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João César Monteiro foi entrevistado por Rodrigues da Silva para o Diário de Lisboa de 20/02/1990. Mesmo com todo o sucesso que Recordações da Casa Amarela estava a ter, a atitude de César Monteiro mantinha-se: "nas tintas para o público".
Aqui fica:
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Mais vale prevenir do que remediar
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Com um novo filme já com título e projecto, João César Monteiro está preocupado com as intenções do secretário de Estado da Cultura. Se os custos se inflacionam – diz – é o fim do cinema português: «é preciso que sejam tão baixos que não comportem o preço de um polícia»
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«Recordações da Casa Amarela» continua o seu périplo pelo Mundo, guiado pela estrelinha do Leão de Prata de Veneza e pelo prestígio do cinema português no estrangeiro. Em breve o filme de João César Monteiro irá até Nova Iorque e S. Francisco, até Singapura e Capetown.
Há pouco passou nos festivais não competitivos de Gotemburgo e Roterdão. Com êxito, pelo menos é o que se deduz do relato do cineasta. Na Suécia o filme foi exibido numa sala de 700 lugares, esgotada, e na Holanda correu doze vezes, com salas bastante cheias. César em Gotemburgo apresentou o filme e foi entrevistado na TV, em Roterdão teve a alegria de rever Iosseliani (fazem anos no mesmo dia) e de receber do seu confrade Jean-Marie Straub um ramo de túlipas («tinham-lhe dito que o filme era uma comédia sexual e ele ia um bocadinho de pé atrás»).
Regressado a Lisboa, João César Monteiro contou-nos isto e disse do presente e do futuro. Mais do que uma entrevista, foi uma conversa, um destes dias na esplanada do Príncipe Real. Assim.
Há pouco passou nos festivais não competitivos de Gotemburgo e Roterdão. Com êxito, pelo menos é o que se deduz do relato do cineasta. Na Suécia o filme foi exibido numa sala de 700 lugares, esgotada, e na Holanda correu doze vezes, com salas bastante cheias. César em Gotemburgo apresentou o filme e foi entrevistado na TV, em Roterdão teve a alegria de rever Iosseliani (fazem anos no mesmo dia) e de receber do seu confrade Jean-Marie Straub um ramo de túlipas («tinham-lhe dito que o filme era uma comédia sexual e ele ia um bocadinho de pé atrás»).
Regressado a Lisboa, João César Monteiro contou-nos isto e disse do presente e do futuro. Mais do que uma entrevista, foi uma conversa, um destes dias na esplanada do Príncipe Real. Assim.
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Quantos espectadores fez o teu filme por cá?
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Uns 40 mil, mas ainda está a fazer. É bom, mas a minha atitude é sempre a mesma: nas tintas para o público.
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Nas tintas, mas dá-te gozo…
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Dá-me um certo gozo porque é cada vez mais difícil desembaraçarem-se de mim. Mas, por outro lado, é-me cada vez mais difícil fazer aquilo que quero.
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Como é isso?
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É que há sempre uns tipos (os mesmos de sempre…) que têm ideias muito precisas sobre os filmes que os outros devem fazer, Às vezes para não pensarem naquilo que eles próprios deviam fazer.
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Explica lá isso.
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Não explico. Estou a ser sibilino. Refiro-me aos amigos, os que têm o poder e sempre o tiveram.
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E que te dão conselhos…
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Pois. Só não entendo é como se pode ser simultaneamente conselheiro do dr. Santana Lopes e do sr. César Monteiro. É que não rende… nem a receptividade é a mesma.
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E tu não estás interessado…
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Não, não estou. Não estou nada interessado em que fechem ou desfigurem o cinema português, nem que o secretário de Estado tenha a veleidade de reeditar aquilo que o dr. Lucas Pires fez em 1981.
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E que foi…
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Fechou o cinema durante dois anos com aquela história sinistra que o que era importante era fazer filmes para Bragança. O dr. Lucas Pires e os seus conselheiros cinematográficos foram ao ponto de anular um plano de produção já aprovado (eu não era concorrente…), o que prejudicou a vida de alguns colegas meus.
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Estás a dizer isso porquê? Sabes das intenções do novo secretário de Estado?
