.
Depois de há uns meses ter chumbado uma proposta dos Cidadãos por Lisboa para a recuperação da Mouraria, o actual executivo de Lisboa vai apresentar uma candidatura ao QREN para a reabilitação deste bairro, que está num estado de degradação extrema.
.
Deixo aqui dois excertos de uma reportagem de Catarina Prelhaz, que saiu no Público de 25/06/2008:
.
"São edificações antigas, encravadas numa das sete colinas, mais esqueletos que casas, com chapéu de zinco e poleiro de pombos. Nas Gralhas, é do dois ao sete: prédios descarnados até ao miolo com a ruína suspensa pelas escoras ferrugentas que lhes alfinetam as entranhas. "Isso está aí há 30 anos", atira Georgete Germano, de 70 anos, por entre as grades da porta do seu rés-do-chão. Está ali e está por toda a Mouraria, coração de Lisboa e berço do fado. Ruína, ferrugem, despojos. Beco a beco, rua por rua, cabeças espreitam dos edifícios com queda adiada pelas ossadas de ferro. A câmara tenta acudir à Mouraria, tenta reabilitá-la. Será desta? Logo se saberá após a reunião do executivo lisboeta.
E os prédios com mais marcas são os prédios de marca, graceja Nuno Franco, 49 anos, com um esgar que lhe carrega a ironia. De indicador em riste vai fazendo círculos imaginários à volta das lajes luzidias estampadas algures por entre a sujidade e as rachas da maioria dos prédios enfermiços. "C-M-L, Câmara Municipal de Lisboa", lê em voz alta aquele morador, antes de caçar numa das varandas o epitáfio de uma reabilitação camarária que em 2006 acabou prematuramente. "Era como se enviasses os convites de aniversário para todos os teus amigos e depois não houvesse festa."Haver, houve, explica a directora municipal da Conservação e Reabilitação Urbana durante o mandato de Pedro Santana Lopes (2002-2005), Mafalda Magalhães Barros. "Alguma coisa foi feita nesse período específico de 2002-2005, basta observar na Rua da Mouraria o edifício 8-16, bem como a intervenção no Largo de Rodrigo de Freitas." Mas os problemas não tardaram em aparecer.
"Na Mouraria, foram desencadeadas várias acções: uma campanha de vistorias para a análise das condições de segurança e salubridade dos edifícios, uma acção concertada com as forças de segurança para a remoção de veículos ligeiros e pesados que ocupavam o Largo [do Intendente] de uma forma anárquica, propostas de encerramento de estabelecimentos que não cumpriam as disposições regulamentares para estas actividades [e] preparação de empreitadas para a recuperação do edificado". A ideia, diz a antiga responsável, era concentrar meios para que houvesse "efeito de mobilização mais eficaz" de privados, "que seria arrastada pela acção da intervenção municipal".
Assim, em 2003, foi desencadeada na Mouraria uma "mega-empreitada" de 7,8 milhões de euros para a intervenção em 20 edifícios. "Na Mouraria foram então realizadas 181 vistorias, intimados 72 proprietários e a câmara tomou posse de 13 edifícios", sublinha Mafalda Magalhães Barros. Só no Largo do Intendente arrancaram obras em 23 imóveis, encetadas pelos proprietários particulares.
Mas nem tudo correu como o previsto, reconhece a responsável. Os projectos de intervenção não batiam certo com as condições encontradas depois de desocupadas as casas ("há determinado tipo de sondagens que só se podem realizar depois da desocupação dos fogos") e a "degradação muito acentuada do edificado" obrigou a autarquia a "proceder a realojamentos num grande número de casos, com os encargos daí decorrentes para o município".
No entanto, o elo mais fraco da operação acabou por ser o modelo de actuação escolhido pela câmara, admite a ex-directora municipal. "Se o modelo de empreitada, permitindo a intervenção em simultâneo num significativo número de edifícios, tinha grandes virtualidades, os grandes consórcios que ganhavam os concursos públicos eram empreiteiros mais vocacionados para a obra nova em betão que, contrariamente aos pequenos empreiteiros, recorrem a 'suspensões de obra' e a todos os subterfúgios que a lei prevê para exigir novos preços, novos prazos, valendo-se de estruturas jurídicas fortes que actuam especificamente nesta área", acusa. "Em 2006, os pagamentos aos empreiteiros não foram efectuados, começando estes a suspender as obras e a levantar os estaleiros. Relativamente à Mouraria, sei que o empreiteiro entrou em litígio com a câmara que lhe devia montantes elevados, tendo pedido a rescisão de contrato", lamentou.»"
[...]
"À ruína que gangrena o bairro não escapa sequer o património histórico da cidade. O setecentista Palácio da Rosa, vendido pela autarquia lisboeta em hasta pública ao grupo Olissibona por 2,1 milhões de euros em Novembro de 2003, a fim de albergar um hotel de charme com 60 quartos, continua a perecer sob o olhar inconformado dos vizinhos, assim como a anexa Igreja de São Lourenço.
O Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico está ao corrente da situação e exibe no seu sítio da Internet uma colectânea de fotografias que mostram o avançado estado de degradação dos imóveis há dois anos (desde então ainda não receberam qualquer intervenção).
"Foi desenvolvido um projecto para a recuperação da Igreja de São Lourenço, exemplar único com vestígios de arquitectura gótica em Lisboa e que há muito se encontrava entregue ao abandono e à dilapidação e foi dado um subsídio para a conservação da Igreja de Nossa Senhora da Saúde", conta Mafalda Magalhães Barros, acrescentando que ambos os projectos foram abandonados pela autarquia em 2006.
Andar pela colina também tem que se lhe diga. Apela-se a um naipe de fintas. Fintam-se escoras. À frente, andaimes. Vai mais uma finta. Outra para evitar os sacos de lixo que se acumulam às portas e respectivo cheiro de detritos tostados ao sol. Agora o colchão velho, depois outro mono qualquer. Adiante as pedras da calçada que rebolam longe do seu lugar. Pilaretes e carros, senhores dos passeios. Corpos que roçam paredes assim que um motor lhes ruge pelas costas. Construção e construção, porque espaços verdes, "nem vê-los".
À medida que a ruína gangrena o bairro, esvaem-se os moradores de sempre e as comunidades imigrantes ocupam os imóveis desqualificados. Entre 2005 e 2007, o número de pessoas que saíram da freguesia do Socorro em direcção a outras paragens (50) foi mais do dobro das que para ali se mudaram (24), revela uma estatística da Imométrica sobre os fluxos migratórios de famílias na área metropolitana de Lisboa. Mas os números são outros quando se fala da comunidade imigrante. Segundo o presidente da Junta de Freguesia do Socorro, 11 mil dos 15 mil habitantes da Mouraria são estrangeiros.
Ainda assim, o despovoamento na colina "sente-se na pele", garante José António Soares enquanto ajeita os troféus que recheiam as estantes do Grupo Gente Nova, a colectividade a que preside há 23 anos. Os prémios do futebol do bairro são coisa do passado e as aulas de xadrez, informática e a biblioteca construída a custo continuam à espera de "gente nova". "Quando havia os Jogos de Lisboa, tínhamos sete equipas: eram cerca de 70 crianças a competir pela Mouraria. Hoje já não há gente e a câmara acabou com os jogos, que era o que atraía os miúdos e os tirava de outros caminhos. É um ciclo vicioso", explica."
.
Sem comentários:
Enviar um comentário