“O meu pai, o meu avô, que viram eles? Cada um viveu uma vida uniforme. Uma única vida, do princípio ao fim, sem subidas, sem quedas, sem convulsões e perigos, uma vida com pequenas tensões, com transições imperceptíveis; no mesmo ritmo compassado e calmo, a onda do tempo levou-os do berço à cova. Viveram no mesmo país, na mesma cidade e quase sempre na mesma casa. O que se passava lá fora, no mundo, só acontecia verdadeiramente no jornal e não lhes batia à porta do quarto. Havia uma guerra algures naqueles dias, mas era só uma pequena guerra comparada com as dimensões das de hoje e decorria lá longe, junto à fronteira, não se ouviam os canhões e, meio ano mais tarde, estava apagada, esquecida, uma folha seca da história, e de novo se iniciava a mesma vida de outrora. Mas nós vivemos tudo sem retorno, nada do que existiu ficou, nada voltou; a nós estava destinado participar ao máximo naquilo que a história geralmente, e num dado momento, distribui com parcimónia por um país de cada vez, por cada século. Uma geração vivia, quando muito, uma revolução, outra um golpe de Estado, a terceira uma guerra, a quarta um flagelo de fome, a quinta uma bancarrota do Estado – e muitos países abençoados, muitas gerações abençoadas, não viveram sequer nenhuma destas coisas. Mas nós, nós que temos hoje sessenta anos e que legitimamente ainda devíamos ter algum tempo à nossa frente, o que não vimos nós, o que não sofremos nós, o que não vivemos nós? Lavrámos o catálogo de todas as catástrofes inimagináveis de uma ponta à outra (e mesmo assim ainda não chegámos à derradeira folha). No que me toca fui contemporâneo das duas maiores guerras da humanidade e vivi mesmo cada uma delas em duas frentes distintas, uma na frente alemã, a outra na anti-alemã. No período anterior à guerra conheci a forma e o grau mais elevados de liberdade individual e, depois, o seu mais baixo nível desde há centenas de anos. Fui festejado e proscrito, livre e subjugado, rico e pobre. Todos os lívidos corcéis do apocalipse tomaram de assalto a minha vida, revolução e fome, desvalorização da moeda e terror, epidemias e emigração; vi crescer e alastrar sob os meus olhos as grandes ideologias de massa, o fascismo na Itália, o nacional-socialismo na Alemanha, o bolchevismo na Rússia e, sobretudo, a maior de todas as pragas, o nacionalismo que envenenou a flor da nossa cultura europeia. Fui à força testemunha indefesa, impotente, no inimaginável retrocesso da humanidade a uma barbárie que há muito se pensava esquecida, com o seu dogma consciente e programático de anti-humanismo. Estava-nos destinado, tantos séculos passados, a ver de novo guerras sem declaração de guerra, campos de concentração, torturas, pilhagens em massa e bombardeamentos sobre cidades indefesas, tudo bestialidades que as últimas cinquenta gerações nunca chegaram a conhecer e que as vindouras, assim o espero, não voltarão a tolerar.”
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[Ztefan Zweig, de O Mundo de Ontem – Recordações de um Europeu, Assírio & Alvim, 2005]
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