11.6.07

PASSAGEM DAS HORAS
.
Nada me prende, a nada me ligo, a nada pertenço.
Todas as sensações me tomam e nenhuma fica.
Sou mais variado que uma multidão de acaso,
Sou mais diverso que o universo espontâneo,
Todas as épocas me pertencem um momento,
Todas as almas um momento tiveram seu lugar em mim.
Fluido de intuições, rio de supor – mas,
Sempre ondas sucessivas,
Sempre o mar – agora desconhecendo-se
Sempre separando-se de mim, indefinidamente.
.
Ó cais onde eu embarque definitivamente para a Verdade,
Ó barco, com capitão e marinheiros, visível no símbolo,
Ó águas plácidas, como as de um rio que há, no crepúsculo
Em que me sonho possível –
Onde estais que seja um lugar, quando sois que seja uma hora?
Quero partir e encontrar-me,
Quero voltar a saber de onde,
Como quem volta ao lar, como quem torna a ser social,
Como quem ainda é amado na aldeia antiga,
Como quem roça pela infância morta em cada pedra de muro,
E vê abertos em frente os eternos campos de outrora
E a saudade como uma canção de mãe a embalar flutua
Na tragedia de já ter passado,
Ó terras ao sul, conterrâneas, locais e vizinhas!
Ó linha dos horizontes, parada nos meus olhos,
Que tumulto de vento próximo me é ainda distante,
E como oscilas no que eu vejo, de aqui!
.
Merda p'rá vida!
Ter profissão pesa aos ombros como um fardo pago,
Ter deveres estagna,
Ter moral apaga,
Ter a revolta contra deveres e a revolta contra a moral,
Vive na rua sem siso.
.
14/4/1923
.
[Álvaro de Campos, in Poesia, Assírio & Alvim, 2002]

Sem comentários: