19.11.07

A VELHA E AS COISAS
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Verdade se diga que o país era pequeno, bem pequeno mesmo. Logo, é evidente, as coisas também tinham de ser pequenas, para caberem.
Daí os partidos. Havia o Partido Blicano e o Partido Crático; assim reduzidos, cabiam. Eram a Oposição.
Além disso, havia a Posição. O General, os Dois Coronéis, o Sargento (justicialista), o Professor Mustache, autor da Constituição e de «Cartas Patrióticas ao Corneta Pir» e a Velha dirigindo, claro.
Portanto as coisas lá iam, o comportamento geral era bastante aceitável, as cebolas vendiam-se a contento, o nabo aguentava-se, havia a nêspera e o export-import funcionava mais ou menos.
Mas também havia as eleições à porta. Era preciso tento, nada de imprevidências. E chamou-se o Galvez, dos Suplementos Literários, para montar o processo jurídico, organizar e levar o assunto a bom termo, como devia ser.
O Galvez organizou.
Leram-se as dignidades do preparo. O discurso activou-se e a pátria foi avisada que estava em perigo. Houve quermesses. A Velha explicou tudo ao país, mais uma vez, pela televisão. Elegeram-se misses e praticou-se música histórica, própria da conjuntura.
Assim se foram três meses, com várias bofetadas esclarecedoras aos que, pelos cafés, ainda não sabiam.
Então chegou o dia do voto. Todos deram o papel que lhes tinha sido entregue. Alguns espancamentos disciplinares, para clarear o voto, e a contagem fez-se.
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A informação foi a seguinte:
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Sopa de Feijão Branco (candidato Blicano)............. -- 13 728
O Bode (candidato Crático).....................................-- 13 727
D.ª Josefa Sur-Mer (candidata independente)......... -- 13 726
O General (candidato).............................................-- .......13
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Donde, conforme a Constituição, o General foi eleito de novo, por maioria absoluta.
Havia os seguintes impedimentos legais:
Sopa de Feijão Branco não residia há mais de cinco anos no país (inconstitucional, portanto).
O Bode era menor e não estava inscrito nos cadernos eleitorais (inconstitucional, evidente).
D.ª Josefa Sur-Mer não sabia Matemáticas Modernas, já residia há mais de cinco anos no país e, além disso, era Sur-Mer (totalmente inconstitucional).
Vendo o acontecimento, o Galvez ameaçou escrever para mais Suplementos, pondo tudo em pratos limpos, já que lhe parecia – tinha até provas – que Sopa era residente perpétuo.
O Galvez foi chamado. A Velha falou-lhe. O Galvez escutou. A Velha explicou-lhe. O Galvez era patriota. O Galvez ficou convencido.
Daí em diante o Galvez passou a negociar – com exclusivo próprio – na exportação da nêspera conservada, do pescado enlatado e da camisa em renda de bilros. Teve também o Turismo e o Gabinete Alfandegário.
Aqui se vê, portanto, que a coisa pública segui esclarecida, firma, como era de desejar.
No entanto, dado o tamanho realmente pequeno do país, como aliás já fiz notar, houve que fazer mais umas reduções. A Oposição passou a chamar-se só Ó e os Independentes, devido à situação económica e à outra, ficaram apenas Pendentes.
Visto isto, o Galvez foi de ministro plenipotenciário para Tombuctu.
Como dizia a Velha, no seu habitual «Colóquio à Lareira» pela televisão:
– Para a frente, meus filhos. A pátria nos contempla e o passado nos espera.
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[Mário-Henrique Leiria, in Contos do Gin-Tonic, 1973]

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