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José Mário Silva entrevistou Alberto Pimenta para o DNA (suplemento do Diário de Notícias) de 18/11/2000. Aqui fica:
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ALBERTO PIMENTA
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«Às vezes sinto-me sozinho, mas tenho a impressão de que não é exactamente em termos de pensamento, porque eu sei que há muitas pessoas a pensar como eu. O mundo é talvez já tão grande e tão disperso que deve ser muito difícil às pessoas que pensam assim, juntarem-se. Estamos todos separados e o problema é que não sabemos uns dos outros. Essa é a solidão»
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Este homem não tem medo das palavras. O que pensa, diz. Em voz alta, se for preciso. Contra a corrente, quase sempre. Como se fosse uma espécie de consciência (i)moral da nação. Alberto Pimenta, aos 62 anos, já não precisa de provar nada a ninguém. Sem espalhafato, vai construindo a sua obra, cada vez menos incompleta. Numa tarde de Novembro que ameaçava chuva, começou a falar-nos da infância e foi por aí fora.
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O encontro ficou combinado para o Centro Comercial da Mouraria, essa babel onde se cruzam todas as raças de Lisboa, entre tapetes vindos do Oriente, relógios de imitação e cheiro a caril. Junto a uma mercearia indiana, Alberto Pimenta escolhia a dedo três beringelas. Três reluzentes beringelas que depois transportou dentro de um saco de plástico, pelas ruas escorregadias e labirínticas do seu bairro.
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A casa é uma mansarda não muito grande, um refúgio que fica no topo de cinco lances de escada muito íngremes, onde se consegue sentir a força da gravidade a puxar-nos pelo pescoço. Lá dentro, há uma sala de estar, com o tecto de madeira assimétrico, um biombo escuro e um armário de espelhos. Há uma «alcova» onde só cabe uma cama. E há a sala de trabalho, com várias estantes cheias de livros, um quadro com a figura de Baco, outro com uma mulher despida, duas janelas que dão para o castelo de São Jorge (à noite fica iluminado) e a mesa, o lugar central da casa, sempre cheia de papéis, a mesa onde está pousada a máquina de escrever Olympia – amiga fiel e cúmplice, que o acompanha há 35 anos e viu nascer toda a sua obra. Há ainda, mesmo junto à mesa, uma «chaise longue». É nela que Alberto Pimenta se deita em certas noites de verão, a olhar as estrelas no céu de Lisboa. E a pensar na vida.
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Nascido em 1937, no Porto, Alberto Pimenta é professor universitário e autor de trinta livros, muitos dos quais reunidos no volume «Obra Quase Incompleta». As suas «performances» e «happenings» foram autênticas pedradas no charco da cultura nacional. Conhecido pela sua escrita desassombrada, foi autor de dois programas de TV («A Arte de Ser Português», «6 Áreas para Cesário») e teve uma passagem muito breve pela «Noite da Má Língua». Colecciona pedras como forma de recordar os lugares onde esteve (entre outras pequenas preciosidades, mostrou-nos uma rosa-do-deserto). Não tem televisão nem computador. Não quer saber da Internet. Diz que não lhe fazem falta.
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Começamos por onde?
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Olhe, podemos começar por ver se este aparelhinho [o gravador] está a trabalhar.
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Deixe-me ver. A luz vermelha pisca, parece-me tudo ok.
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Ainda bem, ainda bem.
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Comecemos então pelo princípio. Ou seja, pela infância, um tema que não costuma abordar.
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A infância aparece como um lugar mitológico, um lugar mítico. E é. Enquanto a deixam estar no seu espaço, o que é hoje cada vez mais difícil, o espaço da criança é mítico. Ela brinca sozinha, ela conversa com entidades que nós não sabemos quem são, ela inventa. Mas é um inventar que tem, para ela, uma componente de realidade. Se não houver um trabalho qualquer exterior, de tipo psicanalítico, daqueles que tentam escavar-nos até ao fundo, acho que a infância é qualquer coisa de que nós nos vamos esquecendo e de que só guardamos episódios soltos, sem ligação. É diferente do que se passa, mais tarde, na idade adulta: tudo cheio de causas e consequências, opções e erros, etapas e planos.
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Ao fazer a pergunta, não me referia à infância como conceito geral, mas à sua infância em particular.
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Certo. Eu vejo a infância mais como aquele dia em que aconteceu isto ou a tarde em que aconteceu aquilo. Por exemplo, eu poderia falar agora – e estou a lembrar-me – daquela noite de Natal, teria eu cinco anos, em que acordei às quatro da manhã, não sei porquê, e cheguei à sala e vi um triciclo. E hoje lembro-me, não é bem do triciclo, mas de um qualquer deslumbramento interior, um deslumbramento de uma dimensão que hoje não posso compreender. Um deslumbramento que me deixou horas seguidas em êxtase. A mim, parece-me que a infância é esse momento feito de episódios que ainda estão um bocadinho fora do tempo. E até acima do tempo.
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Episódios felizes?
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Suponho que todos nós recordamos com mais ou menos prazer a juventude, porque é na juventude que temos maior energia, que estamos a descobrir a vida, que estamos cheios de força. Estão as portas todas abertas, ainda.
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Há quem tenha, apesar de tudo, uma memória muito negra ou martirizada da infância. Não é então o seu caso?
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Não, não, não. Foi uma infância e uma juventude numa família que não era rica, que era aquilo a que na altura se chamava remediada. Lembro-me disso, lembro-me de algumas limitações que as dificuldades económicas implicavam, mas nenhuma dessas limitações foi de tal ordem que me tirasse qualquer prazer de existir. Lembro-me da minha vida, na infância e na juventude, como uma vida onde o prazer de existir estava implícito, nem se pensava nisso.
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Ao lermos a sua obra, notamos que se refere mais vezes à figura do pai do que à da mãe.
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Sim, há um livro qualquer, ou dois, ou três, em que a figura do pai aparece várias vezes e a da mãe praticamente não aparece. Nunca pensei em ter que colocar essa questão. Mas, colocando-a agora, talvez o motivo determinante seja o facto de o pai ter morrido e a mãe não. Essas referências acontecem depois da morte dele e não recorri a nenhum efeito estilístico. Creio que foi uma catarse.
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Será que um escritor tem o direito de criar a sua própria biografia?
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O direito tem, claro. Como é que lhe podíamos tirar esse direito? Mas, em grande parte dos casos, nunca saberemos qual a percentagem de realidade e qual a percentagem de imaginação que contribuíram para um episódio que se narra; ou para a circunstância que dá origem ao poema. Nunca saberemos, acho eu, porque não deve existir obra nenhuma que seja só fantasia ou apenas reflexo da realidade. Em relação a essa ideia de que o escritor pode criar a sua própria biografia, eu penso que isso é verdade mas acontece com toda a gente. Todos fazemos a nossa própria biografia. A diferença está no grau de consciência que temos, ao fazê-la.
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Mas por maior que seja a margem de intervenção biográfica, há sempre factos incontornáveis. Como o ter nascido no Porto, onde passou toda a infância e uma parte da juventude.
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Sim, vivi lá até aos 16 anos, com uma pequena interrupção, de cerca de um ano, período em que vivi em Lisboa. Depois, fui estudar para Coimbra, porque naquela época não havia Faculdade de Letras no Porto.
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Essa ida para Coimbra foi um corte importante em relação à sua vida anterior?
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Foi, sem dúvida. A muitos níveis. Era outro ambiente humano, as duas cidades são muito diferentes. Passei a ter outro círculo de amigos, passei a ter outro tipo de interesses. Em Coimbra, por exemplo, comecei a fazer teatro. Houve de facto alterações bastante importantes. Não me parece que se possa impunemente mudar assim de um lugar para o outro, sobretudo quando se está em formação, sem que isso venha a mexer com as estruturas do indivíduo.
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Foi nessa altura que despertou o seu interesse pela literatura?
