20.9.07

Luiz Pacheco: o 1º de Maio de 1962 no Café Gelo

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"Lembro-me do dia 1 de Maio. Havia uma manifestação muito grande em Lisboa… havia greve, talvez… opá houve mortos e tudo, houve polícias que foram parar dentro do lago do Rossio... aquilo foi a sério... foi a primeira manifestação a sério que houve em Lisboa... depois no dia 8 houve segunda… foi a primeira vez que apareceram carros de água com metilene para marcar as pessoas, tinta que não saía… ele aí apanharam muita porrada, na rua da Madalena, no Largo da Anunciada… então a malta do Gelo, estava lá o Virgílio Martinho, que disse: “o que é que a gente veio cá fazer?” Respondi-lhe: “então a gente veio cá mostrar o casaco… dar porrada? o que é se pode vir fazer…” E de facto estivemos no dia 1 de Maio muito sossegados. Eu sentei-me num cantinho, tinha ao meu lado o pai da Fernanda Alves, que era funcionário do DN, por isso é que o genro aparece no DN, ele estava ao meu lado, também muito choné, e mostra-me a arma que era um canivete com uma coisa deste tamanho… também devia estar o Ernesto Sampaio, o João Rodrigues… ao lado do Gelo havia uma pensão residencial e acho que uma estrangeira qualquer, americana ou inglesa, saiu da pensão para a rua, sabia lá o que se passava, e os gajos vieram atrás da mulher, pareciam verdadeiras feras, ela vinha assarapantada, vieram a sacudir a mulher… disseram: “ninguém se levanta daqui, ninguém sai!” O João Rodrigues tinha ido mijar ao 1º andar, vinha a descer a escada, disseram, “ei você…” E a malta disse: “é daqui! é daqui! é daqui deste grupo que está aqui sentado…” Quando os gajos iam a sair, já de costas voltadas, não sei porque carga de água começámos “uhuhuhuhuhuh”. Quando a malta faz o “uhuhuhuhuhu” os gajos regressam e começam a dar porrada à maluca… eu estou no canto, vem um gajo a distribuir cacetadas… eu aponto para os óculos e fizemos um passo assim de dança, ele para um lado eu para outro, depois começou a dar porrada num gajo que estava sentado e eu pirei-me, pirei-me para outro canto... nós não podíamos sair... Havia uns açucareiros de metal, que eram assim uma meia esfera de metal, cheios de açúcar, aquilo era chato, os açucareiros voaram, estava um gajo com a pinha toda partida, cheia de sangue e de açúcar… havia lá um gajo que era careca, diziam que era bufo, levou porrada dos polícias. O gerente, que era um gajo chamado Sequeira, um gajo muito simpático, foi chamado à esquadra nacional e perguntaram-lhe: “quem são esses gajos?”. “Ah, aquilo é malta, estudantes, artistas, pintores, poetas…” “Não quero lá esses gajos”. De maneira que quando voltámos, 3 ou 4 de Maio, o gerente disse: “vocês não podem estar aqui”. Fomos expulsos do Gelo. Foi quando a malta se passou para o café Nacional, um café enorme, que agora já não há, que era lá ao fundo, na rua 1º de Dezembro, do lado direito..."
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[Luiz Pacheco, em entrevista a João Pedro George, blog Esplanar, Maio 2005]

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