16.7.08

Medo do silêncio

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Se há coisa que me irrita é a omnipresença de música e televisão em cafés, restaurantes, lojas, metro, farmácias, esplanadas, escritórios, etc, etc.
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Este é aliás um fenómeno que não se limita a espaços públicos, mas vai alastrando também para os privados: é frequente as pessoas terem em casa a televisão ligada em permanência, mesmo que não estejam a ver qualquer programa ou ligarem imediatamente o rádio quando chegam ao carro, independentemente do programa ou música que esteja a passar. Acima de tudo noto uma crescente intolerância para com o silêncio.
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A Fernanda Câncio escreveu uma bela crónica precisamente sobre isso. Está disponível no 5 dias mas vou deixá-la também aqui:
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"Foi acontecendo. Acho que começou nas lojas. De repente, entrava-se numa loja e havia música. Depois começou a haver música aos berros. Do género de música aos berros que faz uma pessoa perder qualquer vontade de comprar e querer pôr-se a milhas rapidamente. Depois foi nos cafés. A seguir nos restaurantes. Queria-se fazer o que fazem pessoas que jantam juntas – conversar (a não ser que estejam terrivelmente apaixonadas ou terrivelmente fartas umas das outras) – e era impossível. Pedia-se para baixar a música e os empregados ficavam a olhar, tipo “olha a careta, não curte”.
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Depois, um belo péssimo dia, chegou à rua. Em Lisboa, na Baixa – a Baixa, o tal sítio que precisa tanto de “animação” — colocaram umas colunas e toca de “animar” os passantes. Não tão animados, estes tanto protestaram que a idiotice foi à vida. Quando demos por nós, estava nas praias, nos chamados apoios de praia. Peço desculpa por fazer uma pergunta tão estúpida, mas por que raio há-de alguém querer ouvir música aos berros numa praia quando tem o barulho das ondas, o ondular das lonas na brisa, e aquele clamor difuso, feliz, dos banhistas? Pois. Vai-se a ver e é do hábito. Uma espécie de vício. Certo é que está em todo o lado. Por exemplo, nos ginásios. Não se consegue fazer ginástica sem música. Nem se consegue tomar um duche no ginásio sem ouvir música. Há aulas de bicicleta (nome de código RPM) com luzes giratórias e não, não estou a inventar, bolas de espelhos, em que os instrutores têm microfones mas mesmo assim gritam para que alguém perceba que raio estão a mandar fazer. Até nas chamadas “aulas calmas”, aquelas de mistura de Tai Chi com Pilates e Yoga, invariavelmente a música está tão alta que em vez de relaxar, distender e apurar o equilíbrio, o participante esmifra os nervos por não lograr seguir as instruções.
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Parece pois que a música alta, tão alta que faz suspeitar de que está toda a gente a caminho da surdez, veio para ficar. A música e os ecrãs com música. No outro dia passei numa esplanada da Baixa (sim, outra vez a Baixa) e havia um ecrã. Quer dizer: uma esplanada no meio de uma enfiada de ruas numa zona onde passam milhares de pessoas, com um sol maravilhoso e edifícios bonitos por todo o lado, e um ecrã. Para que quer alguém um ecrã num sítio daqueles? Será por causa do europeu de futebol? Ou é mesmo só para ver, sei lá, vídeoclips?
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Bem sei que parece que tenho 80 anos e nunca dei cabo da paciência dos meus vizinhos com a aparelhagem no máximo, ou que não gosto de bares e discotecas. Mas, precisamente, esta ideia de que tudo tem de ser igual a um bar ou uma discoteca, de que alegria e “animação” (outra vez esta palavra execrável) são sinónimo de música alta é verdadeiramente encanitante. Aliás, é pior que encanitante, é de fazer perder a cabeça. A mentalidade de feira, de recinto de carrinhos de choque, de Big Show Sic, tomou conta de tudo. Tudo é uma rave. Na noite de Santo António, por exemplo, junto à Sé de Lisboa, um quiosque de venda de bebidas serviu cervejas e décibeis noite fora. Tipo assim uma espécie de Rock in Sé, sem apelo sem agravo para a malta que vive na zona e nem sequer um avisozinho prévio de que a cena sardinhas, febras, ruas cortadas, muita garrafa partida e muita bebedeira perdida ia desta vez meter também um sistema de som capaz de acordar os mortos de sob as lajes da catedral (se lá sobrar algum) ou, em alternativa, só os residentes num raio de quatrocentos metros. E, de caminho, pulverizar qualquer talento para o fado vadio nas tascas típicas das redondezas.
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Se calhar é de mim, mas tudo isto me parece, mais do que uma enorme saloiada – que também é –, uma espécie de desespero. O desespero de preencher, de fazer igual, de juvenilizar, de esconjurar o tédio e o vazio. Ter medo do silêncio é sempre mau sinal."

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