15.6.07

Jorge Silva Melo: O Nariz

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Isso é um livro?
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"O Nariz" de Gogol, solicitei. A rapariga era uma virago: "Isso é um livro?" O extravagante diálogo decorreu numa tarde de Abril numa livraria que já teve as suas horas, nesta cidade mesmo de Lisboa. "Não vinha aqui procurar sapatos..." A empregada, furibunda, avançou para o computador, gritando para uma colega: "Já ouviste falar de um livro chamado 'O Nariz'?" A outra aconselhou a busca no computador. Lá fomos e ainda ouvimos a voz desta segunda, perguntando: "Isso é recente?" "Sim, saiu uma edição há uns dois anos..."Velho "livrariófilo" (não é bibliófilo, é "viciado em livrarias e estantes"), desconfio destas livrarias onde os vendedores se precipitam para as máquinas à procura de "stocks", não sabem o que está nas estantes, nem a cor do livro, nem me aconselham outra edição, ou mesmo outra obra ou outra ainda... Embora já o tenha, teria comprado as "Almas Mortas", tivesse a rapariga dito um "este saiu há menos tempo e é uma tradução do russo...". E teria comprado Kafka, se me tivesse dito "são parecidos"; e então se tivesse apontado o que de Gogol há em Rodrigues Miguéis, cá trazia eu para casa mais uma "Gente da Terceira Classe". Depois da lenta consulta - e eu a querer fumar... -, lá disse a assertiva jovem (também há jovens imbecis...): "Isso não existe." A outra, mais simpática, trouxe-me até à porta e sussurrou: "Vá àquela ali, é melhor... nós não percebemos nada disto." Lamentei, cá para mim, as misérias da vida que obrigam uma moça alegremente ignorante a trabalhar numa livraria e não numa lojinha de bugigangas, e segui o conselho. Pois não é que a empregada desta outra livraria, a "melhor", empregada mais antiga que fazia "crochet", interrompe o passatempo e me olha, aterradora: "Isso é um livro?", pergunta-me. "É... e saiu há uns dois anos..." "... Ó Não-Sei-Quantas chega aqui, conheces uma editora que se chama 'O Nariz'?", grita para o fundo. "Não é uma editora, é uma novela, a edição é da Assírio e Alvim." "Dessa, temos umas coisas", disse, pousando o "crochet" e deixando-me com ténue esperança. "Não sei bem o quê, mas temos..." e lá atacou o amaldiçoado computador. "Olhe... temos o Fernando Pessoa... esse temos, não quer?" "Não, queria o Gogol", repeti e já passara meia hora desde que me dera aquele desejo maldito de comprar uma das mais belas novelas de sempre e jamais. "Isso é um livro?", repetiu a livreira, e foi a terceira vez que, numa livraria, me fizeram esta pergunta. Lá disse que supunha que nas livrarias se vendem livros (embora, para dizer a verdade, durante esta já quase hora, não tenha eu visto nem um cliente nem uma venda...).Talvez pudesse ter ido a uma "grande superfície", aí não me perguntam "Isso é um livro?", vêm o código de barras e fazem plim, mas não fui, meti-me num supermercado a comprar iogurtes, voltei para casa, tristonho, sem o meu cobiçado "Nariz" (salvo seja).E ao subir a rua, fim da tarde desta terça-feira, lembrei-me de Londres, de uma daquelas livrarias Stockwell cheia de turistas e "best-sellers", bem no centro de Charing Cross. Vi um livro semiautobiográfico acabadinho de sair da Paula Fox, ignota autora de quem gosto muito (adaptei o seu "Coitado do Jorge"), e, embora ainda "hard-cover", decidi comprar. E a rapariga da caixa, no meio dos clientes que lhe compravam a "Queda de Berlim" e até a Bridget Jones, olhou e disse: "Esse livro é fantástico, saiu há uma semana, li-o ontem e sabe uma coisa?, eu sou dos States (notava-se...) e fui vizinha da autora, vivíamos no mesmo quarteirão, é o melhor livro dela, tão comovente." É verdade: chama-se "Borrowed Finery - a memoir" e, se me viessem agora com aquela "que livro gostaria de ver traduzido...?", desta vez não fazia a lista que começa na "Ilíada".Bem sei, Londres é Londres e foi um acaso encontrar numa livraria uma rapariga que durante meia hora me falou (e bem) de Paula Fox. E Lisboa é Lisboa, que pena! E em duas livrarias da parte mais nobre da capital, ninguém me soube vender "O Nariz" de Gogol (que até é um livro, até existe, até está editado...).
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[Jorge Silva Melo, Mil Folhas (suplemento do Público), 26-04-2003]

1 comentário:

Anónimo disse...

Não te espantes, aqui em São Paulo, ao pedir "As flores do mal" numa 'mega'livraria o balconista levou-me à estante de botânica...