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Não, foi ainda antes, no período do liceu. Eu tive de resto um professor magistral: o Óscar Lopes, que dava aulas de Literatura Portuguesa. Ele deu-me acesso a certos conhecimentos e perspectivas que me permitiram, já por essa altura, conhecer o Fernando Pessoa. Conhecer e começar a gostar de Pessoa, numa altura em que isso era raríssimo. Estamos a falar de meados dos anos 50, quando o poeta, para todos os efeitos, ainda não existia.
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A arca estava fechada…
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Sim, claro. É a partir daí que a minha sensibilidade literária se desenvolve. Eu acredito que qualquer trabalho artístico se vai desdobrando, como um novelo. Há um novelo que começa, puxamos uma ponta e depois vem tudo atrás. Surge uma primeira manifestação, depois essa acabará por trazer outras, e outras, e outras. Isso se, de facto, o novelo existe. Nunca sabemos se ele existe, nunca sabemos quando ele acaba. Ao fim de uma vida passada a procurar formas de expressão do tipo criativo, claro que se ganha certas obsessões, claro que se quer encontrar o fio. O certo é que algum dia o novelo acaba, de uma maneira ou de outra!
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Como era o princípio do novelo? Aqueles versos típicos de um jovem que começa a escrever?
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Sim. Mas que outra coisa podia ser?
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São versos perdidos?
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Sim, são versos perdidos. Suponho que tenho ainda um manuscrito de um livro de poesia, que não chegou a ser publicado, mas que serviu para escrever a primeira obra. Isso porque esse primeiro livro é já uma ironização do tal que não foi publicado. É já uma forma de auto-ironia.
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Uma auto-ironia que está omnipresente na sua obra.
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Eu continuo a achar que a grande ironia é a auto-ironia. Aliás, não se consegue fazer ironia sem que haja uma certa dose de auto-ironia. As pessoas que se tomam muito a sério nunca fazem ironia. Em Portugal, a ironia não é muito apreciada porque toda a gente se toma muito a sério. É perante a fragilidade da nossa opinião que vem a ironia. A ironia é uma defesa dos que se sentem frágeis, não dos que se sentem seguros.
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Qual era o estilo desse livro que nunca saiu da gaveta?
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Tinha uma grande influência clássica, pagã. E era uma exaltação do corpo, da presença do corpo. Mas um corpo que tem um espírito. Quando se fala em exaltação do corpo, às vezes pensa-se que se está a fazer uma oposição ao espírito. Como é possível? Um corpo é algo que tem um espírito. O espírito é que faz daquele corpo o que ele é.
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Que idade tinha quando escreveu esses poemas?
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Teria uns 18, 19 anos.
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Mais tarde, quando acaba o curso em Coimbra, parte logo para a Alemanha. Foi de alguma maneira uma fuga ao Portugal cinzento e de horizontes fechados, ao Portugal salazarista?
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Na altura não foi. Ao concluir um curso de Línguas e Literaturas Germânicas, a oportunidade de preencher um lugar de leitor na Inglaterra, ou na Alemanha, funcionava como o melhor estágio possível. Eu acabei o curso e fui convidado para assistente. Quando surgiu a vaga para leitor na Alemanha, os professores acharam que era uma oportunidade excelente e eu fui. Com um plano de trabalho, uma expectativa de regresso, tudo muito ortodoxo.
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Deveria regressar quanto tempo depois?
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Passados três ou quatro anos, mais ou menos. Naquela época havia uma lei que permitia a quem, chegando aos 26 anos de idade, estivesse ao serviço da nação em cargos desses, a isenção automática do serviço militar. E vários colegas meus ficaram de facto isentos. Só que aconteceu, no final de 1961, a invasão de Goa. Como de costume, na maioria dos leitorados portugueses fizeram-se acções de desagravo em nome dos interesses da pátria. Eu não fiz nenhuma. Não senti que fosse o meu papel. Essa atitude e mais três ou quatro coisas pesaram contra mim. De tal maneira que um ano antes de me poder ser aplicada a tal lei, em 1963, fui demitido com o objectivo de me obrigar a cumprir o serviço militar.
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Foi uma represália.
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Sim, pelo menos em parte. E eu hesitei. Hesitei muito. Hesitei tanto que cheguei a vir a Portugal para me apresentar ao serviço militar. Mas depois de chegar cá e ver o ambiente durante 15 dias, depois de ver aqueles soldados a marchar pela rua gritando «Angola é Nossa», «Angola é Nossa», decidi voltar para a Universidade de Heidelberg, que me tinha garantido: se você quiser, oferecemos-lhe um contrato. Eu aceitei a proposta e regressei à Alemanha. No ano seguinte, estava lá um representante do Instituto de Alta Cultura português a convidar a universidade alemã a despedir-me. Caso não o fizessem, ameaçavam cortar bolsas de estudo e coisas desse género. Mas os alemães não cederam a esse tipo de pressão, ainda por cima muito mal feita, muito violenta, a pressão de quem chega, quer e manda. Chegou lá o doutor não sei quantos e disse: «Vocês não podem ter aqui este homem, que é um traidor à pátria». Os alemães acharam que podiam. E eu lá fiquei. Só regressei em 1977.
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Em 1977, três anos depois do 25 de Abril. Por que é que não veio logo depois da revolução?
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Em primeiro lugar, não se pode vir assim, imediatamente a seguir a uma revolução. Sobretudo para quem não tem relações, como eu não tinha, nem a forças políticas, nem a grupos, nem a ninguém, nada, absolutamente nada. A verdade é que às tantas, ainda antes do 25 de Abril, retiraram-me o passaporte português. O consulado não me renovou o passaporte. Fiquei sem ele. Portanto não tinha alternativa senão voltar a Portugal ou pedir a naturalização. O asilo político era impossível, só se podia fazer vido de fora e eu estava lá dentro. A naturalização não é fácil mas eu tinha as condições todas: os anos de permanência, a integração profissional, o conhecimento da cultura e da língua, essas coisas. Fiz o pedido e um belo dia chegou a carta que me concedia a naturalização. Era o dia 23 de Abril de 1974. Assim que se dá a revolução, agradeci às autoridades alemãs e pedi um período de reflexão, em face do que se passava. Eles deram-me esse tempo de reflexão, seis meses, e eu declinei, por razões óbvias, a naturalização que tinha pedido. Com isto, estávamos em finais de 74. Nessa altura, vim a Portugal para regularizar a minha situação. Apresentei-me a uma inspecção militar, tinha 37 anos, não estava nada bem de saúde e deram-me a entender que iria ser considerado inapto. Mas não, fui considerado apto e deram-me uma guia para me apresentar, dali a 15 dias, nas Caldas da Raínha. Claro que não me apresentei, claro que voltei para a Alemanha e claro que fiquei pela segunda vez refractário. Ou seja, fui refractário antes e depois do 25 de Abril. Com estas coisas todas, a relação com a pátria foi ficando um pouco abalada. Às vezes, sabe, as coisas tomam um caminho que é feito de acasos e de circunstâncias, mas todos os caminhos são assim.
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Foi um desses acasos que o trouxe de vez, em 1977?
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Bom, quando voltei em 77 foi por razões pessoais, não foram outras.
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O país que encontrou era muito diferente daquele que tinha deixado?
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Um país é feito pelas pessoas. Eu não esperava encontrar diferenças arquitectónicas ou paisagísticas, mas contava descobrir mudanças no comportamento das pessoas. E de facto, nessa altura, confesso-lhe que havia ainda uns restos, depois é que me explicaram os que tinham assistido a tudo, uns restos de uma solidariedade, de uma certa camaradagem. Isso notava-se. Havia aquela facilidade com que os portugueses se entregam à utopia. Não havia praticamente peça de teatro, ciclo de conferências ou publicação que não tivesse como base a ideia de um progresso social, de uma justiça social. Isso embora já começassem a regressar do Brasil certas sombras antigas. E a pouco e pouco, muito devagarinho, havia já o crescimento de um certo peso económico, da macroeconomia, dos consórcios, disso que não se vê e que é o dono de tudo. Depois, uma das faltas graves entre os portugueses era, e continua a ser, a capacidade de entusiasmo. Talvez as pessoas estejam sujeitas a um tal aperto, talvez lhes roubem o tempo de uma tal maneira, talvez estejam numa tal angústia, que têm sempre um ar tristonho, pesado. Não sei o que será preciso para entusiasmar um português. Talvez um jogo de futebol, deve ser a única coisa.