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Não faço ideia. Mas também ninguém estava à espera que caísse o tecto da sala do capítulo dos Jerónimos. Acho que foi bom que caísse, porque isso vai ocupar o dr. Santana Lopes durante um ano. Digo isto a título de providência cautelar. Desejo que não se passe nada, mas antes prevenir do que remediar. Também não estou a armar em Cassandra que prevê catástrofes. Estou é a dizer que, tanto quanto nos for possível, tentamos não ser apanhados desprevenidos.
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Contra quê?
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Sabemos que ao longo destes anos tem havido várias veleidades de destruir um edifício que tem sido pacientemente elaborado por alguns de nós. Quando digo «alguns» não acho que sou generoso, mas acho que estou a ser verdadeiro. Há um tipo italiano chamado Tonino de Bernardi…
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Não conheço.
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É um italiano que faz filmes e que tem um argumento original de Pasolini para fazer, «O Pai Selvagem». Com 50 e tal anos, tem o futuro cinematográfico nas mãos do Joaquim Pinto, porque as portas restantes estão todas fechadas. Até o Straub pediu ao Joaquim Pinto para ver se arranja algum na Gulbenkian. O que toda a gente diz lá fora é que a chamada Europa está cada vez pior para um certo tipo de cinema e que, apesar de tudo, Portugal é provavelmente o único sítio do Mundo onde ainda se podem fazer coisas desde que com poucos custos. Se este secretário de Estado inflacionar os custos a níveis europeus, isso significa o fim do cinema português.
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O Nicholas Ray perguntou um dia a Buñuel porque é que ele fazia filmes tão baratos. O Buñuel respondeu-lhe: «É porque quero ser livre». É por isso que dizes que a inflação dos custos significa o fim do cinema português?
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É porque é preciso que os custos sejam de tal forma baixos que não comportem o preço de um polícia… A partir de um certo nível é o dinheiro que comanda. Esta atitude não é nova. O paradigma disto é um sr. Chamado Rossellini que fez sempre filmes com custos baixos.
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Com mais dinheiro pode surgir a mediania?
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Claro. E a mediania é o que as televisões produzem.
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Bom, César, e agora, qual é o próximo filme?
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Estou a preparar «A Comédia de Deus ou O Pintelho da Rainha Vitória».
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Bom, sem entrar em pormenores, que filme é esse?
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É uma pequena história, continuação das desventuras do sr. João de Deus, um personagem que estamos a tentar recompor e retomar de filme para filme guiados por modelos os mais ilustres e, uma vez mais, Charles Chaplin.
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Que tinhas a ver com Chaplin nunca ninguém topou…
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Excepto o sr. David Robinson, crítico do «Times» e a maior autoridade em Chaplin. Ele topou isso e por acaso estava no júri do Festival de Veneza, o que só me trouxe benefícios.
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Já meteste o projecto no IPC?
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Não. Tenho um produtor que trata desses assuntos.
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E que é…?
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O sr. Paulo Branco, que até agora tem sido impecável comigo.
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Porque é que ele não te passa «À Flor do Mar» no Picoas, que tem um público tão jovem?
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Volta a haver, de facto, um público muito jovem (sobretudo estudantes), que enche os cinemas. No Festival de Gotemburgo até vinham de Estocolmo (já não digo da Lapónia), para ver os filmes. E há também gente nova no cinema que vai tentando não se prostituir, e que sabe que onde há muito dinheiro é ele que comando tudo. Aqui é ainda muito cedo para falar nisso, mas na Europa é preciso ter um grande estofo moral para resistir a um certo clima de envenenamento. Iosseliani, na conferência de imprensa do Festival de Roterdão, a primeira coisa que disse foi «eu não me prostituí». Aqui ainda não tivemos necessidade de declarar isso em público.
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E há gente nas mesmas condições por esse mundo fora.
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Há, de facto, duas ou três dezenas de bons cineastas espalhados pelo Mundo, desde Taiwan até Tibliss, passando quiçá por Lisboa, o Canadá e mesmo a América (estou-me a lembrar de Cronenber e de Robert Kramer, por exemplo). É esse cinema que a mim me interessa e não outro qualquer, nem essa coisa artificial que é o cinema europeu. Europeu? Então e os africanos? E nós, somos europeus de que lado? Nós a única coisa que temos virado para a Europa é o cu.
