14.6.07

Jorge Silva Melo: "foi um erro entrar naquela livraria"

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Talvez seja verdade

O erro foi meu, entrei numa livraria. Parecia-me ter entrevisto na montra o novo livro de Antonio Tabucchi, entrei. Para chegar ao fundo, ao lugar onde há livros (numa livraria, não devia ser o lugar principal?), atravessei várias bancas de bugigangas, revistas que oferecem chinelos e cafeteiras Bodum, agendas, os omnipresentes Moleskine. E as primeiras bancas eram de "best-sellers" e "novidades" com capas picantes, pernas de mulher por todo o lado, um rabo ou outro, siglas iniciáticas.
Fiquei, parvo, a olhar para aqueles livros todos, quilos de papel. Aquilo não era para mim, fora um erro entrar ali, aquele negócio é para outras pessoas (sexodependentes? e compram livros?), as editoras e os livreiros tentam desviar para dentro daquelas casas sombrias a senhora talvez licenciada que a essas mesmas horas há-de mas é estar no cabeleireiro, talvez mesmo no café ao lado a comer uma sande de queijo fresco sem manteiga. Foi a primeira vez que me senti a mais numa livraria, tantas foram as que me foram familiares desde a adolescência.
Definitivamente: não sou "público-alvo". Com quase 60 anos, boas notas na universidade, conhecimento de algumas línguas estrangeiras, não é para mim que agora se produzem livros, passei ao "quadro dos excedentes" da clientela. Aliás, não encontrei o Tabucchi que, sereia falaciosa, me atraíra lá para dentro, para onde só vi um mundo de conselhos práticos ou fantasias erótico-medievais-político-iniciáticas que, de todo, não é para a minha idade e condição cardíaca.
Já na rua, horrorizado, "snob", e com a Primavera a trazer-me saudades de Saint-Germain des-Prés (tantos livros a descobrir confiando na tenacidade dos editores a defender o seu bom nome), pus-me a fazer contas. E posso apostar em que não haveria, naquela loja moderna e central, mais de 8 por cento "de literatura". Estranho que a literatura seja agora minoritária precisamente no negócio dos livros, ou não será? Aqueles "produtos" eram o que se chama "entretenimento" (mas quem se entretem com aquilo tudo?), ou livros de conselhos (mas as pessoas lerão estes milhares de conselhos para emagrecer, fazer saladas, engordar, amar, falar com o chefe, arranjar emprego?), romances históricos (desde "O Monge de Cister" de Herculano que não os quero ver à frente), fábulas, livros de engate ou paródia.
Está bem, nem há literatura nas livrarias nem eu sou o cliente pretendido, eis-me reformado. E lá fui à tabacaria em frente onde aí sim, se encontram agora Bulgakov, Calvino, Pavese, Hamsun, Andric, Tolstoi, Miguéis, Cervantes, e até Teixeira-Gomes, literatura, coisa para velhotes, imagino, entre dois registos para a Santa Casa.
E eu que queria tanto ser "público-alvo", que se me dedicassem edições, programações, que ainda se dirigissem a mim. É que ainda gastava algum dinheiro, juro... Quando leio por todo o lado que o desígnio das políticas é a "formação dos públicos" (para comprarem livros com pernas abertas de rapariga elegante?), entro na melancolia, sinto-me folha morta. O que farão comigo, público já formado? Lixo comigo? Ou terei de passar por educando, iletrado, ignorante para poder entrar num teatro?
A pouco e pouco, o "meio" (político, cultural, editorial, curatorial, programatorial...) descobriu outro destinatário, senhoras ginasticadas, moçoilas aprendizas do amor e os jovens, esses jovens que lhes enxameiam os discursos. E que é deles, que não os vejo nas livrarias, a nenhum desses "alvos"? E não é só com livros, não, é filmes, é teatros, nada disso será doravante para mim. Lembrem-se das recentes declarações da ministra segundo a qual o Teatro Nacional terá como público-alvo os jovens ( e eu, que nunca o quis ser?, não tenho direito a ir ver um teatrinho normalmente para adultos ou mesmo velhos?), a ver ( mais ou menos sic) se eles ficam "mais tolerantes". E percebo que, para existirem, as artes (???) terão de se portar muito bem à mesa, não citar os intolerantes, serão bem comportadas, iogurtes de frutos vermelhos com bifidus, artes limpinhas, para poderem ser propagandeadas como calmantes sociais, gerando boas maneiras políticas.
(Saudades ao Vítor Silva Tavares, casquinemos!)
Ou também a mim me reciclam, "laranja mecânica", a ver se fico "tolerante"?
Foi um erro entrar naquela livraria, vi-me dispensado da vida. Mas talvez seja essa a verdade.
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[Jorge Silva Melo, Mil Folhas (suplemento do Público), 08-04-2006]

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