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Depois do regresso, sentiu-se um estrangeirado?
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Não quero de forma alguma colocar-me nesse rol, onde aliás estaria muito bem acompanhado. O que posso dizer é que esse regresso não foi pacífico. Em termos de convivência. Levei muito tempo a adaptar-me à melancolia portuguesa, ao ficar triste sem saber porquê, à lamúria, à queixa, ao lamento. Agora estou habituado, como alguém que pode dizer, após 15 anos na prisão: «Estou habituado, já não dou murros nas portas». É mais ou menos isto.
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Ao ouvir essa amargura em relação ao país, nascida certamente de uma relação de omor-ódio, lembro-me que ela tem muitos antecedentes na literatura portuguesa. Penso em Alexandre O’Neill, por exemplo.
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Ah, sim, o O’Neill, claro. Mas já podemos ver isso no Camões. Se lermos «Os Lusíadas» com atenção, encontramos verdadeiras diatribes contra o país. Não tenho a certeza mas creio que é no final do canto VI, na última estância, que ele diz qualquer coisa como isto: «Nunca no mundo vi país, nação, nem bárbara, que prezasse tão pouco as artes como Portugal». E depois há o Garrett, o Eça, tantos outros. Isso não surge do nada, não são meia dúzia de tipos com a mania da perseguição.
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Mais de vinte anos depois do seu famoso «happening» no Jardim Zoológico, durante o qual ficou fechado numa jaula com uma placa que dizia «Homo sapiens», como é que olha para aquela intervenção artística?
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Eu tive essa ideia já na Alemanha, muito tempo antes. Mas nem sequer pensei em fazê-la, porque passaria a ter, imediatamente, uma outra conotação. Eu seria logo o estrangeiro, o imigrante. E isso não me interessava. Em Lisboa apareceu a oportunidade e eu aproveitei-a, com aquela euforia que nasce apenas do acto de fazer. Fazer e esperar uma reacção. Essa reacção está publicada em livro, com tudo o que foi dito por quem passou em frente à jaula do Jardim Zoológico. É extraordinário imaginar o que passa pela cabeça de alguém para dizer certas coisas que ali se disseram. È curioso verificar que a atitude recorrente foi uma certa forma de distanciamento. Diziam que eu era maluco, ou que tinha feito alguma coisa para merecer aquilo, ou que estava a fazer publicidade. Só houve duas ou três pessoas que deram ao «happening» uma dimensão humana geral. Houve mesmo uma que disse: «Isto é para mostrar que estamos todos presos». Eu fiz, 14 anos depois, uma coisa a que chamei «Homo venalis», uma espécie de «homem vende-se», ali junto a uma igreja do Chiado, num dia do turista, embrulhado numa grande serapilheira e os comentários, as hipóteses de explicação, foram praticamente os mesmos. «Isto é um filme». «Isto é publicidade». Quer dizer, as pessoas queriam defender-se, pensando «isto não é comigo».
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Ao fim e ao cabo, estavam a incorporar o que lhes era estranho numa lógica qualquer…
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Tal e qual.
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Porque o que é estranho mete medo.
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Exactamente. É como se houvesse uma necessidade de integrar o que não compreendemos numa ordem lógica que torne as coisas aceitáveis, uma ordem que nos sossegue.
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Acha que a linguagem artística entendida como uma forma de acção, seja através de «happenings» ou de «performances», ainda faz sentido nos dias que correm?
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Eu acho que um certo tipo de «happenings» continua a fazer sentido, mas temo que não exista muito espaço para eles no actual cenário mediático. Por exemplo, qualquer «happening» com uma intervenção política está a entrar no campo da manifestação. Há espaços hoje muito bem delimitados em que o «happening» não estará nunca, talvez, totalmente à vontade. O mesmo não se passa com a «performance». É um espectáculo que exige muitíssimo, muito mais do que um espectáculo de teatro, porque não é representar, é qualquer coisa de único. A verdadeira «performance» nunca se faz duas vezes. Aconteceu em certas circunstâncias, com um certo público, e não se repete. O papel que o artista conceptual pode ter, hoje, é este: não fazer uma modernidade que consiste em variar o que as linguagens artísticas estão fartas de dizer, mas apresentar momentos que confrontem quem os vive com esta ideia: afinal, é possível que as coisas aconteçam de outra maneira.
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O artista deve ser um agitador, um provocador?
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Eu acho que sim. Até porque a arte procura algo que está escondido nas consciências. Algo que não vem nos jornais, não vem nas televisões, não faz parte do Orçamento Geral do Estado. Nesse sentido, a arte agita e provoca. Em termos de ideias, só vale a pena aquilo que agita e que provoca.
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E não o incomoda o facto de ser relativamente pouco conhecido?
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Nada. Repare que se isso fosse muito importante para mim, não era assim tão difícil ser pelo menos um pouco mais conhecido. Bastava ser sócio de duas ou três associações, para alguma das quais já fui aliás convidado, frequentar grupos, ter um lugar e visibilidade. Mas não me agrada o espírito corporativo. Não tenho capacidade nenhuma de me juntar com pessoas e com elas fazer grupos fechados, só porque trabalhamos na mesma coisa.
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Continua a considerar-se «um poeta cujo silêncio tem muitos admiradores»?
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Isso foi um achado, porque a frase tem outro sentido, para além do óbvio. Referia-me a quem, não querendo admitir abertamente que considera as minhas obras insuportáveis a vários níveis, se refugia dizendo: «Ah, ele escreveu uma coisa muito interessante, que foi “O Silêncio dos Poetas”». Ou seja, uma obra ortodoxa. É mais ou menos como aquelas pessoas que têm de dar parecer sobre um quadro e depois dizem: «Ai que linda moldura». Sim, sim, o meu silêncio tem muitos admiradores! Pois claro que tem.
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Quando escreve ou quando faz uma «performance», é lícito afirmar que está sempre a agir contra a ideia de poder?
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Sim. Raras vezes contra qualquer tipo de poder concreto, mas contra um poder abstracto. O das hierarquias do dinheiro, por exemplo. Marx, e eu gostava de ver alguém que pusesse isto em causa, disse que neste mundo só há duas maneiras de ganhar a vida: ou dos rendimentos, ou do trabalho. Portanto, há uns que têm rendimentos, não precisam de trabalhar. E há outros que têm que trabalhar, têm que se vender a si mesmos. A mim parece-me que isto é um facto, e cada vez mais. A monstruosidade desses rendimentos que já são assim uma espécie de deus, esses grandes consórcios, esse polvo, essa realidade é uma opressão. Porque alguém poderá pensar que se pode chamar felicidade ao modo de viver destes milhões de pessoas que se levantam às seis ou sete da manhã, vão para um emprego na maior parte dos casos estupidificante, trabalham lá o dia todo e vêm ao fim do dia para as suas casas, pouco confortáveis e ainda por cima pagar? Esta opressão toda vem desse tal poder, que neste momento é um poder cada vez mais abstracto, mais difuso.
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Tem certamente a noção de que há poucas pessoas que se revoltem contra esse estado de coisas. Sente-se de alguma forma a clamar no deserto, como se fosse uma espécie de anarquista solitário?