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Esse cinema que te interessa circula muito pouco.
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Não circula, mas não significa que não tenha público. Ponham-no a circular e ver-se-á.
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Aqui…
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Aqui, o monopólio de exibição é quase exclusivamente norte-americano. Mas, mesmo no cinema americano há dois filmes por ano que dão dinheiro. O resto é menos competitivo que o nosso. A maior parte dos produtos americanos dão prejuízo, com excepção dos «tops».
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Falámos do monopólio de exibição por cá, mas há o Picoas.
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Há o Picoas, agora, mas são duas salas. Durante o ano não dá vazão. E o Paulo Branco também não está muito interessado em que aquilo se transforme no gueto do cinema português. Tem necessidade de mais salas. Ele diz que não se pode ainda dar ao luxo de passar o Straub. Com o sucesso do meu filme e, a seguir, com o do Mário Grilo, que à partida não apontavam para estadas tão grandes em cartaz, há filmes na prateleira. Com duas salas, quanto mais os filmes pegarem menos se podem passar.
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Isto a propósito do «À Flor do Mar»?
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Também.
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Uns 40 mil, mas ainda está a fazer. É bom, mas a minha atitude é sempre a mesma: nas tintas para o público.
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Nas tintas, mas dá-te gozo…
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Dá-me um certo gozo porque é cada vez mais difícil desembaraçarem-se de mim. Mas, por outro lado, é-me cada vez mais difícil fazer aquilo que quero.
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Como é isso?
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É que há sempre uns tipos (os mesmos de sempre…) que têm ideias muito precisas sobre os filmes que os outros devem fazer, Às vezes para não pensarem naquilo que eles próprios deviam fazer.
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Explica lá isso.
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Não explico. Estou a ser sibilino. Refiro-me aos amigos, os que têm o poder e sempre o tiveram.
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E que te dão conselhos…
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Pois. Só não entendo é como se pode ser simultaneamente conselheiro do dr. Santana Lopes e do sr. César Monteiro. É que não rende… nem a receptividade é a mesma.
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E tu não estás interessado…
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Não, não estou. Não estou nada interessado em que fechem ou desfigurem o cinema português, nem que o secretário de Estado tenha a veleidade de reeditar aquilo que o dr. Lucas Pires fez em 1981.
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E que foi…
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Fechou o cinema durante dois anos com aquela história sinistra que o que era importante era fazer filmes para Bragança. O dr. Lucas Pires e os seus conselheiros cinematográficos foram ao ponto de anular um plano de produção já aprovado (eu não era concorrente…), o que prejudicou a vida de alguns colegas meus.
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Estás a dizer isso porquê? Sabes das intenções do novo secretário de Estado?
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Não faço ideia. Mas também ninguém estava à espera que caísse o tecto da sala do capítulo dos Jerónimos. Acho que foi bom que caísse, porque isso vai ocupar o dr. Santana Lopes durante um ano. Digo isto a título de providência cautelar. Desejo que não se passe nada, mas antes prevenir do que remediar. Também não estou a armar em Cassandra que prevê catástrofes. Estou é a dizer que, tanto quanto nos for possível, tentamos não ser apanhados desprevenidos.
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Contra quê?
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Sabemos que ao longo destes anos tem havido várias veleidades de destruir um edifício que tem sido pacientemente elaborado por alguns de nós. Quando digo «alguns» não acho que sou generoso, mas acho que estou a ser verdadeiro. Há um tipo italiano chamado Tonino de Bernardi…
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Não conheço.
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É um italiano que faz filmes e que tem um argumento original de Pasolini para fazer, «O Pai Selvagem». Com 50 e tal anos, tem o futuro cinematográfico nas mãos do Joaquim Pinto, porque as portas restantes estão todas fechadas. Até o Straub pediu ao Joaquim Pinto para ver se arranja algum na Gulbenkian. O que toda a gente diz lá fora é que a chamada Europa está cada vez pior para um certo tipo de cinema e que, apesar de tudo, Portugal é provavelmente o único sítio do Mundo onde ainda se podem fazer coisas desde que com poucos custos. Se este secretário de Estado inflacionar os custos a níveis europeus, isso significa o fim do cinema português.
