27.8.07

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O FIM DA CINEFILIA

Quem eram os «cinéfilos»? Segundo um dos maiores críticos da história do cinema, Serge Daney, eram gente que gostava de se apresentar deste modo: nós somos filhos do cinema («ciné-fils»). Isto é, nós vemos o mundo através do modo como o cinema vê o mundo, porque essa é a melhor forma de tremer face ao medo, de olhar uma árvore ao fim do dia, de cantar numa praia nocturna a sonhar com o tesouro dos piratas ou de tocar nos cabelos de uma mulher. E por isso consideramos os filmes não apenas como arte, e elementos centrais de uma história da cultura dos homens, mas também como objectos íntimos, segredos que se passam de mão em mão, rebuçados, fetiches, berlindes, abóbadas de cristal donde a neve cai silenciosamente. Isto teve um tempo, teve lugares para se viver, velhas salas de encontros cúmplices, festivais, cinematecas, refúgios, fotografias coladas na parede, cartazes, Johnny Guitars e Gertruds da nossa vida, imperatrizes orientais de unhas lacadas a vermelho, nosferatus do espanto, monstros de terror – e no entanto, ela só dançou um verão (ela, a cinefilia).

Depois, o cinema começou a ser outra coisa, e iniciou uma deriva: por um lado, entrou nas exposições, nos palcos de teatro, nas cenas de dança, nos vídeos, nas televisões; mas por outro, regressou ao seu estatuto de mera indústria, de cabide para produtos derivados, de produção de entretenimentos leves e fáceis de esquecer, envolvidos em pipocas e luzes psicadélicas.

No entanto… Noutro dia, ao fim da noite, iniciei uma dessas rondas de «zapping» televisivo, à procura sabe-se lá de quê, e de súbito a imagem aparece. Havia imagens antes, às dúzias, mas não havia «a imagem». A imagem: era um homem que incendiava uma casa junto ao mar, e depois corria desvairadamente à volta, corria e voltava a correr, e corria ainda, e ainda, e ainda, e chegavam outros, num carro, que o pretendiam apanhar e ele corria mais, corria sem ter para onde correr, corria para ficar longe de si mesmo, no desespero de quem se enrodilha na própria sombra, e por fim, havia uma árvore, e uma criança serena que lia debaixo da árvore, e era a paz depois do incêndio. Olhei e senti: esta é a terra do cinema, aquela que eu amei tantas vezes (às vezes de mãos dadas). Percebia-se pelo tempo absurdo das imagens que eram imagens não para serem vistas mas para serem vividas. Tratava-se de um filme feito por um homem que ia morrer: Tarkowski, «O Sacrifício».

No momento em que desaparece uma sala de cinema, o São Jorge, eu sei que é mais um sinal que se acumula: é o longo fim da cinefilia, a minha terra perdida.
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[Eduardo Prado Coelho, in Crónicas no Fio do Horizonte, Asa, 2004]

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