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A pergunta é boa porque me obriga a pensar. [silêncio] Eu às vezes sinto-me sozinho, mas tenho a impressão de que não é exactamente em termos de pensamento, porque eu sei que há muitas pessoas a pensar como eu. O mundo é talvez já tão grande e tão disperso que deve ser muito difícil, a várias pessoas que pensam assim, juntarem-se. Estamos todos separados, nem sequer sabemos que existimos. Essa é a solidão. Mas eu não me convenço de que estou completamente sozinho. Nem é preciso ir muito longe, se calhar aqui no bairro já existirão umas dezenas de pessoas que pensam mais ou menos como eu, cada um a fazer a sua coisa. O problema é que não sabemos uns dos outros.
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Há uns anos definiu-se como um optimista inquieto. Mas agora sinto-o bastante pessimista. Só a inquietação é que permanece?
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Sim, a inquietação permanece. Houve decerto alguma circunstância concreta que me levou a pender mais para aí, porque os dois lados coexistem em mim. Se eu não fosse um optimista, provavelmente não escreveria, nem fazia nada. Mas a verdade é que também sou, ao mesmo tempo, vulnerável ao pessimismo.
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O humor continua a ser uma arma eficaz?
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Eu acho que é um remédio. Sem humor é difícil sobreviver. Muito difícil. E eu acho que é uma das melhores formas de dessacralizar as coisas intocáveis, tudo o que de repente se transforma num objecto de veneração.
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Por falar em coisas intocáveis e objectos de veneração, este ano João Paulo II voltou a Portugal. Só que desta vez o Alberto Pimenta não assinalou «A Visita do Papa». Porquê?
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Na segunda vinda do Papa, havia ainda umas centenas de exemplares da primeira edição e foram postos à venda com uma cinta: «João Paulo voltou, nós também». Mas agora não faria sentido. A primeira vez tem graça; a terceira já não.
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Quanto ao «Discurso sobre o Filho-da-Puta» não se pode dizer o mesmo, visto que teve uma nova edição há uns meses. Como explica isto? É o facto de se manter actual?
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Sabe, um texto desses poderá entender-se como um manifesto, mas não é. Aquilo não é um manifesto. É uma coisa diferente, sem género definido. Diria que tem algo de ensaio, escrito numa prosa poética e satírica. O livro estava esgotado há muito tempo e era já altura de o reeditar. Havia muita gente que o queria ler, mesmo muita gente. Além disso, é natural reeditar um livro cujo tema é eterno. Aliás, como o próprio filho-da-puta. Só os seus processos é que se vão adaptando às mudanças do mundo. E nesta edição fiz umas brincadeiras formais porque isso é um dos meus divertimentos. Se calhar, o texto era um clássico se eu não lhe tivesse mexido, mas faz parte do meu distanciamento, eu nunca considero uma obra demiurgicamente completa. Eu faço e aquilo é um ponto de partida para outras coisas. E depois gosto de mudar títulos, como às vezes faço em certas antologias, deixar cair letras, mostrar também a efemeridade de qualquer discurso. Aliás, no fim do «Discurso do Filho-da-Puta» original, ele desagrega-se em palavras levadas pelo vento.
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A designação «escritor maldito» assenta-lhe bem ou incomoda-o?
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Acho apenas que é excessiva. A expressão fez sentido na sua época, para caracterizar autores como Rimbaud ou Edgar Allen Poe. Agora, depois disso, não faz assim muito sentido. Acho demais. Eu levo uma vida social normal, ninguém foge de mim e eu não fujo de ninguém.
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Isso faz-me lembrar uns versos da sua última obra («Ode Pós-Moderna»): «O que acontece/ é que/ não se pode dizer/ estou-me nas tintas/ com muita ênfase nem rigor/ é mais um rosnar baixo/ e cuspir alto/ e para o lado/ e depois fugir». Há aqui um certo desencanto, mas também uma certa lucidez.
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Eu nesses versos estou a fazer uma crítica à atitude dos pós-modernos, subjacente a esse «estou-me nas tintas». É um «estou-me nas tintas para o que não é o meu trabalho artístico». Ou seja, o resto da sociedade. O «estou-me nas tintas» é só assim um rosnar baixo, porque essa própria atitude interior revela uma enorme falta de força, entusiasmo, vigor.
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É uma revolta domesticada.
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Sim, o que nós sentimos é uma tremenda falta de energia, de grandeza, nas obras actuais. E não é porque os temas se tenham esgotado, meu deus, os temas são praticamente os mesmos desde há 2000 anos. É essa atitude de falta de empenho. As coisas são tratadas com virtuosismo mas sem empenho nenhum. Fica quase tudo à superfície, falta magia. E se calhar não falta só na arte. Falta também na vida política e social. Aos poucos, fomos todos perdendo a capacidade de indignação. Eu não perdi porque já sou velho. É só isso. Venho de um tempo em que era saudável alguém indignar-se. E não me esqueço.
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Costuma fazer ajustes de contas consigo mesmo?
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[pausa] Faço, faço. Mas talvez não seja o meu forte. Por uma razão: eu vivo muito preso ao presente. Não cultivo esse tal vício português chamado saudade, nem perco tempo a fazer projectos para o futuro. Entrego-me sempre às circunstâncias em que estou e por isso não é muito vulgar em mim fazer ajustes de contas. Sabe, eu pertenço àqueles que dizem que uma das infâncias da nossa gramática indo-europeia é o ter permitido o condicional, que não existe em certas línguas. Se eu tivesse virado para a direita em vez de ter virado para a esquerda, etc e tal. Uma das amarras de muita gente é estar sempre a pensar: «Se eu tivesse feito isto, se eu tivesse feito aquilo». Lembro-me que o meu pai caía muito nisso, arranjava sempre maneira de pensar que se tivesse feito ao contrário é que teria sido bom.
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E quando não tomamos as opções correctas, temos que arcar com uma certa culpa, não é?
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É, claro. Com muita culpa mesmo. A culpa existe sempre em nós, porque nós vivemos numa civilização que nasceu com a culpa, desde Adão e Eva. Mas por acaso, olhando agora de um ponto de vista psicanalítico, não me lembro de em criança ter sido inculcado com sentimentos de culpa. E se tenho sentimentos de culpa, é em relação a pessoas isoladas, no sentido em que há coisas que se fazem ou se dizem e não deveriam ter sido feitas ou ditas. Tenho sentimentos de culpa. Sim, tenho. Mas não costumam atormentar-me nem se transformam num poço de angústias.
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O livro «Repetição do Caos», de 1997, abre com uma única frase: «Que estou eu a fazer aqui?». Já sabe?
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Para certas pessoas, poderá ser possível saber nalgum momento da vida, uns muito cedo, outros muito tarde. A resposta será um estar de acordo consigo mesmo, não ter mais ajustes de contas nem nada a dizer, olhar para trás e pensar: era isto mesmo que eu queria ter feito e fiz. Esse livro foi escrito durante uma fase difícil, depois de uma queda que me provocou problemas de coluna. Não estava nada bem e o livro espelha um desconforto imenso. A frase que referiu tem várias leituras possíveis. Pode ser aqui neste país ou aqui nesta casa, ou aqui neste tempo, ou aqui neste mundo. E é certamente todos e se calhar nenhum. Pergunta-me se já sei o que estou a fazer aqui? Não, não sei. Mas nunca estive tão perto de saber.
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Uma entrevista como esta é sempre um processo de exposição. Quem esteve aqui foi o verdadeiro Alberto Pimenta ou alguma espécie de máscara?
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«Às vezes sinto-me sozinho, mas tenho a impressão de que não é exactamente em termos de pensamento, porque eu sei que há muitas pessoas a pensar como eu. O mundo é talvez já tão grande e tão disperso que deve ser muito difícil às pessoas que pensam assim, juntarem-se. Estamos todos separados e o problema é que não sabemos uns dos outros. Essa é a solidão»
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Este homem não tem medo das palavras. O que pensa, diz. Em voz alta, se for preciso. Contra a corrente, quase sempre. Como se fosse uma espécie de consciência (i)moral da nação. Alberto Pimenta, aos 62 anos, já não precisa de provar nada a ninguém. Sem espalhafato, vai construindo a sua obra, cada vez menos incompleta. Numa tarde de Novembro que ameaçava chuva, começou a falar-nos da infância e foi por aí fora.
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O encontro ficou combinado para o Centro Comercial da Mouraria, essa babel onde se cruzam todas as raças de Lisboa, entre tapetes vindos do Oriente, relógios de imitação e cheiro a caril. Junto a uma mercearia indiana, Alberto Pimenta escolhia a dedo três beringelas. Três reluzentes beringelas que depois transportou dentro de um saco de plástico, pelas ruas escorregadias e labirínticas do seu bairro.
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A casa é uma mansarda não muito grande, um refúgio que fica no topo de cinco lances de escada muito íngremes, onde se consegue sentir a força da gravidade a puxar-nos pelo pescoço. Lá dentro, há uma sala de estar, com o tecto de madeira assimétrico, um biombo escuro e um armário de espelhos. Há uma «alcova» onde só cabe uma cama. E há a sala de trabalho, com várias estantes cheias de livros, um quadro com a figura de Baco, outro com uma mulher despida, duas janelas que dão para o castelo de São Jorge (à noite fica iluminado) e a mesa, o lugar central da casa, sempre cheia de papéis, a mesa onde está pousada a máquina de escrever Olympia – amiga fiel e cúmplice, que o acompanha há 35 anos e viu nascer toda a sua obra. Há ainda, mesmo junto à mesa, uma «chaise longue». É nela que Alberto Pimenta se deita em certas noites de verão, a olhar as estrelas no céu de Lisboa. E a pensar na vida.
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Nascido em 1937, no Porto, Alberto Pimenta é professor universitário e autor de trinta livros, muitos dos quais reunidos no volume «Obra Quase Incompleta». As suas «performances» e «happenings» foram autênticas pedradas no charco da cultura nacional. Conhecido pela sua escrita desassombrada, foi autor de dois programas de TV («A Arte de Ser Português», «6 Áreas para Cesário») e teve uma passagem muito breve pela «Noite da Má Língua». Colecciona pedras como forma de recordar os lugares onde esteve (entre outras pequenas preciosidades, mostrou-nos uma rosa-do-deserto). Não tem televisão nem computador. Não quer saber da Internet. Diz que não lhe fazem falta.
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Começamos por onde?
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Olhe, podemos começar por ver se este aparelhinho [o gravador] está a trabalhar.
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Deixe-me ver. A luz vermelha pisca, parece-me tudo ok.
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Ainda bem, ainda bem.
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Comecemos então pelo princípio. Ou seja, pela infância, um tema que não costuma abordar.
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A infância aparece como um lugar mitológico, um lugar mítico. E é. Enquanto a deixam estar no seu espaço, o que é hoje cada vez mais difícil, o espaço da criança é mítico. Ela brinca sozinha, ela conversa com entidades que nós não sabemos quem são, ela inventa. Mas é um inventar que tem, para ela, uma componente de realidade. Se não houver um trabalho qualquer exterior, de tipo psicanalítico, daqueles que tentam escavar-nos até ao fundo, acho que a infância é qualquer coisa de que nós nos vamos esquecendo e de que só guardamos episódios soltos, sem ligação. É diferente do que se passa, mais tarde, na idade adulta: tudo cheio de causas e consequências, opções e erros, etapas e planos.
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Ao fazer a pergunta, não me referia à infância como conceito geral, mas à sua infância em particular.
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Certo. Eu vejo a infância mais como aquele dia em que aconteceu isto ou a tarde em que aconteceu aquilo. Por exemplo, eu poderia falar agora – e estou a lembrar-me – daquela noite de Natal, teria eu cinco anos, em que acordei às quatro da manhã, não sei porquê, e cheguei à sala e vi um triciclo. E hoje lembro-me, não é bem do triciclo, mas de um qualquer deslumbramento interior, um deslumbramento de uma dimensão que hoje não posso compreender. Um deslumbramento que me deixou horas seguidas em êxtase. A mim, parece-me que a infância é esse momento feito de episódios que ainda estão um bocadinho fora do tempo. E até acima do tempo.
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Episódios felizes?
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Suponho que todos nós recordamos com mais ou menos prazer a juventude, porque é na juventude que temos maior energia, que estamos a descobrir a vida, que estamos cheios de força. Estão as portas todas abertas, ainda.
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Há quem tenha, apesar de tudo, uma memória muito negra ou martirizada da infância. Não é então o seu caso?
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Não, não, não. Foi uma infância e uma juventude numa família que não era rica, que era aquilo a que na altura se chamava remediada. Lembro-me disso, lembro-me de algumas limitações que as dificuldades económicas implicavam, mas nenhuma dessas limitações foi de tal ordem que me tirasse qualquer prazer de existir. Lembro-me da minha vida, na infância e na juventude, como uma vida onde o prazer de existir estava implícito, nem se pensava nisso.
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Ao lermos a sua obra, notamos que se refere mais vezes à figura do pai do que à da mãe.
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Sim, há um livro qualquer, ou dois, ou três, em que a figura do pai aparece várias vezes e a da mãe praticamente não aparece. Nunca pensei em ter que colocar essa questão. Mas, colocando-a agora, talvez o motivo determinante seja o facto de o pai ter morrido e a mãe não. Essas referências acontecem depois da morte dele e não recorri a nenhum efeito estilístico. Creio que foi uma catarse.
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Será que um escritor tem o direito de criar a sua própria biografia?
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O direito tem, claro. Como é que lhe podíamos tirar esse direito? Mas, em grande parte dos casos, nunca saberemos qual a percentagem de realidade e qual a percentagem de imaginação que contribuíram para um episódio que se narra; ou para a circunstância que dá origem ao poema. Nunca saberemos, acho eu, porque não deve existir obra nenhuma que seja só fantasia ou apenas reflexo da realidade. Em relação a essa ideia de que o escritor pode criar a sua própria biografia, eu penso que isso é verdade mas acontece com toda a gente. Todos fazemos a nossa própria biografia. A diferença está no grau de consciência que temos, ao fazê-la.
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Mas por maior que seja a margem de intervenção biográfica, há sempre factos incontornáveis. Como o ter nascido no Porto, onde passou toda a infância e uma parte da juventude.
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Sim, vivi lá até aos 16 anos, com uma pequena interrupção, de cerca de um ano, período em que vivi em Lisboa. Depois, fui estudar para Coimbra, porque naquela época não havia Faculdade de Letras no Porto.
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Essa ida para Coimbra foi um corte importante em relação à sua vida anterior?
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Foi, sem dúvida. A muitos níveis. Era outro ambiente humano, as duas cidades são muito diferentes. Passei a ter outro círculo de amigos, passei a ter outro tipo de interesses. Em Coimbra, por exemplo, comecei a fazer teatro. Houve de facto alterações bastante importantes. Não me parece que se possa impunemente mudar assim de um lugar para o outro, sobretudo quando se está em formação, sem que isso venha a mexer com as estruturas do indivíduo.
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Foi nessa altura que despertou o seu interesse pela literatura?
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Não, foi ainda antes, no período do liceu. Eu tive de resto um professor magistral: o Óscar Lopes, que dava aulas de Literatura Portuguesa. Ele deu-me acesso a certos conhecimentos e perspectivas que me permitiram, já por essa altura, conhecer o Fernando Pessoa. Conhecer e começar a gostar de Pessoa, numa altura em que isso era raríssimo. Estamos a falar de meados dos anos 50, quando o poeta, para todos os efeitos, ainda não existia.
