15.10.08

Dinis Machado: um autor embaraçado pelo sucesso

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No último Domingo o Público publicou um artigo de Luís Miguel Queirós sobre Dinis Machado, que aqui deixo:
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Dinis Machado (1930-2008)
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Um autor embaraçado pelo sucesso
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Dinis Machado não conseguiu escrever um segundo O Que Diz Molero. Mas já tinha escrito antes três livros notáveis. Ninguém reparou, porque eram policiais.
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Dinis Machado escreveu sete livros e é como se só tivesse escrito um. Depois de O Que Diz Molero, que se tornou um livro de culto e um sucesso de vendas em 1977 - saiu em Março desse ano e, pelo Natal, já ia na quinta edição -, ninguém levou muito a sério os três livros seguintes. Nenhum deles parecia ter a ambição de se apresentar como um sucessor à altura do Molero. O Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Márquez, de 1984, talvez ainda tenha correspondido, na irreverência do tema, a uma tentativa genuína, embora falhada, de voltar a agitar as águas. Reduto Quase Final (1989), uma espécie de testemunho do que o autor viveu e pensou, e que inclui alguns textos notáveis, já não pretendia ser um romance. E o último, Gráfico de Vendas com Orquídea (Cotovia, 1999), é uma selecção dos muitos textos que Dinis Machado, que morreu no dia 3 de Outubro, deixou dispersos em jornais e revistas.
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Filho de um árbitro, que era também proprietário do restaurante lisboeta Farta-Brutos, e a quem chamavam Oliveira Penálti, Dinis foi jornalista desportivo durante 20 anos, colaborando em títulos como o Norte Desportivo, o Record, o Diário de Lisboa ou o Diário Ilustrado. Deve ter assistido muitas vezes à suposta angústia do guarda-redes no momento do penálti, que não é angústia nenhuma, porque ninguém espera que ele o defenda. Nada que se compare à ansiedade do escritor que acerta à primeira e de quem todos esperam que saque mais um coelho da cartola. Alguns conseguem, muitos tentam e falham, outros nem sequer tentam. Dinis Machado não deixou de publicar após o êxito estrondoso de O Que Diz Molero, mas ele próprio admitiu, numa entrevista a Sara Belo Luís para a revista Ler, que nunca mais, como ao escrever esse livro, voltou a estar "diante da folha de papel com aquela vontade de descobrir o texto".
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Maria da Piedade Ferreira, que editou O Que Diz Molero na Bertrand, acha que o sucesso do livro foi "tão súbito e tão grande" que criou em Dinis Machado um "sentido de responsabilidade que ele nunca conseguiu ultrapassar". Nem ela nem o autor estavam à espera de que a obra se tornasse um sucesso daquela dimensão, e acredita que esse êxito acabou por "inibir" Dinis Machado de voltar verdadeiramente a escrever outro livro. "Acho que ele sofreu muito com isso", diz Piedade Ferreira, que já o conhecia desde os finais dos anos 60, quando este trabalhava na editorial Íbis, onde dirigia a revista de BD Tintin. A revista passou depois para a Bertrand, mas Dinis Machado continuou a editá-la, de modo que trabalhou durante anos na mesma sala que Piedade Ferreira. No entanto, só quando tinha O Que Diz Molero pronto a editar, e após ouvir algumas opiniões prévias, é que mostrou o livro à sua amiga. "Foi uma surpresa, porque ele não falava do assunto, nunca me disse: 'Estou a escrever uma coisa que gostava de lhe mostrar.'"
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O livro que todos liam
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Piedade Ferreira afirmaria mais tarde numa entrevista que, após ter lido o livro, ficou de tal modo entusiasmada que soube que tinha de o publicar, mesmo que a despedissem por causa disso. Ainda que se tenha tratado de uma força de expressão, é sintomática, já que confirma que nem ela, que tanto admirara o livro, e que tinha o olhar treinado de uma profissional, sonhou com a bomba que se preparava para fazer rebentar. Outros livros de ficção portuguesa terão, posteriormente, vendido mais exemplares. Mas talvez não tenha havido mais nenhum ao qual, com tanta propriedade, se possa chamar um livro de culto. Não se limitou a receber o aplauso unânime da crítica e a esgotar edições umas atrás das outras. Em 1977, O Que Diz Molero era o livro que todos levavam debaixo do braço e comentavam no café.
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Após o 25 de Abril, nota Piedade Ferreira, "tinha saído muita coisa política, a atirar para o neo-realismo, livros que estavam na gaveta, e aquilo era diferente de tudo, com diálogos vivíssimos, divertido de ler, enternecedor - era a infância no Bairro Alto, os amigos".
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Para quem não leu, o livro - pelo qual deambulam figurantes com alcunhas tão sugestivas como Peito Rente, Lucas Pireza, Descoiso, Joaquim Navalhinhas, Bigodes Piaçaba ou Peida Gadocha - tem apenas duas personagens que funcionam no presente: Austin e Mister Deluxe. Pertencem ambos a uma organização que nunca é nomeada, mas que terá podido ser lida, em 1977, como uma paródia à PIDE. Austin está a apresentar a DeLuxe um volumoso e circunstanciado relatório sobre um "rapaz", cujo nome nunca é revelado, e que vem sendo seguido por um escrupuloso agente, Molero. Trata-se, portanto, do que diz Molero.
