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“A aceleração do progresso tecnológico põe-nos portanto perante a perspectiva da aniquilação de todas as virtualidades não úteis e não rentáveis com que Deus provavelmente distraído, ou talvez só desejoso de se divertir, dotou os humanos. Ou, porventura, esse Deus não era ainda suficiente «desenvolvido», conhecedor das leis da rentabilidade e da planificação. O facto é que não foi capaz de fabricar, logo de entrada, o homo æconomicus et planificator. Passaram muitos séculos antes que o burguês procurasse corrigir a obra divina à imagem e semelhança de si próprio.
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Mas os meios do burguês eram precários, e o combate tinha de ser incessantemente recomeçado, contra a prodigalidade e a preguiça, a anarquia, o espírito contemplativo, o sonho, o capricho, o aventureirismo, a criancice, a ilusão. Era uma luta de jardineiro obrigado a podar todos os dias a estátua de murta, de que fala o Vieira. Alguns sucessos prodigiosos foram alcançados: a invenção do livro do Deve e Haver, os bancos, os cheques, a revolução industrial inglesa, a unificação do trabalho mercantil, a exploração de matérias-primas desconhecidas, a contabilização geral da vida, a subordinação à Ciência e à Técnica. Tudo passou a ter um valor contável na expressão quantitativa mais universal que existe: o dinheiro. Viram-se nascer cidades, como Amesterdão, em que os homens estão tão domesticados como o mar dentro dos canais. E civilizações fabulosas surgiram, como a norte-americana, em que ninguém para de trabalhar; em que se almoça a correr, no bar; em que não se perde um minuto, em que tudo se capitaliza. Encontraram-se soluções admiráveis para tirar ao sexual intercourse o seu carácter mágico e sagrado, assegurando ao mesmo tempo o equilíbrio higiénico favorável à produtividade. O erotismo substituiu o amor. Um aforismo sublime resume esta civilização: Time is Money; o tempo não é vida que se gasta, nem prazer que se goza, nem é tão-pouco desespero em que se perde; é capital que se acumula, que fica disponível e que serve para investir, multiplicando o mesmo tempo, em benifício individual ou colectivo.
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Mas estas conquistas do homo æconomicus ou burgalensis eram, apesar de tudo, frágeis. Viu-se isso em Maio, em Paris, em que o Adão quase ressurgiu com a inocência e a força do Paraíso, e gritou «Prenos nos désirs pour dês réalités!»
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Mas chegámos talvez à época em que ele vai desaparecer definitivamente. Pelo menos, muito boa gente assim o pensa e deseja. O novo Adão, convenientemente seleccionado na semente e tratado in vitro, será o arquétipo da civilização citadina, científica e burguesa, higiénica e indolor, podado de todos os impulsos insociais e improdutivos. Nem sequer terá a consciência de ser infeliz porque uma adequada intervenção na cadeia genética lhe tirará a memória do Paraíso.”
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Mas os meios do burguês eram precários, e o combate tinha de ser incessantemente recomeçado, contra a prodigalidade e a preguiça, a anarquia, o espírito contemplativo, o sonho, o capricho, o aventureirismo, a criancice, a ilusão. Era uma luta de jardineiro obrigado a podar todos os dias a estátua de murta, de que fala o Vieira. Alguns sucessos prodigiosos foram alcançados: a invenção do livro do Deve e Haver, os bancos, os cheques, a revolução industrial inglesa, a unificação do trabalho mercantil, a exploração de matérias-primas desconhecidas, a contabilização geral da vida, a subordinação à Ciência e à Técnica. Tudo passou a ter um valor contável na expressão quantitativa mais universal que existe: o dinheiro. Viram-se nascer cidades, como Amesterdão, em que os homens estão tão domesticados como o mar dentro dos canais. E civilizações fabulosas surgiram, como a norte-americana, em que ninguém para de trabalhar; em que se almoça a correr, no bar; em que não se perde um minuto, em que tudo se capitaliza. Encontraram-se soluções admiráveis para tirar ao sexual intercourse o seu carácter mágico e sagrado, assegurando ao mesmo tempo o equilíbrio higiénico favorável à produtividade. O erotismo substituiu o amor. Um aforismo sublime resume esta civilização: Time is Money; o tempo não é vida que se gasta, nem prazer que se goza, nem é tão-pouco desespero em que se perde; é capital que se acumula, que fica disponível e que serve para investir, multiplicando o mesmo tempo, em benifício individual ou colectivo.
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Mas estas conquistas do homo æconomicus ou burgalensis eram, apesar de tudo, frágeis. Viu-se isso em Maio, em Paris, em que o Adão quase ressurgiu com a inocência e a força do Paraíso, e gritou «Prenos nos désirs pour dês réalités!»
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Mas chegámos talvez à época em que ele vai desaparecer definitivamente. Pelo menos, muito boa gente assim o pensa e deseja. O novo Adão, convenientemente seleccionado na semente e tratado in vitro, será o arquétipo da civilização citadina, científica e burguesa, higiénica e indolor, podado de todos os impulsos insociais e improdutivos. Nem sequer terá a consciência de ser infeliz porque uma adequada intervenção na cadeia genética lhe tirará a memória do Paraíso.”
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[António José Saraiva, in Maio e Crise da Civilização Burguesa, Gradiva, 2005]
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