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A arca estava fechada…
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Sim, claro. É a partir daí que a minha sensibilidade literária se desenvolve. Eu acredito que qualquer trabalho artístico se vai desdobrando, como um novelo. Há um novelo que começa, puxamos uma ponta e depois vem tudo atrás. Surge uma primeira manifestação, depois essa acabará por trazer outras, e outras, e outras. Isso se, de facto, o novelo existe. Nunca sabemos se ele existe, nunca sabemos quando ele acaba. Ao fim de uma vida passada a procurar formas de expressão do tipo criativo, claro que se ganha certas obsessões, claro que se quer encontrar o fio. O certo é que algum dia o novelo acaba, de uma maneira ou de outra!
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Como era o princípio do novelo? Aqueles versos típicos de um jovem que começa a escrever?
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Sim. Mas que outra coisa podia ser?
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São versos perdidos?
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Sim, são versos perdidos. Suponho que tenho ainda um manuscrito de um livro de poesia, que não chegou a ser publicado, mas que serviu para escrever a primeira obra. Isso porque esse primeiro livro é já uma ironização do tal que não foi publicado. É já uma forma de auto-ironia.
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Uma auto-ironia que está omnipresente na sua obra.
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Eu continuo a achar que a grande ironia é a auto-ironia. Aliás, não se consegue fazer ironia sem que haja uma certa dose de auto-ironia. As pessoas que se tomam muito a sério nunca fazem ironia. Em Portugal, a ironia não é muito apreciada porque toda a gente se toma muito a sério. É perante a fragilidade da nossa opinião que vem a ironia. A ironia é uma defesa dos que se sentem frágeis, não dos que se sentem seguros.
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Qual era o estilo desse livro que nunca saiu da gaveta?
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Tinha uma grande influência clássica, pagã. E era uma exaltação do corpo, da presença do corpo. Mas um corpo que tem um espírito. Quando se fala em exaltação do corpo, às vezes pensa-se que se está a fazer uma oposição ao espírito. Como é possível? Um corpo é algo que tem um espírito. O espírito é que faz daquele corpo o que ele é.
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Que idade tinha quando escreveu esses poemas?
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Teria uns 18, 19 anos.
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Mais tarde, quando acaba o curso em Coimbra, parte logo para a Alemanha. Foi de alguma maneira uma fuga ao Portugal cinzento e de horizontes fechados, ao Portugal salazarista?
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Na altura não foi. Ao concluir um curso de Línguas e Literaturas Germânicas, a oportunidade de preencher um lugar de leitor na Inglaterra, ou na Alemanha, funcionava como o melhor estágio possível. Eu acabei o curso e fui convidado para assistente. Quando surgiu a vaga para leitor na Alemanha, os professores acharam que era uma oportunidade excelente e eu fui. Com um plano de trabalho, uma expectativa de regresso, tudo muito ortodoxo.
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Deveria regressar quanto tempo depois?
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Passados três ou quatro anos, mais ou menos. Naquela época havia uma lei que permitia a quem, chegando aos 26 anos de idade, estivesse ao serviço da nação em cargos desses, a isenção automática do serviço militar. E vários colegas meus ficaram de facto isentos. Só que aconteceu, no final de 1961, a invasão de Goa. Como de costume, na maioria dos leitorados portugueses fizeram-se acções de desagravo em nome dos interesses da pátria. Eu não fiz nenhuma. Não senti que fosse o meu papel. Essa atitude e mais três ou quatro coisas pesaram contra mim. De tal maneira que um ano antes de me poder ser aplicada a tal lei, em 1963, fui demitido com o objectivo de me obrigar a cumprir o serviço militar.
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Foi uma represália.
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Sim, pelo menos em parte. E eu hesitei. Hesitei muito. Hesitei tanto que cheguei a vir a Portugal para me apresentar ao serviço militar. Mas depois de chegar cá e ver o ambiente durante 15 dias, depois de ver aqueles soldados a marchar pela rua gritando «Angola é Nossa», «Angola é Nossa», decidi voltar para a Universidade de Heidelberg, que me tinha garantido: se você quiser, oferecemos-lhe um contrato. Eu aceitei a proposta e regressei à Alemanha. No ano seguinte, estava lá um representante do Instituto de Alta Cultura português a convidar a universidade alemã a despedir-me. Caso não o fizessem, ameaçavam cortar bolsas de estudo e coisas desse género. Mas os alemães não cederam a esse tipo de pressão, ainda por cima muito mal feita, muito violenta, a pressão de quem chega, quer e manda. Chegou lá o doutor não sei quantos e disse: «Vocês não podem ter aqui este homem, que é um traidor à pátria». Os alemães acharam que podiam. E eu lá fiquei. Só regressei em 1977.
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Em 1977, três anos depois do 25 de Abril. Por que é que não veio logo depois da revolução?
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Em primeiro lugar, não se pode vir assim, imediatamente a seguir a uma revolução. Sobretudo para quem não tem relações, como eu não tinha, nem a forças políticas, nem a grupos, nem a ninguém, nada, absolutamente nada. A verdade é que às tantas, ainda antes do 25 de Abril, retiraram-me o passaporte português. O consulado não me renovou o passaporte. Fiquei sem ele. Portanto não tinha alternativa senão voltar a Portugal ou pedir a naturalização. O asilo político era impossível, só se podia fazer vido de fora e eu estava lá dentro. A naturalização não é fácil mas eu tinha as condições todas: os anos de permanência, a integração profissional, o conhecimento da cultura e da língua, essas coisas. Fiz o pedido e um belo dia chegou a carta que me concedia a naturalização. Era o dia 23 de Abril de 1974. Assim que se dá a revolução, agradeci às autoridades alemãs e pedi um período de reflexão, em face do que se passava. Eles deram-me esse tempo de reflexão, seis meses, e eu declinei, por razões óbvias, a naturalização que tinha pedido. Com isto, estávamos em finais de 74. Nessa altura, vim a Portugal para regularizar a minha situação. Apresentei-me a uma inspecção militar, tinha 37 anos, não estava nada bem de saúde e deram-me a entender que iria ser considerado inapto. Mas não, fui considerado apto e deram-me uma guia para me apresentar, dali a 15 dias, nas Caldas da Raínha. Claro que não me apresentei, claro que voltei para a Alemanha e claro que fiquei pela segunda vez refractário. Ou seja, fui refractário antes e depois do 25 de Abril. Com estas coisas todas, a relação com a pátria foi ficando um pouco abalada. Às vezes, sabe, as coisas tomam um caminho que é feito de acasos e de circunstâncias, mas todos os caminhos são assim.
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Foi um desses acasos que o trouxe de vez, em 1977?
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Bom, quando voltei em 77 foi por razões pessoais, não foram outras.
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O país que encontrou era muito diferente daquele que tinha deixado?
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Um país é feito pelas pessoas. Eu não esperava encontrar diferenças arquitectónicas ou paisagísticas, mas contava descobrir mudanças no comportamento das pessoas. E de facto, nessa altura, confesso-lhe que havia ainda uns restos, depois é que me explicaram os que tinham assistido a tudo, uns restos de uma solidariedade, de uma certa camaradagem. Isso notava-se. Havia aquela facilidade com que os portugueses se entregam à utopia. Não havia praticamente peça de teatro, ciclo de conferências ou publicação que não tivesse como base a ideia de um progresso social, de uma justiça social. Isso embora já começassem a regressar do Brasil certas sombras antigas. E a pouco e pouco, muito devagarinho, havia já o crescimento de um certo peso económico, da macroeconomia, dos consórcios, disso que não se vê e que é o dono de tudo. Depois, uma das faltas graves entre os portugueses era, e continua a ser, a capacidade de entusiasmo. Talvez as pessoas estejam sujeitas a um tal aperto, talvez lhes roubem o tempo de uma tal maneira, talvez estejam numa tal angústia, que têm sempre um ar tristonho, pesado. Não sei o que será preciso para entusiasmar um português. Talvez um jogo de futebol, deve ser a única coisa.
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Depois do regresso, sentiu-se um estrangeirado?
