12.11.09

Manuel Hermínio Monteiro

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Vai passar hoje, às 21.30, na Cinemateca, o documentário de André Godinho sobre Manuel Hermínio Monteiro.
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Entretanto deixo aqui uma conversa de Herminio Monteiro com Rodrigues da Silva, publicada no Jornal de Letras nº 565, de 4 de Maio de 1993:
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UM BICHO DA TERRA
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Dirige a Assírio & Alvim, fala como um poeta e acha que há quem leia de mais… e pense de menos. Vive em Lisboa e o mundo é o seu livro. Mas o seu universo é o campo. Lá longe, em Trás-os-Montes
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Tem 40 anos, mas diz que nasceu no século passado. É Manuel Hermínio Monteiro, o responsável editorial da Assírio & Alvim, e esta de ter nascido no outro século justifica-a ele porque a aldeia donde é natural (Parada do Pinhão, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real), ficava, na altura, tão longe da civilização que dos meninos se dizia, não que eram trazidos pela cegonha, nem que vinham de Paris, mas… do Porto.
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Hermínio, primogénito de uma família de quatro irmãos («quando casaram, a minha mãe tinha dezasseis anos, o meu pai dezassete, e a seguir nasci eu»), passa toda a infância na aldeia, no seio de uma comunidade rural que só na década de sessenta vai assistir à chegada do primeiro automóvel e do primeiro rádio. Hermínio, quanto a ele, o comboio (a vapor) vai vê-lo apenas quando o levam à estação mais próxima (Abambres), para, com mudança na Régua, ir sozinho a caminho do Porto e daí rumo a Arouca, onde, como interno, irá frequentar o Colégio dos Salesianos.
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Tem agora 11 anos de idade, vê pela primeira vez o mar, mas dessa infância de outro século guarda a memória de avós volframistas, gratas recordações e uma fidelidade à terra que ficará para a vida inteira: «Ouvia as histórias dos velhos, divertia-me nos arraiais; hoje percebo que tudo aquilo correspondia a uma cultura autónoma, mas extraordinariamente rica. Não havia homem que não tocasse vários instrumentos, no mínimo gaita de beiços; fazia-se muito teatro, havia festas, representações. Depois, a guerra colonial, a emigração, com a circulação do dinheiro, e, daí a nada, a televisão foram desagregando culturalmente estas comunidades. Isso reflecte-se na construção civil, por exemplo, e no salve-se quem puder».
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A ida para os Salesianos, para, em princípio, ser padre, terá sido o salve-se quem puder do Hermínio? Ele acha que não, que, mais do que uma subida social, os pais, camponeses pobres, viam nisso uma fuga à claustrofobia rural. Só que, no seu caso, a essa claustrofobia outra se iria suceder, a do colégio, sediado como era num convento fundado por D. Mafalda, irmã de D. Afonso Henriques. «Aquilo era medonho, cheio de silêncio e de sombras» – diz ele. Os avós, esses, do neto diziam: «Coitado do nosso menino, a viver sem lume nem vinho».
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Adeus juventude
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Feito o 5º ano do liceu, Hermínio muda-se para o Porto, para, como externo, frequentar o Colégio Almeida Garrett. Dois anos sem história, a menos que a história, num certo sentido, comece aqui: «Vi-me a fazer trabalho social ligado à Igreja. Sou crente, respeito as religiões todas, mas não me revejo na Igreja Católica actual, uma estrutura de poder. Nessa altura, porém, era um campo de acção». Como – acrescenta – as Associações de Estudantes, mais tarde, em Lisboa, cidade aonde Hermínio iria aportar, para frequentar a Faculdade de Direito («eu gostava de poesia e como, nas selectas literárias, os poetas de quem eu gostava eram todos formados em Direito… foi Direito que eu escolhi»)
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A escolha revelar-se-ia absurda, mas traria Hermínio do Norte que é seu («sou completamente transmontano») para uma Lisboa, onde, de início, se sentirá de passagem («nas casa onde vivia, tinha sempre as coisas embrulhadas, à espera de me ir embora; como o imigrante que sabe que um dia há-de voltar ao local de origem»).
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De passagem embora, Hermínio, na capital, continuará a descobrir o mundo. Nem sempre a melhor parte dele. Como irá contar: «Por causa do trabalho nas Associações de Estudantes fui preso pela Pide e levei muita porrada. Depois, como era refractário à tropa, fui parar a Caxias e fiquei uma semana isolado numa cela. Seria solto no Carnaval de 1974, mas, com a prisão, acabou a minha juventude e o período lírico das comunidades onde vivia».
