Quando saiu a 3ª edição de Exercícios de Estilo, na Estampa (edição que ainda se consegue encontrar nalgumas livrarias), Pedro Mexia escreveu este texto no DNA (suplemento do Diário de Notícias) em 12 de Dezembro de 1998:
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TOMAI LÁ DO PACHECO
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Luiz Pacheco, prosador, panfletário, maldito e tudo, não é apenas uma mascote da má-língua nacional. Na Contraponto editou, com pouco dinheiro, literatura da sua, incluindo a sua. Agora a Estampa republica «Exercícios de Estilo», acrescentado-lhe uma selecção de outros textos. É uma antologia indispensável de um grande escritor português
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Ora bem: o Pacheco. Não sei se já repararam (já repararam) que para falar do Pacheco o escriba de serviço arranca um português assim estiloso, malandro, rápido e ao mesmo tempo trabalhado. É que não há dúvida: o Pacheco é um ás da prosa, um tipo vivido, sabido, com mais leitura do que a pose revela, com um faro para os escritores que valem a pena e um desdém para com os barretes literários do nosso tempo. Essa é a primeira precaução a ter: a criatura é muito mais que a mascote mal comportada da nossa literatura, o elefante na loja de porcelana que os jornalistas querem ouvir quando necessitam de vozes discordantes, ácidas ou escandalosas. Porque se o Pacheco é o mestre da má-língua ele é também um conhecedor a sério do que se chama a «vida literária». Ele cruzou-se com os escritores famosos, os escritores esquecidos e os pretendentes a escritores, com os jornalistas e os directores de jornais, com os editores e os políticos e com gente ainda menos recomendável. Nesse sentido, e paradoxalmente, o Pacheco é uma instituição da nossa literatura, pelo menos da literatura boémia e lísbia.
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Mas atenção, porque o Pacheco não é só uma testemunha do meio-século literário. Nem por sombras: o Pacheco é ouro de lei, um escritor como mandam as regras, um valente prosador. Hoje há muitos romancistas, mas quase não há prosadores. O Pacheco, esse, nunca cometeu um romance, nem é preciso. O seu género é a crítica panfletária e o conto autobiográfico ou, como ele diz, as «artigalhadas» e os «textículos». Na crítica ele pratica o memorialismo clínico e mordaz, a autobiografia irónica, o ataque gratuito ou documentado, a admiração que nunca é sem reservas, e sobretudo a polémica. Ora a tradição polémica portuguesa é caceteira, mas com caceteiros do melhorio: José Agostinho de Macedo e Camilo. Tal como eles, Luiz Pacheco nem sempre tem razão, mas também não é preciso. A polémica empresta graça e vivacidade à literatura, mesmo porque em muitos casos é ela mesma literatura: quantos são os panfletos que ainda lemos com gosto mesmo quando as questões estão ultrapassadas e esquecidas? As artigalhadas do Pacheco são por isso mesmo um retrato impressionista, uma intervenção frontal e desbocada e uma forma (nobre) de «literatura comestível».
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É importante pensar que o Pacheco andou sempre metido com dói bandos de peso: os surrealistas e a malta dos jornais. O surrealismo português chegou com vinte cinco anos de atraso, mas valeu a espera: não produziu nenhum «ortodoxo» de primeira água para além de Cesariny (o Lisboa é ilegível, valha-me Deus), mas, como sempre, influenciou decisivamente alguns dos melhores escritores e poetas. Ser surrealista-surrealista não é muito interessante, mas ter uma costela surrealista dá sempre jeito. E então chega a outra família, a dos jornalistas da boémia lisboeta e gente afim, dada aos copos mas também ao trabalho maníaco da prosa: o outro Pacheco (o Assis), Dinis Machado, Cardoso Pires, Nuno Bragança, B. B. (às vezes), chegando a José Amaro Dionísio ou mesmo a Pulido Valente. Gente variada, pois, mas gente muito letrada e nada literata, homens de prosa e barba rija, a pedir uma antologia bem feita. São alguns dos melhores prosadores portugueses.
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Mas o Pacheco não é só um surrealista dissidente e um jornalista dos copos e do estilo. Os seus textículos, contos autobiográficos geralmente curtos e muitas vezes líricos, são do melhor que se tem escrito por cá. Não podemos ignorar prosas como «O Teodolito», «Os Namorados» e sobretudo os fabulosos «Comunidade» e «O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor», textos cheios de ternura e desespero, de memórias e sarcasmos. «Comunidade» mostra como o abjeccionismo de Pacheco pode não ser uma coisa apenas abjecta mas também poética, assim um mundo à João César Monteiro. Nesse relato, uma família dorme numa só cama em condições miseráveis, numa cama-jangada onde se revelam as misérias e esplendores da condição humana. A família, nem é preciso dizer, é a do Pacheco, dado a lolitas e à procriação. «O Libertino…» é uma tragicomédia sexual na cidade dos Arcebispos, em que um libertino frustrado (o Pacheco, está-se mesmo a ver) persegue em vão uma adolescente, não tem dinheiro para ir a um bordel, tem um encontro interrompido com um magala e acaba numa pensão rasca condenado ao sexo solitário; neste texto fica bem demonstrado como a libertinagem do Pacheco não é a libertinagem sofisticada dos aristocratas racionalistas e decadentes – embora o Pacheco não seja um filho das ervas – mas uma cedência sem culpa nem alegria às pulsões e às oportunidades da vida (v. Cardoso Pires na «Cartilha do Marialva»). Em relação a estes textos o Pacheco sente-se um pouco como os cantores que vêem o público pedir sempre os mesmos velhos sucessos: já está farto deles. Mas, o que é que se há-de fazer, são mesmo do melhor que escreveu?
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Existe em Portugal uma certa corrente surrealista-abjeccionista que tem no Pacheco o seu patriarca, mas o certo é que a descendência não vale nada ao pé dele. Porque o Pacheco, apesar dos processos, das prisões, das adolescentes e dos rapazes, das pensões, dos sanatórios, do alcoolismo, da mendicidade, do «viver de amigos», vê esse ofício de «escritor maldito» como uma condição apesar de tudo útil mas não como um destino voluntário. Muita gente gosta de Pacheco por má razões, mas isso é o que acontece com todos os «malditos». Porque o Pacheco, ó dadaístas, faz literatura, escreve prosa da melhor, faz estilo sem exercícios, é um panfletário sem ser um energúmeno, é terrivelmente sincero mesmo quando finge. Não é um velho dos Marretas ou o «marginal» de serviço, mesmo que queiram vê-lo assim. Na Contraponto deu-nos Cesariny e Herberto, e também Kleist, Dostoievsky, Pirandello, Tchekov e Apollinaire. O Pacheco, enfim (mas é preciso dizê-lo baixo) é um escritor. Depois de sucessivas mas obscuras edições e reedições, já se tornava necessária a reunião de vários textos num só volume. A edição da Estampa não é brilhante, mas é mesmo assim preciosa e tem uma bibliografia patusca. A seguir o que falta mesmo é a obra completa. Em papel-bíblia, claro.
29.1.08
Exercícios de Estilo: a crítica de Pedro Mexia
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