30.3.10

João César Monteiro: a enrevista a Rodrigues da Silva (DL, 1990)

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João César Monteiro foi entrevistado por Rodrigues da Silva para o Diário de Lisboa de 20/02/1990. Mesmo com todo o sucesso que Recordações da Casa Amarela estava a ter, a atitude de César Monteiro mantinha-se: "nas tintas para o público".
Aqui fica:
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Mais vale prevenir do que remediar
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Com um novo filme já com título e projecto, João César Monteiro está preocupado com as intenções do secretário de Estado da Cultura. Se os custos se inflacionam – diz – é o fim do cinema português: «é preciso que sejam tão baixos que não comportem o preço de um polícia»
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«Recordações da Casa Amarela» continua o seu périplo pelo Mundo, guiado pela estrelinha do Leão de Prata de Veneza e pelo prestígio do cinema português no estrangeiro. Em breve o filme de João César Monteiro irá até Nova Iorque e S. Francisco, até Singapura e Capetown.
Há pouco passou nos festivais não competitivos de Gotemburgo e Roterdão. Com êxito, pelo menos é o que se deduz do relato do cineasta. Na Suécia o filme foi exibido numa sala de 700 lugares, esgotada, e na Holanda correu doze vezes, com salas bastante cheias. César em Gotemburgo apresentou o filme e foi entrevistado na TV, em Roterdão teve a alegria de rever Iosseliani (fazem anos no mesmo dia) e de receber do seu confrade Jean-Marie Straub um ramo de túlipas («tinham-lhe dito que o filme era uma comédia sexual e ele ia um bocadinho de pé atrás»).
Regressado a Lisboa, João César Monteiro contou-nos isto e disse do presente e do futuro. Mais do que uma entrevista, foi uma conversa, um destes dias na esplanada do Príncipe Real. Assim.
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Quantos espectadores fez o teu filme por cá?
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Uns 40 mil, mas ainda está a fazer. É bom, mas a minha atitude é sempre a mesma: nas tintas para o público.
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Nas tintas, mas dá-te gozo…
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Dá-me um certo gozo porque é cada vez mais difícil desembaraçarem-se de mim. Mas, por outro lado, é-me cada vez mais difícil fazer aquilo que quero.
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Como é isso?
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É que há sempre uns tipos (os mesmos de sempre…) que têm ideias muito precisas sobre os filmes que os outros devem fazer, Às vezes para não pensarem naquilo que eles próprios deviam fazer.
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Explica lá isso.
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Não explico. Estou a ser sibilino. Refiro-me aos amigos, os que têm o poder e sempre o tiveram.
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E que te dão conselhos…
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Pois. Só não entendo é como se pode ser simultaneamente conselheiro do dr. Santana Lopes e do sr. César Monteiro. É que não rende… nem a receptividade é a mesma.
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E tu não estás interessado…
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Não, não estou. Não estou nada interessado em que fechem ou desfigurem o cinema português, nem que o secretário de Estado tenha a veleidade de reeditar aquilo que o dr. Lucas Pires fez em 1981.
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E que foi…
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Fechou o cinema durante dois anos com aquela história sinistra que o que era importante era fazer filmes para Bragança. O dr. Lucas Pires e os seus conselheiros cinematográficos foram ao ponto de anular um plano de produção já aprovado (eu não era concorrente…), o que prejudicou a vida de alguns colegas meus.
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Estás a dizer isso porquê? Sabes das intenções do novo secretário de Estado?
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Não faço ideia. Mas também ninguém estava à espera que caísse o tecto da sala do capítulo dos Jerónimos. Acho que foi bom que caísse, porque isso vai ocupar o dr. Santana Lopes durante um ano. Digo isto a título de providência cautelar. Desejo que não se passe nada, mas antes prevenir do que remediar. Também não estou a armar em Cassandra que prevê catástrofes. Estou é a dizer que, tanto quanto nos for possível, tentamos não ser apanhados desprevenidos.
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Contra quê?
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Sabemos que ao longo destes anos tem havido várias veleidades de destruir um edifício que tem sido pacientemente elaborado por alguns de nós. Quando digo «alguns» não acho que sou generoso, mas acho que estou a ser verdadeiro. Há um tipo italiano chamado Tonino de Bernardi…
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Não conheço.
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É um italiano que faz filmes e que tem um argumento original de Pasolini para fazer, «O Pai Selvagem». Com 50 e tal anos, tem o futuro cinematográfico nas mãos do Joaquim Pinto, porque as portas restantes estão todas fechadas. Até o Straub pediu ao Joaquim Pinto para ver se arranja algum na Gulbenkian. O que toda a gente diz lá fora é que a chamada Europa está cada vez pior para um certo tipo de cinema e que, apesar de tudo, Portugal é provavelmente o único sítio do Mundo onde ainda se podem fazer coisas desde que com poucos custos. Se este secretário de Estado inflacionar os custos a níveis europeus, isso significa o fim do cinema português.
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O Nicholas Ray perguntou um dia a Buñuel porque é que ele fazia filmes tão baratos. O Buñuel respondeu-lhe: «É porque quero ser livre». É por isso que dizes que a inflação dos custos significa o fim do cinema português?
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É porque é preciso que os custos sejam de tal forma baixos que não comportem o preço de um polícia… A partir de um certo nível é o dinheiro que comanda. Esta atitude não é nova. O paradigma disto é um sr. Chamado Rossellini que fez sempre filmes com custos baixos.
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Com mais dinheiro pode surgir a mediania?
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Claro. E a mediania é o que as televisões produzem.
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Bom, César, e agora, qual é o próximo filme?
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Estou a preparar «A Comédia de Deus ou O Pintelho da Rainha Vitória».
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Bom, sem entrar em pormenores, que filme é esse?
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É uma pequena história, continuação das desventuras do sr. João de Deus, um personagem que estamos a tentar recompor e retomar de filme para filme guiados por modelos os mais ilustres e, uma vez mais, Charles Chaplin.
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Que tinhas a ver com Chaplin nunca ninguém topou…
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Excepto o sr. David Robinson, crítico do «Times» e a maior autoridade em Chaplin. Ele topou isso e por acaso estava no júri do Festival de Veneza, o que só me trouxe benefícios.
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Já meteste o projecto no IPC?
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Não. Tenho um produtor que trata desses assuntos.
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E que é…?
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O sr. Paulo Branco, que até agora tem sido impecável comigo.
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Porque é que ele não te passa «À Flor do Mar» no Picoas, que tem um público tão jovem?
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Volta a haver, de facto, um público muito jovem (sobretudo estudantes), que enche os cinemas. No Festival de Gotemburgo até vinham de Estocolmo (já não digo da Lapónia), para ver os filmes. E há também gente nova no cinema que vai tentando não se prostituir, e que sabe que onde há muito dinheiro é ele que comando tudo. Aqui é ainda muito cedo para falar nisso, mas na Europa é preciso ter um grande estofo moral para resistir a um certo clima de envenenamento. Iosseliani, na conferência de imprensa do Festival de Roterdão, a primeira coisa que disse foi «eu não me prostituí». Aqui ainda não tivemos necessidade de declarar isso em público.
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E há gente nas mesmas condições por esse mundo fora.
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Há, de facto, duas ou três dezenas de bons cineastas espalhados pelo Mundo, desde Taiwan até Tibliss, passando quiçá por Lisboa, o Canadá e mesmo a América (estou-me a lembrar de Cronenber e de Robert Kramer, por exemplo). É esse cinema que a mim me interessa e não outro qualquer, nem essa coisa artificial que é o cinema europeu. Europeu? Então e os africanos? E nós, somos europeus de que lado? Nós a única coisa que temos virado para a Europa é o cu.
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Esse cinema que te interessa circula muito pouco.
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Não circula, mas não significa que não tenha público. Ponham-no a circular e ver-se-á.
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Aqui…
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Aqui, o monopólio de exibição é quase exclusivamente norte-americano. Mas, mesmo no cinema americano há dois filmes por ano que dão dinheiro. O resto é menos competitivo que o nosso. A maior parte dos produtos americanos dão prejuízo, com excepção dos «tops».
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Falámos do monopólio de exibição por cá, mas há o Picoas.
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Há o Picoas, agora, mas são duas salas. Durante o ano não dá vazão. E o Paulo Branco também não está muito interessado em que aquilo se transforme no gueto do cinema português. Tem necessidade de mais salas. Ele diz que não se pode ainda dar ao luxo de passar o Straub. Com o sucesso do meu filme e, a seguir, com o do Mário Grilo, que à partida não apontavam para estadas tão grandes em cartaz, há filmes na prateleira. Com duas salas, quanto mais os filmes pegarem menos se podem passar.
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Isto a propósito do «À Flor do Mar»?
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Também.