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O assassino que bebia leite
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Francisco José Viegas, que assina um belo texto sobre Dinis Machado no editorial do penúltimo número da revista Ler, também acha que o autor "não estava preparado" para o sucesso de O Que Diz Molero, que julga que só pode ser percebido no contexto dos anos 70 do século passado, quando, em Portugal, "os caminhos da literatura passavam pelos restos do neo-realismo e do nouveau roman", e ainda por uma corrente interessada na "identidade portuguesa" e por algumas primeiras tentativas de abordar a guerra colonial. Neste cenário, diz, "aparece um livro que parte de tudo isso para contar uma história que não tem de se explicar a si própria", um livro de alguém para quem "as memórias do cinema e as leituras dos autores policiais são importantes" e que o pode assumir naturalmente, "sem fazer teoria". Para Viegas, quem acertou no ponto ainda foi mesmo Luiz Pacheco, ao afirmar que o livro era "uma explosão". Na sua crítica à obra, Pacheco ajuizava que o O Que Diz Molero "é uma bomba, um livro de arromba". E Eugénio de Andrade, por norma pouco liberal a distribuir elogios, escreveu uma frase que mais tarde apareceria nas badanas do romance: "Este livro é uma alegria."
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"Ele vinha daquela cultura noctívaga do Bairro Alto, que nunca tinha produzido nada, a não ser artigos e crónicas desportivas", diz Viegas. "Aquilo tinha mesmo de ser explosivo, e foi."
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Mas, embora concorde que o sucesso do romance "imobilizou" o autor, Viegas pensa que, para se explicar a escassa produção posterior de Dinis Machado, também não se pode ignorar a preguiça. "É uma geração de tipos que gostam de viver, de ir ao cinema, da conversa, e que não estão para ter muito trabalho."
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Recordando o prazer que lhe dava ouvir Dinis Machado falar de cinema - "conhecia os secundários todos, os tiques dos actores..." -, Viegas diz que só alguém com aquele tipo de cultura poderia "servir-se do Menard [Pierre Menard, personagem de um conto de Borges] e transformá-lo, sem alarido e cambalhotas teóricas, em Peter Maynard, um assassino profissional que bebe leite porque tem uma úlcera".
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Viegas refere-se aos três policiais que Dinis Machado publicou na colecção Rififi, da Íbis, sob o transparente pseudónimo de Dennis McShade. Após o êxito de O Que Diz Molero, o Círculo de Leitores recuperou estas novelas, e a Assírio & Alvim está a agora a reeditá-las, tendo já lançado A Mão Direita do Diabo (1967), que também foi publicada em 2005 numa colecção lançada pelo PÚBLICO.
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O próprio Dinis Machado afirmou numa entrevista que os livros anteriores a O Que Diz Molero "foram um arranque" e que os posteriores "foram arrancados a ferros". Na segunda metade dos anos 60, casado e com uma filha, o autor precisou de dinheiro e fez um acordo com a editorial Íbis. Adiantavam-lhe 20 contos e ele escrevia três novelas para a colecção Rififi. Bem podemos estar gratos, nós, leitores, a essa sua circunstancial penúria financeira.
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Protagonizados, todos eles, por Peter Maynard - um tipo duro, como o Mike Hammer de Spillane, dado a solilóquios, como o Philip Marlowe de Chandler, bebedor de leite, como o Archie Goodwin de Rex Stout, e grande leitor, como o patrão do dito Goodwin, Nero Wolfe -, esses três livros estão a milhas dos policiais que então se escreviam em Portugal e, mesmo no panorama internacional, constituem objectos altamente singulares. Sobretudo o segundo, Requiem para D. Quixote (1967), é uma obra francamente excepcional.
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Ignorados pela crítica, só lhes foi feita verdadeira justiça em 2007, na tese de doutoramento de Maria de Lurdes Sampaio - História Crítica do Género Policial em Portugal (1870-1970) - Transfusões e Transferências (ed. policopiada, 2007), que lhes dedica um extenso capítulo. Diz Sampaio que "em nenhum outro autor nacional de finais dos anos 60, mesmo no âmbito da literatura canónica, se encontra uma tão aguda consciência de que todos os livros - não apenas os policiais - falam sempre de outros livros e de histórias já contadas". E sublinha que em Dinis Machado não "há lugar para distinções entre a literatura elevada e a literatura baixa" e que "esse é, porventura, o gesto mais subversivo deste autor". Está a referir-se aos seus policiais. Mas podia bem estar a falar de O Que Diz Molero.
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[Luís Miguel Queirós, Público, 12-10-2008]

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado por este post.

Francisco