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O Nicholas Ray perguntou um dia a Buñuel porque é que ele fazia filmes tão baratos. O Buñuel respondeu-lhe: «É porque quero ser livre». É por isso que dizes que a inflação dos custos significa o fim do cinema português?
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É porque é preciso que os custos sejam de tal forma baixos que não comportem o preço de um polícia… A partir de um certo nível é o dinheiro que comanda. Esta atitude não é nova. O paradigma disto é um sr. Chamado Rossellini que fez sempre filmes com custos baixos.
.
Com mais dinheiro pode surgir a mediania?
.
Claro. E a mediania é o que as televisões produzem.
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Bom, César, e agora, qual é o próximo filme?
.
Estou a preparar «A Comédia de Deus ou O Pintelho da Rainha Vitória».
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Bom, sem entrar em pormenores, que filme é esse?
.
É uma pequena história, continuação das desventuras do sr. João de Deus, um personagem que estamos a tentar recompor e retomar de filme para filme guiados por modelos os mais ilustres e, uma vez mais, Charles Chaplin.
.
Que tinhas a ver com Chaplin nunca ninguém topou…
.
Excepto o sr. David Robinson, crítico do «Times» e a maior autoridade em Chaplin. Ele topou isso e por acaso estava no júri do Festival de Veneza, o que só me trouxe benefícios.
.
Já meteste o projecto no IPC?
.
Não. Tenho um produtor que trata desses assuntos.
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E que é…?
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O sr. Paulo Branco, que até agora tem sido impecável comigo.
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Porque é que ele não te passa «À Flor do Mar» no Picoas, que tem um público tão jovem?
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Volta a haver, de facto, um público muito jovem (sobretudo estudantes), que enche os cinemas. No Festival de Gotemburgo até vinham de Estocolmo (já não digo da Lapónia), para ver os filmes. E há também gente nova no cinema que vai tentando não se prostituir, e que sabe que onde há muito dinheiro é ele que comando tudo. Aqui é ainda muito cedo para falar nisso, mas na Europa é preciso ter um grande estofo moral para resistir a um certo clima de envenenamento. Iosseliani, na conferência de imprensa do Festival de Roterdão, a primeira coisa que disse foi «eu não me prostituí». Aqui ainda não tivemos necessidade de declarar isso em público.
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E há gente nas mesmas condições por esse mundo fora.
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Há, de facto, duas ou três dezenas de bons cineastas espalhados pelo Mundo, desde Taiwan até Tibliss, passando quiçá por Lisboa, o Canadá e mesmo a América (estou-me a lembrar de Cronenber e de Robert Kramer, por exemplo). É esse cinema que a mim me interessa e não outro qualquer, nem essa coisa artificial que é o cinema europeu. Europeu? Então e os africanos? E nós, somos europeus de que lado? Nós a única coisa que temos virado para a Europa é o cu.
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Esse cinema que te interessa circula muito pouco.
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Não circula, mas não significa que não tenha público. Ponham-no a circular e ver-se-á.
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Aqui…
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Aqui, o monopólio de exibição é quase exclusivamente norte-americano. Mas, mesmo no cinema americano há dois filmes por ano que dão dinheiro. O resto é menos competitivo que o nosso. A maior parte dos produtos americanos dão prejuízo, com excepção dos «tops».
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Falámos do monopólio de exibição por cá, mas há o Picoas.
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Há o Picoas, agora, mas são duas salas. Durante o ano não dá vazão. E o Paulo Branco também não está muito interessado em que aquilo se transforme no gueto do cinema português. Tem necessidade de mais salas. Ele diz que não se pode ainda dar ao luxo de passar o Straub. Com o sucesso do meu filme e, a seguir, com o do Mário Grilo, que à partida não apontavam para estadas tão grandes em cartaz, há filmes na prateleira. Com duas salas, quanto mais os filmes pegarem menos se podem passar.
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Isto a propósito do «À Flor do Mar»?
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Também.
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