, é o máximo que dão. E isso devo-o um bocado ao Santana Lopes, é verdade. Quando foi secretário de Estado da Cultura, a Maria João Duarte dizia-lhe muitas vezes que eu tinha um subsídio muito pequeno, e escreveu n’A Capital a dizer isso... O Santana Lopes prometeu que ia pensar no assunto, se podia fazer alguma coisa. E fez, isso é que foi o grande espanto! Na altura não agradeci nada. Mas quando saiu aquela edição bonita da Comunidade mandei-lha para a Figueira da Foz e ele mandou-me uma carta a agradecer. E o Soares também não me deu só 20 paus, como parece que diz no filme, deu-me 650 contos, que é muito dinheiro. E ele não fala disso, podia falar e não fala.
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Como é que gostava de ser recordado na história da literatura portuguesa?
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Como editor é importante. A parte de produção é muito pequena... Um artigo num jornal pode ter impacto nesse dia, mas publicado, em livro, anos depois, já perdeu muita da sua força. Tenho a Comunidade, o Libertino (é um bocado o efeito da Casa Pia ao contrário...), o Teodolito, que acho que é o meu melhor texto... E a razão principal da publicação deste diário agora é porque eu preciso de dinheiro. Estou a pagar aqui no lar uma coisa chamada «mil euros» – mais as fraldas que me põem à noite, e os medicamentos que são caros. E não recebo isso por mês. Tenho que ter umas bengalas...
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Como é a sua vida aqui?
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Estas casas são uma espécie de quartel e de hospital, têm horários, têm turnos, comida muito igual e muito aldrabada... Um dia de manhã fui ali ao jardim [Príncipe Real] e senti-me muito maldisposto não sei porquê, e tiveram que me ir lá buscar de cadeira de rodas. Nunca mais saí. Isso já foi há uns três anos. Nem vou lá abaixo ao rés-do-chão. Estou aqui isolado do ambiente do lar, que não é um ambiente muito elegante... Eu é que já devia estar habituado... Mas é um ambiente pavoroso, só velhos e velhas – e chatos! Quer dizer, isto não estimula nada. Não os querendo ver não vou lá, que eles também não vêm cá. A questão da vista e do ouvido é que é mais pior.
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Qual é, hoje, o seu maior prazer?
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É o arroz de pato, uma vez por mês, mais ou menos. E bem feito! É um prato que tem aí muita fama. O que é que esta gente pode desejar de melhor?