8.2.08

O Crocodilo que Voa

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Saiu finalmente o tão aguardado O Crocodilo que Voa, livro em que João Pedro George reune entrevistas dadas por Luiz Pacheco de 1992 para cá, três das quais eu já deixei aqui no blog: a da Kapa (1992), a do JL (a Rodrigues da Silva, em 2005) e a última, do Sol.
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A edição é da Tinta da China, que no seu site até permite dar uma espreitadela no interior do livro.
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No Público de hoje, Pedro Mexia faz a sua crítica:
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A LÍNGUA SOLTA
Confissões e provocações numa antologia de entrevistas a Luiz Pacheco
(Três estrelas e meia)
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Luiz Pacheco (1925-2008) explicou assim a má fama que o perseguia: "É para desvalorizarem o meu critério. Para que se diga: aquele gajo diz mal de tudo, não tem discernimento, é um invejoso. Assim, quando eu digo mal deles já ninguém liga. Quando afinal os outros gajos dizem a mesma coisa que eu, só que não têm lata de o escrever. Parece que se esquecem de que eu editei o Cesariny, o Herberto Helder, a Natália Correia, o Vergílio Ferreira. Aí não estava a dizer mal deles" (pág. 156). Infelizmente, o mais comum é que as pessoas esqueçam a "Comunidade", "O Libertino" e "O Teodolito", esqueçam que Pacheco editou o "Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano" ou "O Amor em Visita". Mas ninguém esquece aquilo a que ele mesmo chamou "o folclore".
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A mitologia pachecal foi alimentada pelas entrevistas truculentas e desbocadas, frequentes na última década e meia. A moda começou na "Kapa" de Julho de 1992 e terminou no semanário "Sol" de 12 de Janeiro de 2008, uma semana depois da morte do escritor. A antologia "O Crocodilo que Voa" tem como balizas esses dois textos. Conscienciosamente editado por João Pedro George, o volume inclui um prefácio perspicaz e muitos dados bio-bibliográficos [há dois ou três lapsos, um deles grave: "a fase sangrenta" é na verdade o livro de Vergílio Ferreira "A Face Sangrenta"].
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Luiz Pacheco confessou várias vezes que não tinha imaginação, e que muitos dos seus textos mais conseguidos são autobiográficos. As entrevistas vivem essencialmente dessa componente memorialística. Temos o Pacheco literato, mergulhado nos clássicos na biblioteca do liceu, aluno de 18 com Nemésio, conspirando no Café Gelo, cansado do neo-realismo, editando autores catitas na Contraponto, escrevendo artigalhadas para jornais, mandando os seus livros à cobrança, reeditando textos para ganhar algum. Temos o Pacheco que lembra o avô capitão-de-mar-e-guerra, que regressa ao bairro onde nasceu e não reconhece quase nada, que enumera as suas muitas casas e os seus muitos filhos. Temos o Pacheco preso no Limoeiro por estupro, internado no Júlio de Matos por causa da demência alcoólica, o Pacheco que conta maluquices de cama e que assiste à Revolução de pijama. Temos o Pacheco dos quartos alugados e dos lares tristes, verdadeira "parada de monstros", o Pacheco das calças curtas, com asma, sem dentes, quase cego, dependente de remédios, afogado em fãs mas numa grande solidão, vendo novelas e folheando álbuns de nus "para me lembrar como é um corpo de mulher".
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Acontece que as entrevistas geraram um sistema autónomo, criando uma personagem que já não dependia dos textos. O próprio escritor se queixou de que alguns entrevistadores não conheciam os livros que ele tinha escrito e apenas liam entrevistas anteriores. Assim se perpetuou um circo com resultados garantidos. Os jornalistas procuravam Pacheco porque esperavam confissões picantes: "eu não fodo desde 1975". Anedotas: "só entrei para o partido [comunista] quando me apareceu uma hérnia". Ou asneirame, como a "mensagem para as novas gerações" que é um singelo: "puta que os pariu". Esperavam sobretudo aqueles ataques sem paninhos quentes que apenas se admitem a um excêntrico. Como refere George, em muitos casos percebe-se que os entrevistadores querem fazer ajustes de contas com palavras alheias, e Pacheco está quase sempre disposto a esse jogo. Quem procura este livro para umas risadas e umas descargas de bílis, tem satisfação garantida. Namora era "abaixo de cão", Cardoso Pires um "aldrabão", Torga "um chato do caneco", e assim por diante Urbano, Eugénio, Dacosta e os novos, às vezes com uso copioso de vernáculo. Pacheco também é capaz de elogios (Cesariny e Saramago, Hélia Correia e, para espanto de muitos, Pedro Paixão), mas não é isso que interessa às gentes. Baptista-Bastos, numa entrevista de 1994, pede sem rodeios: "Nomeia cinco prosadores que detestes".
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A maledicência é no entanto menos interessante que a lucidez. Além das muitas críticas individualizadas (algumas impagáveis), Pacheco tinha uma noção de conjunto essencial: o "meio literário". Ao seu discípulo sociólogo, explica: "Eu não te vou ensinar, eu ensino-te é a combater o meio... Ó pá, um tipo que quer fazer carreira, se não for parvo de todo e for um bocadinho filho da puta... é facílimo... O meio literário é de cortar à faca, é muito fácil de penetrar (...) Agora combater o meio, isso é que é difícil, é o mais difícil. A questão é esta, estúpidos, conformistas, cobardes, é a maioria da malta... (pág. 222). Mais que os compadrios e cunhas, que tanto obcecam George, o que conta aqui é o reflexo do "meio" nos livros em concreto. Em grande medida, a crítica literária de Pacheco vive da denúncia das fórmulas: a grafomania da "literatura por avença", a "literatura de casino" feita para os prémios e o "romance internacional" como género único de quem quer traduções.
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Estas entrevistas a Luiz Pacheco valem, cito J.P. George: " (...) pela agilidade mental ou pelo implacável sentido da lógica, pela sinceridade desarmante ou pelo desapego de quem não quer ser correcto ou bem-comportado; (...) pelas intervenções cómicas, o humor negro, o absurdo, o sarcasmo, a picardia, o cepticismo de quem viu e viveu muito (...) (pág. 11). Como é inevitável, há aqui bastantes repetições, cansativas numa leitura seguida, mas também surpreendentes desmontagens das categorias de "maldito" e "libertino" (ambas próprias de outras épocas e outros costumes) e uma ausência de auto-complacência que leva o escritor a reconhecer que a sua Obra se reduz a uns "textos soltos". Que no entanto contam muito mais que o espectáculo (reconhecidamente divertido) da língua solta.

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