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[Excerto de documentário realizado por António José de Almeida para a RTP2]
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“Conheço Condeixa-a-Nova, vivi curtas temporadas em Alcabideque, lugarejo dali distante uma légua, vai-se bem a pé, estrada plana, várzea fecunda, muita água a correr, monumentos romanos, gente boa e franca. Travei amizade com pessoas que lidaram com o Fernandinho desde pequenino, me revelaram o grande mistério daquela alma. Aí pelos 8, 9 anitos, ele começou a manifestar sintomas de sonambulismo. Não se curou. Aquilo agravou-se com a idade. Estamos agora em 1960, ano da fabricação de Domingo à Tarde, a dar crédito ao que ele exara no final do livro: Lisboa, de 1959 a Outubro de 1960. Por então chamava-se Flores para o túmulo de Clarisse, aliás o título da versão catalã: Flors a la tomba de Clarisse. Labor intelectual intenso, calor na moleirinha, ânsia desenfreada de caçar o prémio, será que terão contribuído para que as crises de sonambulismo orientado, esse estado crepuscular da consciência, se agravassem? com manifestações mais frequentes e agudas? A coitada da Clarisse, o Lins, o dr. Óscar, as oitenta quiladas não lhe saíam da cachola, dia e noite, dia após noite e vice-versa, baralhando-se numa enorme barafunda? Devemos admiti-lo. Mais: só pode ter sido isso. O quadro é, então, o seguinte: Namora dorme, pesadamente. De súbito, num gesto brusco, atira as roupas cama fora, senta-se, hirto, estica os braços para a frente, salta pró chão sem que nada ou ninguém o possam impedir. Do balandrau cor-de-rosa como ele gosta, para se dar ares de esquerda e lhe fica a matar com o bronzeado da cútis, sempre com os braços esticados, vai em passo de ganso, tal um robô, à saleta onde trabalha. Puxa um livro da estante, começa a folhear (sempre a dormir), sublinhar, copiar frases inteiras. Vai escrevendo («o esboço é escrito à mão, a versão definitiva à máquina», revelou, numa entrevista). A páginas tantas, chateia-se (o seu subconsciente, tá visto), levanta-se, estica outra vez os braços muito esticados e regressa, a passo de ganso ou aos pulinhos, para a caminha. De manhã, quando repara nos escritos com a sua letra sobre a secretária, elogia-se: «ena! ontem fartei-me de trabalhar». Toca a pôr na versão definitiva, à máquina.
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Esta minha versão, repito: científica, esclarece todas as dúvidas, destrói interpretações levianas, silêncios escusos. Por exemplo: suponhamos que Vergílio Ferreira veio a saber – e há quantos anos? – das fraudes, dos surripianços, do seu querido amigo. Conhecendo a doença dele, aguentou e, piedosamente, carinhosamente, calou-se. Também o tosco das coincidências, a inocência de Namora no caso do Prémio e durante todos estes anos que passaram, ficam ilibados. Por outro lado, e é problema que aos investigadores futuros desde já se coloca, quantas e quantas páginas, quer em Domingo à Tarde, quer nos seus outros livros, não terão sido resultantes de chupanços parecidos, em transe de sonambulismo orientado? Fontes de Namora: um tema inesgotável. Ou, então, ele vai curar-se definitivamente e vai consagrar o resto dos seus dias a varejar dos seus volumes tudo aquilo que lá meteu como sonâmbulo chupista."
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[Luiz Pacheco, in O Caso do Sonâmbulo Chupista, 1980]
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