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Não quero de forma alguma colocar-me nesse rol, onde aliás estaria muito bem acompanhado. O que posso dizer é que esse regresso não foi pacífico. Em termos de convivência. Levei muito tempo a adaptar-me à melancolia portuguesa, ao ficar triste sem saber porquê, à lamúria, à queixa, ao lamento. Agora estou habituado, como alguém que pode dizer, após 15 anos na prisão: «Estou habituado, já não dou murros nas portas». É mais ou menos isto.
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Ao ouvir essa amargura em relação ao país, nascida certamente de uma relação de omor-ódio, lembro-me que ela tem muitos antecedentes na literatura portuguesa. Penso em Alexandre O’Neill, por exemplo.
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Ah, sim, o O’Neill, claro. Mas já podemos ver isso no Camões. Se lermos «Os Lusíadas» com atenção, encontramos verdadeiras diatribes contra o país. Não tenho a certeza mas creio que é no final do canto VI, na última estância, que ele diz qualquer coisa como isto: «Nunca no mundo vi país, nação, nem bárbara, que prezasse tão pouco as artes como Portugal». E depois há o Garrett, o Eça, tantos outros. Isso não surge do nada, não são meia dúzia de tipos com a mania da perseguição.
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Mais de vinte anos depois do seu famoso «happening» no Jardim Zoológico, durante o qual ficou fechado numa jaula com uma placa que dizia «Homo sapiens», como é que olha para aquela intervenção artística?
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Eu tive essa ideia já na Alemanha, muito tempo antes. Mas nem sequer pensei em fazê-la, porque passaria a ter, imediatamente, uma outra conotação. Eu seria logo o estrangeiro, o imigrante. E isso não me interessava. Em Lisboa apareceu a oportunidade e eu aproveitei-a, com aquela euforia que nasce apenas do acto de fazer. Fazer e esperar uma reacção. Essa reacção está publicada em livro, com tudo o que foi dito por quem passou em frente à jaula do Jardim Zoológico. É extraordinário imaginar o que passa pela cabeça de alguém para dizer certas coisas que ali se disseram. È curioso verificar que a atitude recorrente foi uma certa forma de distanciamento. Diziam que eu era maluco, ou que tinha feito alguma coisa para merecer aquilo, ou que estava a fazer publicidade. Só houve duas ou três pessoas que deram ao «happening» uma dimensão humana geral. Houve mesmo uma que disse: «Isto é para mostrar que estamos todos presos». Eu fiz, 14 anos depois, uma coisa a que chamei «Homo venalis», uma espécie de «homem vende-se», ali junto a uma igreja do Chiado, num dia do turista, embrulhado numa grande serapilheira e os comentários, as hipóteses de explicação, foram praticamente os mesmos. «Isto é um filme». «Isto é publicidade». Quer dizer, as pessoas queriam defender-se, pensando «isto não é comigo».
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Ao fim e ao cabo, estavam a incorporar o que lhes era estranho numa lógica qualquer…
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Tal e qual.
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Porque o que é estranho mete medo.
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Exactamente. É como se houvesse uma necessidade de integrar o que não compreendemos numa ordem lógica que torne as coisas aceitáveis, uma ordem que nos sossegue.
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Acha que a linguagem artística entendida como uma forma de acção, seja através de «happenings» ou de «performances», ainda faz sentido nos dias que correm?
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Eu acho que um certo tipo de «happenings» continua a fazer sentido, mas temo que não exista muito espaço para eles no actual cenário mediático. Por exemplo, qualquer «happening» com uma intervenção política está a entrar no campo da manifestação. Há espaços hoje muito bem delimitados em que o «happening» não estará nunca, talvez, totalmente à vontade. O mesmo não se passa com a «performance». É um espectáculo que exige muitíssimo, muito mais do que um espectáculo de teatro, porque não é representar, é qualquer coisa de único. A verdadeira «performance» nunca se faz duas vezes. Aconteceu em certas circunstâncias, com um certo público, e não se repete. O papel que o artista conceptual pode ter, hoje, é este: não fazer uma modernidade que consiste em variar o que as linguagens artísticas estão fartas de dizer, mas apresentar momentos que confrontem quem os vive com esta ideia: afinal, é possível que as coisas aconteçam de outra maneira.
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O artista deve ser um agitador, um provocador?
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Eu acho que sim. Até porque a arte procura algo que está escondido nas consciências. Algo que não vem nos jornais, não vem nas televisões, não faz parte do Orçamento Geral do Estado. Nesse sentido, a arte agita e provoca. Em termos de ideias, só vale a pena aquilo que agita e que provoca.
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E não o incomoda o facto de ser relativamente pouco conhecido?
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Nada. Repare que se isso fosse muito importante para mim, não era assim tão difícil ser pelo menos um pouco mais conhecido. Bastava ser sócio de duas ou três associações, para alguma das quais já fui aliás convidado, frequentar grupos, ter um lugar e visibilidade. Mas não me agrada o espírito corporativo. Não tenho capacidade nenhuma de me juntar com pessoas e com elas fazer grupos fechados, só porque trabalhamos na mesma coisa.
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Continua a considerar-se «um poeta cujo silêncio tem muitos admiradores»?
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Isso foi um achado, porque a frase tem outro sentido, para além do óbvio. Referia-me a quem, não querendo admitir abertamente que considera as minhas obras insuportáveis a vários níveis, se refugia dizendo: «Ah, ele escreveu uma coisa muito interessante, que foi “O Silêncio dos Poetas”». Ou seja, uma obra ortodoxa. É mais ou menos como aquelas pessoas que têm de dar parecer sobre um quadro e depois dizem: «Ai que linda moldura». Sim, sim, o meu silêncio tem muitos admiradores! Pois claro que tem.
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Quando escreve ou quando faz uma «performance», é lícito afirmar que está sempre a agir contra a ideia de poder?
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Sim. Raras vezes contra qualquer tipo de poder concreto, mas contra um poder abstracto. O das hierarquias do dinheiro, por exemplo. Marx, e eu gostava de ver alguém que pusesse isto em causa, disse que neste mundo só há duas maneiras de ganhar a vida: ou dos rendimentos, ou do trabalho. Portanto, há uns que têm rendimentos, não precisam de trabalhar. E há outros que têm que trabalhar, têm que se vender a si mesmos. A mim parece-me que isto é um facto, e cada vez mais. A monstruosidade desses rendimentos que já são assim uma espécie de deus, esses grandes consórcios, esse polvo, essa realidade é uma opressão. Porque alguém poderá pensar que se pode chamar felicidade ao modo de viver destes milhões de pessoas que se levantam às seis ou sete da manhã, vão para um emprego na maior parte dos casos estupidificante, trabalham lá o dia todo e vêm ao fim do dia para as suas casas, pouco confortáveis e ainda por cima pagar? Esta opressão toda vem desse tal poder, que neste momento é um poder cada vez mais abstracto, mais difuso.
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Tem certamente a noção de que há poucas pessoas que se revoltem contra esse estado de coisas. Sente-se de alguma forma a clamar no deserto, como se fosse uma espécie de anarquista solitário?
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A pergunta é boa porque me obriga a pensar. [silêncio] Eu às vezes sinto-me sozinho, mas tenho a impressão de que não é exactamente em termos de pensamento, porque eu sei que há muitas pessoas a pensar como eu. O mundo é talvez já tão grande e tão disperso que deve ser muito difícil, a várias pessoas que pensam assim, juntarem-se. Estamos todos separados, nem sequer sabemos que existimos. Essa é a solidão. Mas eu não me convenço de que estou completamente sozinho. Nem é preciso ir muito longe, se calhar aqui no bairro já existirão umas dezenas de pessoas que pensam mais ou menos como eu, cada um a fazer a sua coisa. O problema é que não sabemos uns dos outros.
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Há uns anos definiu-se como um optimista inquieto. Mas agora sinto-o bastante pessimista. Só a inquietação é que permanece?