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Do Carnaval de 1974 ao 25 de Abril foi um passo. Um passo que Hermínio iria dar no direita volver do serviço militar, como soldado raso. Com o 11 de Março de 1975, contudo, o soldado Hermínio, colocado, com o seu metro e oitenta e tal de altura, na Polícia Militar, irá viver o PREC em todo o seu esplendor: «Fui eleito para a Assembleia Democrática da Unidade e levava aquilo tudo muito a sério. Se o Exército era para o povo, não podia andar abandalhado. Muitas vezes, na PM, diziam que eu era simpático, mas um bocado reaccionário, porque, com esse sentido de tolerância que aprendi com os velhos da aldeia, achava que era preciso parar para pensar».
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Com o 25 de Novembro, o PREC parou de vez e Hermínio, devolvido à vida civil, pensa regressar a Trás-os-Montes, Mas não regressa. Ligado à Assírio & Alvim, como vendedor, já desde antes do 25 de Abril, na empresa irá continuar. E, na Universidade, troca Direito por Letras, em cuja Faculdade irá concluir o curso de História, tendo como colegas Elísio Summavielle, Nuno Ribeiro, Pedro Borges, António Eloi, Jorge Pulido Valente. De professores recorda outros tantos: Cláudio Torres, Rui Rocha, Vítor Wladimiro Ferreira, Manuel Rio de Carvalho, Piteira Santos.
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Com o canudo debaixo do braço e a média de 16 valores, Hermínio é convidado para assistente. Recusa, para dar aulas, sim, durante meia dúzia de anos, mas no ensino secundário, e sem deixar a editora. Guarda boa recordação dos alunos, não tanto da escola como instituição: «As escolas deviam ser centros de ética. Quanto à História, seria preciso humanizá-la».
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Não só a História (ou o seu ensino), mas tudo o resto – diz Hermínio a cada passo. Assim ou destoutro modo: «Sou incapaz de sobrepor os livros à amizade e acho mesmo que há pessoas que lêem de mais. Deve-se ler o essencial e ter tempo para reflectir, para gerir as ideias novas. A cultura tem de ser uma coisa orgânica e a leitura tudo menos um “passe-vite”. Ora há por aí indivíduos que se estudam uns aos outros como se estivessem num campo de batalha. A vantagem da minha biografia é perceber que há gente analfabeta que tem uma relação equilibrada com aquilo que a rodeia, gente sábia, afinal».
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A «phala» da Assírio
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Qual a sabedoria de Hermínio, como editor? Ele não diz, refere apenas que «apesar da crise», a situação é «desafogada». Paga a horas, não tem dívidas, o resto é o segredo do negócio, um negócio que dá emprego fixo a treze pessoas.
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E à parte isto? À parte isto, há o principal: um projecto editorial que se procura coerente e do qual ele é o rosto visível. E o intérprete: «Tentamos fazer um traço da cultura deste século ao nível da edição. Um traço que vem de Pascoaes e de António Patrício, passa pelos heterodoxos do Modernismo e da Presença, o Ângelo de Lima e o Edmundo Bettencourt, depois pelos surrealistas, a poesia dos anos 60 até à melhor da mais recente, recuperando, pelo caminho, praticamente toda a gente de “O Tempo e o Modo” da primeira fase. Em suma, editamos quem não pertence à estética e à cultura dominante, com ênfase na Poesia».
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«A Phala», a revista da editora, integra-se neste projecto. E na visão que Hermínio tem da vida. No editorial do número, escreve ele, criticando a política cultural do Governo: «Gostaríamos que os livros e os seus conteúdos deixassem de ser para nós apenas uma trincheira». Isto porque o húmus principal da sua actividade vai ele próprio buscá-lo ao contacto com os outros, poetas em especial: «O editor que só consulta catálogos, cava a sua ruína, a menos que só edite best sellers para ganhar dinheiro. É preciso ouvir as pessoas, ter vivências».
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Vivências – o título que Hermínio escolheria para o seu primeiro livro… se o publicasse, e seria de poesia. Mas (para já?) não o publica. Actividade paralela por actividade paralela, tem agora o partido que está a ajudar a fundar: o Partido da Terra. Recusa-se, contudo, a ser político («sou de esquerda, mas nunca pertenci a partido nenhum»). No fundo – diz – «com isto queremos dar oportunidade a independentes de concorrerem às eleições. Emprestamos-lhes a sigla».
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A sigla e uma filosofia segundo a qual «o essencial» está por construir. E o essencial – diz Hermínio – é «o lado mágico da vida, o sentido poético das coisas, a ligação ao cosmos do que há de mais válido no Homem, a solidariedade. Sem isso, a sociedade em que vivemos não passa de um vime soprado ao vento».
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E o vento sopra lá fora, ouve-se no escritório da Assírio, nesta manhã de Abril. E chove também, a bom chover. «Que raio de dia» – desabafo. Hermínio, responde: «Deixa chover, que faz falta no Alentejo e lá para cima no Norte». Pensava eu que estivera a falar com um editor, vai-se a ver e, de princípio ao fim, ele revelara-se o que é e sempre foi: um bicho da terra.

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