O PEQUENO CAFÉ ANTIQUADO
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Era um bairro de enormes apartamentos sombrios, explicações de Latim, intermináveis corredores, quartos interiores, altos andares sem elevador, árvores nalgumas ruas, muitos automóveis sempre, prostituição masculina na escada do centro comercial que foi, durante uns tempos, o mais elegante, o das prendas de Natal para a mãe, restaurantes pesados, com aqueles pernil de porco e feijoada à transmontana que fizeram os almoços de domingo; eram as Picoas.
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E sempre que por lá passo, vejo as melancólicas personagens de Maria Judite de Carvalho, mulheres inquietas regressando à sombra das suas casas, aos braços de improváveis maridos, costureiras, modistas, gente remediada ou burguesas em desequilíbrio, mulheres que foram à Baixa de autocarro e regressaram com umas compras que eram feitas na antiga Jerónimo Martins ou nas capelistas da Rua de São Nicolau, vejo-as ainda, nem tão velhas como isso, abrindo esta manhã o chapéu de chuva, que o tempo mudou. Vejo-as e vejo os maridos janotas regressando de empregos e das amantes aos fins de tarde burgueses, indo e vindo da Linha do Estoril de todos os perfumes.
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Por isso estranho estas ruas arremelgadas que agora atravesso a pé, ruas de nomes inseguros – Viriato, Tomás Ribeiro, Filipe Folque, Luís Bívar, qual delas é? perguntamos sempre – por onde tantos anos passei da adolescência e juventude, lendo e voltando das sessões de cinema do Monumental ou de teatros no Villaret, às vezes com o “Nouvel Observateur” debaixo do braço, que às quintas-feiras comprava no quiosque do Monte-Carlo, às vezes com amigos de faculdade, de liceu, gente do contra conspirando pelas esquinas da Maternidade Alfredo da Costa.
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Só há poucos meses entrei na Casa Museu Anastácio Gonçalves, a linda moradia de Norte Júnior, ali especada e rasgada pela bela janela que foi o ateliê de Malhoa. E gostei da exposição que lá estava, João Vaz, paisagista com algum mistério, gostei da casa, recôndita, secreta, vida de tantos tempos, tantos convívios, sobrevivente já antes de mim, aquela sua pompa ingénua fez-me sorrir.
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Ainda lá estarão, nalguns andares mais altos, os escuros quartos de velhas senhoras, que ainda pensam que o mundo gira à volta da chícara de chá pelas cinco da tarde e a cançoneta de crooner, gente esquecida em andares com pouca electricidade, ainda lá estarão os botões por colocar, a farda da criada por revirar, um romance francês, um Simenon em português, umas fotografias de casamentos ou de viagens a Espanha, talvez misturadas, agora, com revistas espanholas das que contam o nascimento da Infanta, como antes terá existido o “Paris-Match”. Mas será nos andares de cima, os esquecidos. Tudo o mais, neste bairro encafuado entre o Corte Inglês e o Saldanha de todos os feíssimos vidros novo-ricos, se remoçou, hotéis, escritórios, vidro aqui, prédio de serviços ali, lojas de xispêtêo, gourmets, coisas dessas que passam por ser cidade e mais aqueles prédios que se chamam Plaza e que costumam ficar em arrabaldes, cidades-satélite de Paris, por exemplo, e aqui contaminam o centro histórico, ai a destruição.
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Mas há gente por todo o lado nesta manhã fria, gente que conversa sobre horários, regalias, idas a despacho, sentenças, faltas, atrasos ao serviço, um bulício imenso de gente suburbana entre o croissant e o emprego, tanto guardanapo de papel envolvendo os bolos, conversando interminavelmente, entrando e saindo destes prédios rejuvenescidos, empinocados, janotas. E os passeios são estreitos para tanta gente, a conversa tem de subir de tom quando três pessoas vão ao lado, os papéis caem das pastas (compradas nos chineses) para a valeta encharcada. Estou no futuro, não me reconheço, manhã atravancada e polida nestes cafés abrilhantados, nestes locais de gente que não sei quem é nem saberei, gente agitada e tagarela.
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Recolhe-me a um café antigo, pequeno, de que me lembro das excelentes tranças, café que foi em frente de um andar onde viveu durante anos o José Mário Branco, café onde tantas vezes conversei com o Paulo Rocha, que vivia ao virar da esquina, café dos anos 70, pequenino, bom, nada bonito, de já velhos empregados atenciosos. E ouço, vinda de outra mesa, uma voz que reconheço, vinda do fim do tempo, voz de uma professora que tive na Faculdade, a Maria Elena Mira Meteus, e que, mesmo agora, reformada, guardou o seu tom de menina. Queria uma meia de leite, eram nove da manhã e ia para o cabeleireiro, sorriu ao ver-me, beijámo-nos à despedida, ainda rimos de estarmos vivos.
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E olha que o velho bairro das Picoas renasceu com a conversa com esta professora que, de vez em quando, cruzo. Voltou-me lentamente a antiga ida à leitaria, o livro lido ao pequeno-almoço, o modesto passar das horas corrigindo provas e teimando em ensinar, voltou-me o tempo da minha juventude, aquele bairro insólito voltou a ser meu. Mesmo sem a galeria que ali havia, a Quadrante, onde pela primeira vez expôs o Eduardo Batarda, onde vi os primeiros trabalhos de Ana Vieira, mesmo sem os locais por onde anda a sombra da conspiração dos anos 60, a sombra inquieta da gente do cinema dos anos 90 agrupando-se à volta do Paulo Rocha, tirando fotocópias, enviando protestos até às tantas, mesmo com tanta gente que por ali anda como se fosse noutra cidade, noutro país, senti-me em casa, voltei para dentro de mim.
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Fui à reunião matinal que tinha e voltei, passada uma hora, ao mesmo cafezinho com forte cheiro a farinha, manteiga e forno. E na mesma mesa onde estivera a professora que evocou comigo os tempos de faculdade, estava agora, folheando o jornal, um outro amigo meu de outros tempos (ou semi-amigo, pois nem íntimos somos, nem telefones trocámos), homem que admiro e sempre leio, intelectual, homem de acções e paradoxos vários, homem inteligente e afável, o Manuel Lucena. E com ele voltei a falar, a conversar, que bom encontrar gente de amanhã, ampara a vida.
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O dia vai indo e a vida entregou-se-me.
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[Jorge Silva Melo, in Século Passado, Cotovia, 2007]
26.10.07
O velho bairro das Picoas
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Jorge Silva Melo em 1968
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