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Sim, a inquietação permanece. Houve decerto alguma circunstância concreta que me levou a pender mais para aí, porque os dois lados coexistem em mim. Se eu não fosse um optimista, provavelmente não escreveria, nem fazia nada. Mas a verdade é que também sou, ao mesmo tempo, vulnerável ao pessimismo.
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O humor continua a ser uma arma eficaz?
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Eu acho que é um remédio. Sem humor é difícil sobreviver. Muito difícil. E eu acho que é uma das melhores formas de dessacralizar as coisas intocáveis, tudo o que de repente se transforma num objecto de veneração.
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Por falar em coisas intocáveis e objectos de veneração, este ano João Paulo II voltou a Portugal. Só que desta vez o Alberto Pimenta não assinalou «A Visita do Papa». Porquê?
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Na segunda vinda do Papa, havia ainda umas centenas de exemplares da primeira edição e foram postos à venda com uma cinta: «João Paulo voltou, nós também». Mas agora não faria sentido. A primeira vez tem graça; a terceira já não.
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Quanto ao «Discurso sobre o Filho-da-Puta» não se pode dizer o mesmo, visto que teve uma nova edição há uns meses. Como explica isto? É o facto de se manter actual?
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Sabe, um texto desses poderá entender-se como um manifesto, mas não é. Aquilo não é um manifesto. É uma coisa diferente, sem género definido. Diria que tem algo de ensaio, escrito numa prosa poética e satírica. O livro estava esgotado há muito tempo e era já altura de o reeditar. Havia muita gente que o queria ler, mesmo muita gente. Além disso, é natural reeditar um livro cujo tema é eterno. Aliás, como o próprio filho-da-puta. Só os seus processos é que se vão adaptando às mudanças do mundo. E nesta edição fiz umas brincadeiras formais porque isso é um dos meus divertimentos. Se calhar, o texto era um clássico se eu não lhe tivesse mexido, mas faz parte do meu distanciamento, eu nunca considero uma obra demiurgicamente completa. Eu faço e aquilo é um ponto de partida para outras coisas. E depois gosto de mudar títulos, como às vezes faço em certas antologias, deixar cair letras, mostrar também a efemeridade de qualquer discurso. Aliás, no fim do «Discurso do Filho-da-Puta» original, ele desagrega-se em palavras levadas pelo vento.
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A designação «escritor maldito» assenta-lhe bem ou incomoda-o?
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Acho apenas que é excessiva. A expressão fez sentido na sua época, para caracterizar autores como Rimbaud ou Edgar Allen Poe. Agora, depois disso, não faz assim muito sentido. Acho demais. Eu levo uma vida social normal, ninguém foge de mim e eu não fujo de ninguém.
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Isso faz-me lembrar uns versos da sua última obra («Ode Pós-Moderna»): «O que acontece/ é que/ não se pode dizer/ estou-me nas tintas/ com muita ênfase nem rigor/ é mais um rosnar baixo/ e cuspir alto/ e para o lado/ e depois fugir». Há aqui um certo desencanto, mas também uma certa lucidez.
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Eu nesses versos estou a fazer uma crítica à atitude dos pós-modernos, subjacente a esse «estou-me nas tintas». É um «estou-me nas tintas para o que não é o meu trabalho artístico». Ou seja, o resto da sociedade. O «estou-me nas tintas» é só assim um rosnar baixo, porque essa própria atitude interior revela uma enorme falta de força, entusiasmo, vigor.
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É uma revolta domesticada.
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Sim, o que nós sentimos é uma tremenda falta de energia, de grandeza, nas obras actuais. E não é porque os temas se tenham esgotado, meu deus, os temas são praticamente os mesmos desde há 2000 anos. É essa atitude de falta de empenho. As coisas são tratadas com virtuosismo mas sem empenho nenhum. Fica quase tudo à superfície, falta magia. E se calhar não falta só na arte. Falta também na vida política e social. Aos poucos, fomos todos perdendo a capacidade de indignação. Eu não perdi porque já sou velho. É só isso. Venho de um tempo em que era saudável alguém indignar-se. E não me esqueço.
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Costuma fazer ajustes de contas consigo mesmo?
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[pausa] Faço, faço. Mas talvez não seja o meu forte. Por uma razão: eu vivo muito preso ao presente. Não cultivo esse tal vício português chamado saudade, nem perco tempo a fazer projectos para o futuro. Entrego-me sempre às circunstâncias em que estou e por isso não é muito vulgar em mim fazer ajustes de contas. Sabe, eu pertenço àqueles que dizem que uma das infâncias da nossa gramática indo-europeia é o ter permitido o condicional, que não existe em certas línguas. Se eu tivesse virado para a direita em vez de ter virado para a esquerda, etc e tal. Uma das amarras de muita gente é estar sempre a pensar: «Se eu tivesse feito isto, se eu tivesse feito aquilo». Lembro-me que o meu pai caía muito nisso, arranjava sempre maneira de pensar que se tivesse feito ao contrário é que teria sido bom.
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E quando não tomamos as opções correctas, temos que arcar com uma certa culpa, não é?
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É, claro. Com muita culpa mesmo. A culpa existe sempre em nós, porque nós vivemos numa civilização que nasceu com a culpa, desde Adão e Eva. Mas por acaso, olhando agora de um ponto de vista psicanalítico, não me lembro de em criança ter sido inculcado com sentimentos de culpa. E se tenho sentimentos de culpa, é em relação a pessoas isoladas, no sentido em que há coisas que se fazem ou se dizem e não deveriam ter sido feitas ou ditas. Tenho sentimentos de culpa. Sim, tenho. Mas não costumam atormentar-me nem se transformam num poço de angústias.
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O livro «Repetição do Caos», de 1997, abre com uma única frase: «Que estou eu a fazer aqui?». Já sabe?
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Para certas pessoas, poderá ser possível saber nalgum momento da vida, uns muito cedo, outros muito tarde. A resposta será um estar de acordo consigo mesmo, não ter mais ajustes de contas nem nada a dizer, olhar para trás e pensar: era isto mesmo que eu queria ter feito e fiz. Esse livro foi escrito durante uma fase difícil, depois de uma queda que me provocou problemas de coluna. Não estava nada bem e o livro espelha um desconforto imenso. A frase que referiu tem várias leituras possíveis. Pode ser aqui neste país ou aqui nesta casa, ou aqui neste tempo, ou aqui neste mundo. E é certamente todos e se calhar nenhum. Pergunta-me se já sei o que estou a fazer aqui? Não, não sei. Mas nunca estive tão perto de saber.
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Uma entrevista como esta é sempre um processo de exposição. Quem esteve aqui foi o verdadeiro Alberto Pimenta ou alguma espécie de máscara?
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Não. A única máscara que pode ter havido é aquela que nós inconscientemente vamos adquirindo ao longo da vida. Como dizia um presidente da república americano (do tempo em que os presidentes da república ainda diziam coisas profundas) «a partir dos 35 anos, cada um é responsável pela cara que tem».
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Aos 62 anos, sente-se responsável pela cara que tem?
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Sinto, claro que sinto, porque ela às vezes é – e às vezes não é – aquilo que eu gostava que fosse. Repito: se alguma máscara esteve diante de si, nesta conversa, foi essa que se vai criando e já é uma pele, já é a própria cara.
Não. A única máscara que pode ter havido é aquela que nós inconscientemente vamos adquirindo ao longo da vida. Como dizia um presidente da república americano (do tempo em que os presidentes da república ainda diziam coisas profundas) «a partir dos 35 anos, cada um é responsável pela cara que tem».
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Aos 62 anos, sente-se responsável pela cara que tem?
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Sinto, claro que sinto, porque ela às vezes é – e às vezes não é – aquilo que eu gostava que fosse. Repito: se alguma máscara esteve diante de si, nesta conversa, foi essa que se vai criando e já é uma pele, já é a própria cara.
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