26.3.10

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Urinol
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As melhores horas da nossa vida,
as mais contentes, passámo-las
num urinol qualquer, vendo correr o mijo
capaz e fluente numa certeza de louça
branca, amarela ou cinzenta.
Instantes de pouca opressão,
cumprindo embora um estúpido dever,
desses do corpo, sob o silêncio infecto de Deus
– que talvez fosse aquele puxador
de autoclismo que um dia me ficou na mão,
numa taberna discreta ao Poço dos Negros.
Guardei-o ainda alguns meses, mas de Deus
como um autoclismo, de tudo
acabamos por nos cansar. Até de poemas.
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São ruas velhas assim, onde paira
a suposição grosseira de um urinol
divino e sombrio, que nos fazem aceitar
esta voraz forma de extermínio. O nosso,
incandescente, num apogeu de melancólicas
retretes onde os insectos e bactérias do acaso
nos distraem o olhar
embaciado pelo abuso da lixívia.
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Uma lucidez pegajosa, toldando a idade
das mãos invariavelmente senis.
Como se bastassem, ou fossem mesmo
excessivas, certas baixas certezas de cão,
desastres menores. Sabendo-se de fonte
segura que o mijo pode ser um poema.
Um poema cansado do que antes foi vinho,
a suicidar-se agora – contente e tão triste –
no vazio evidente de uma louça
branca, amarela, sagrada.
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Pequenas alegrias e no entanto as maiores,
essas mesmas que bastarão,
que terão de bastar
no dia
em que formos
morrer.
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[Manuel de Freitas, in Infernos Artificiais, frenesi, 2001]

22.3.10

Luizinho e Joãozinho

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Vítor Silva Tavares escreveu, para o Ípsilon da semana passada, um texto sobre João César Monteiro, visto através de Luiz Pacheco, dois nomes frequentemente associados mas que, curiosamente, não morriam de amores um pelo outro. Aqui fica:
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CÉSAR MONTEIRO SEGUNDO LUIZ PACHECO (COMIGO A REBOQUE)
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"João César Monteiro odeia espectadores. Em compensação, exige cúmplices." E é aqui que bate o ponto. Final.
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Naquele seu dele estilo castigado por ser estilo e não língua "de madeira" (salvé, Mário Dionísio!), escreveu Luiz Pacheco na revista "Blitz" de há uns catorze anos uma artigalhada sobre "o senhor Joãozinho das comédias".
Na altura, ao começar a ler a coisa esperei o pior, dado que outra coisa não era de esperar: Luizinho e Joãozinho - reparem nos diminutivos carinhosos - não morriam de amores um pelo outro, rosnavam-se, quiçá devido à mútua, feroz concorrência nas andanças da má vida como nos embates da má-língua - ora agora ferras tu, ora agora ferro eu, ora agora ferras tu mais eu. Uma ternura.
Vamos porém ao que importa, se é que importa: na referida artigalhada começa o Pacheco por nos contar ter ido ao Jumbo de Setúbal ver "A Comédia de Deus". Divertiu-se "a valer" pelas "horinhas de distracção e riso", sendo que, ao intervalo, repara que além dele só estavam na sala duas senhoras. Mau Maria, vem aí bordoada.
Linhas abaixo, confirmação: "Tá boa! É a segunda vez que me acontece. Sabem? Aqui há anos fui ao Fórum Picoas ver um filme deste gajo... uma merda! 'Recordações da Casa Amarela'..."
Outra sala vazia, ou, melhor para pior, na sala o Luizinho e, à porta, a arrumadora a quem o pagante não se conteve de dizer: "minha querida senhora, uma sessão privada, especial, só para mim, e por 300 paus, é baratíssimo, é de borla."
Mas "não nos precipitemos", cito e corroboro. É que, contra aquilo que de passo se poderia prever, sai-se o Pacheco com esta, que valeu na altura e mais vale agora, nestes tempos de estrondosos sucessos de público que feitas contas não dão para Gambrinus de produtores e demais pessoal: "Duas salas de cadeiras sem ninguém sentado, quererá dizer alguma coisa transcendente? esquisita? algo que nos indique a medida do valor do filme, da capacidade gustativa da inexistente assistência? Nem pouco nem muito, pensando bem."
Bem pensado, penso eu. E embora ele confesse "nada perceber de cinema" (como eu não percebo e já agora também o Joãozinho, esse mesmo, que tal o confessou algures para se demarcar dos inteligentes de serviço), dá-se a explicar: "Mas João César Monteiro aplica-se a fazer filmes, em português. Lisboetas, principalmente. Lida com coisas e gente nossa, anda pelas ruas de Lisboa. Fala, pois, comigo. Dá-me notícias de mim. Não quero saber para nada quem pagou, quem vai ver ou não vê, o que dizem os jornais. As doutas sentenças dos jurados em Veneza, Cannes, o raio. Prémios assim ou assado, em cacau, taças, globos ou apenas farófias de compensação, consolação, marquetingue. Há por esse lado, mistérios."
Disse ele. Para mim, nem por isso. Veneza, Cannes, Berlim, o raio, sempre estão um pouco mais longe (horizontes mais vastos) que Badajoz, que é aonde poderão chegar, se lá chegarem, os estrondosos sucessos de público a que o estardalhaço mediático nos vai habituando, martelando. Isto porque os ditos, cavalgando a onda do que "está a dar" (nas telenovelas e nos seriados; na jornalada e nas revistas pimbas que vocês conhecem) macaqueiam, em pindérico fosforescente por "bela fotografia", actores agindo "como na vida real", tão "naturais", e outras similares banalidades "técnicas", aquilo que o mais corriqueiro cinema comercial americano (que é também, no género, o melhor do mundo) faz com uma perna às costas e com isso ganha uma pipa de massa, boa pança lhe faça - até rima.
Acrescente-se: tal cinema passa por Hong Kong e Sidney, Ilha Maurícia e Belém do Pará, vê-se em Badajoz e entra por aqui dentro como tsunami, tudo inundando como típico exemplo do imperialismo ianque e da concomitante lavagem às monas que nada têm para lavar - aqui sob o signo da diversão, da escapadela às tristezas desta vida, ai.
Talvez porque nada perceba de cinema e continue a gostar de dar pulos na cadeira frente à pantalha, como eu puto no Paris ou no Cinearte a beber fitas de cowboys e de batatada, frequento sempre que posso alguma dessa fitalhada avassaladora, descansem, estou vacinado. Isto não quer dizer que ao contemplar as estrelas que os entendidos conferem a outras cinematografias mais exigentes, logo, "indispensáveis" (à cabeça, a francesa, oui) não vá lá espreitar, a ver se não morro tão burro como vim ao mundo. E - ai, meus senhores! - não raro saio para a rua com uma grande cachola e a dar o meu pobre dinheirito e o meu rico tempo por muito mal empregados, duas horas que parecem vinte a gramar patetices empoladas que não ouso recomendar ao meu pior inimigo, seja ele ou tivesse sido a prestações o Pacheco que já lá vai, cantando e rindo. Culpa minha: com esta provecta idade e com este passado pouco recomendável (sim, também eu já fui assim a modos de "crítico de cinema", estava disponível e lia os "Cahiers" e a "Positif", esta mais política e a meu gosto ou panca surrealista), quem é que me manda a mim continuar a contemplar o céu estrelado dos conhecedores?
Separação de águas (nada de equívocos a somar aos do pão nosso de cada dia): apesar da linguagem plebeia, tão nos antípodas daquelas esplendorosas de D. Francisco Manuel de Melo e de Vasco Graça Moura, sou dos que não confundo fitas e filmes, como, nestes, não confundo emanações de espíritos letrados a ponto de meia-dúzia de citações por centímetro de película com a originalidade - essa que entra literalmente pelos olhos dentro - dos criadores, com suas idiossincrasias, fobias, manias, seus ódios de estimação, suas paixões de cair à cova, suas incandescências, seus fulgores, e também seus estampanços, seus vôos sem rede, suas merdas que até essas se não devem confundir com as merdas alheias, têm copiraite exclusivo.
De aí, e logo na madrugada de nosso senhor Monteiro em "cineasta", ter eu vestido a camisola do Águia, passe a metáfora predadora. O mau-feitio (isto é: o ter feitio) do artista quando sempre jovem cão danado quadrava-se com certas coisas que eu terei pudor de contar seja a quem for, obrigado José Régio. No entanto, levante-se um pouco o véu: coisas assim tecidas de raiva e asco por manifesta impossibilidade de arrojos mais puxavantes.
Retomando o cherne pachecal (que me está a dar o jeitão por vós já apercebido), a alturas tantas da surpreendente croniqueta lê-se isto: "Ora: João César Monteiro não tem nada de parvo. Reconheço e desde há muitos anos [mentiroso! - V.S.T.] que ele é um tipo muito inteligente, arguto, ambicioso. Não lhe faço nisto favor nenhum. Portanto e digamos: nada do que ele faça ou escreva ou diga (e tem uma linguiça de Oiro!) é inocente ou é palerma ou descuidado. É, sempre e muito, calculado, premeditado, ÚNICO. Não adianta a hábil confusão que é misturarem aqui os termos 'genial' e 'louco', como me calhou ler por aí."
Tirando o "calculado" e o "premeditado", que também constam, a par de um automatismo gerador dos efeitos-de-surpresa tão do agrado de surrealistas e demais desinstalados das artes contemporâneas, susbcrevo conforme e reponho em circulação, se chegaram até aqui.
Mas o melhor está para vir. Com particular acuidade (ou não tivesse um faro de perdigueiro apenas obliterado, quanto a mim, quando cheirou as "Recordações da Casa Amarela" julgando que estava a cheirar o cu de um magala), acerta o Luiz na mosca ao afirmar: "o César Monteiro não faz (mesmo que assim as intitule) comédias. Farsas farsalhonas e idiotas, como "O Pai Tirano", ou quejandos. Ele não ia perder tempo com isso."
De facto: tinha mais que fazer, e de mais sustância. Por exemplo: chicotear, à Sade lisboeta, a tacanhez moral e mental que é o ovo da serpente fascistóide; arremessar às ventas de uma sociedade ora pedinchona ora arrogante o seu dela retrato asqueroso, toma lá a ver se gostas.
Quase ao fecho da crónica da "Blitz" de 1996, Luiz Pacheco, em dúvida, lança duas interrogações pertinentes: "será, porém, que ele guarda no íntimo um enorme desdém, rancor, nojo, por todos nós, seus compatriotas de nascimento e contemporâneos de desgraça? Ele faz (mera hipótese) filmes como quem nos cospe?"
Bingo, Luizinho! Se ainda por aqui palmilhasses a chatear meio mundo com o teu obnóxio talento, eu pedia-te, venerador e obrigado, que retirasses os pontos de interrogação. Com uma ressalva: o nojo do teu estimado (risos) César Monteiro não era extensível a "todos nós". Sobre esta questão tive eu há pouco o ensejo de opinar preto no branco: "João César Monteiro odeia espectadores. Em compensação, exige cúmplices."
E é aqui que bate o ponto. Final.
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[Vítor Silva Tavares, Ípsilon (suplemento do Público), 10/03/2010]

19.3.10

Novamente nas livrarias

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Viagem ao Fim da Noite, de Louis-Ferdinand Céline (trad. Aníbal Fernandes)

17.3.10

A perversão do mercado

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“O que causou escândalo na lista divulgada por Cruz Santos foi o facto de se tratar de autores portugueses consagrados ou já canónicos. Para percebermos bem que o problema é muito mais fundo do que parece, é útil saber que há algo muito mais grave do que a Leya decidir abater, por exemplo, uma antologias feitas por Eugénio de Andrade: o facto de a obra deste poeta nem sequer estar hoje nas livrarias. […]
O mesmo acontece, aliás, com Jorge de Sena. Abater um dos seus textos camonianos, como aconteceu agora, é uma questão menor quando comparada com o facto de que a sua obra poética está por reeditar à longos anos. […]
Alguém imagina que não havia o René Char nas livrarias francesas, o T.S. Eliot nas livrarias inglesas, o Rilke nas livrarias alemãs? Ora, o abate de livros de escritores consagrados é sintoma de uma situação em que o património literário e intelectual, do século XII ao século XX, está abrangido por aquilo que a direcção da Leya chama “desinteresse do mercado”, mas que é uma estrutura de perversão do mercado.”
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[António Guerreiro, Actual (suplemento do Expresso), 13-03-2010]

16.3.10

Desejo sinceramente que a Leya se foda

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"Tenho ligações sentimentais ao grupo Leya (por causa d’O Independente) e ainda esta semana recebi uma proposta simpática e tentadora da Dom Quixote, que agora faz parte da Leya. Mas que posso fazer quando uma grande editora, recém-formada e sem qualquer tradição literária, transforma um livro que era caro de mais para eu comprar em pasta de papel? É de vomitar. Não podemos dar dinheiro a quem só pensa em dinheiro. José Saramago – mau escritor mas boa pessoa, na minha miserável opinião – foi enganado. Eugénio de Andrade e Jorge de Sena – um grande poeta e um génio – foram ultrajados.
Desejo sinceramente que a Leya se foda."
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[Miguel Esteves Cardoso, Público, 04/03/2010]
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Crónica completa aqui.

15.3.10

Manifesto Pelo Cinema Português

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"Nunca como nos últimos vinte anos teve o cinema português uma tão grande circulação internacional e uma tão grande vitalidade criativa. E nunca como hoje ele esteve tão ameaçado.
No mesmo ano em que um filme português ganhou em Cannes a Palma de Ouro da curta-metragem e tantos e tantos filmes portugueses foram vistos e premiados um pouco por todo o mundo, o cinema português continua a viver sob a ameaça de paralisação e asfixia financeira.
Desde há dez anos que os fundos investidos no cinema não cessaram de diminuir: a produção e a divulgação do cinema português vivem tempos cada vez mais difíceis. E a criação de um Fundo de Investimento (e a promessa de um grande aumento de financiamentos), revelou-se uma enorme encenação que na generalidade só serviu para legitimar o oportunismo de uns tantos.
O cinema português vive hoje uma situação de catástrofe iminente e necessita de uma intervenção de emergência por parte dos poderes públicos e em particular da senhora Ministra da Cultura." [...]

"O cinema português, que vale a pena, tem hoje em dia, apesar da paralisia, quando não da hostilidade, dos poderes públicos, um indiscutível prestígio internacional. Os seus realizadores, actores, técnicos, produtores, não deixaram de trabalhar apesar de tudo o que se tem vindo a passar. Está na altura de os poderes públicos assumirem as suas responsabilidades. É necessária uma nova Lei do Cinema, mas é urgente uma intervenção de emergência no cinema português."

Pode ser assinado aqui um manifesto pelo cinema português, que procura inverter a situação miserável em que este se encontra. Entre os autores do manifesto estão quase todos os principais realizadores e produtores de cinema português da actualidades: Fernando Lopes, Paulo Rocha, João Canijo, Pedro Costa, Jorge Silva Melo e muitos outros.

12.3.10

João César Monteiro: as Folhas da Cinemateca

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Já estão disponíveis As Folhas da Cinemateca dedicadas a João César Monteiro, textos de João Bénard da Costa, Luís Miguel Oliveira, Manuel Cintra Ferreira e Maria João Madeira.
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"Meus filhos, são filmes destes que, pousando, vos trarão a nitidez às vidas. A todas as vidas."
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[João Bénard da Costa, na folha de Recordações da Casa Amarela]

11.3.10

Branca de Neve

“Não era isto que eu tinha inicialmente previsto. Houve uma noite de insónia e de manhã, no café, eu combinei com o director de fotografia fazer o filme assim, em cinzentos. Fez-se uma manhã de rodagem um bocado diplomática (porque estava toda a gente convocada) em que, contrariamente ao que se diz, eu me diverti imenso. Dediquei a manhã à leitura de dois textos, ia alternando de um para o outro. Um era Execración contra los judios. É um texto anti-semita que eu aconselho vivamente. É sobre as tropelias que os judeus portugueses fizeram na corte de Filipe IV, séc. XVII. Tropelias argentarias, bem entendido. O outro, também do Quevedo, é um texto mais satírico, são as Graças e desgraças do olho do cu. Eu achei interessante fazer-se um filme que tomasse o ponto de vista do olho cego, do olho que não vê, do olho discreto, oculto geralmente em duas belas rotundidades.”
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[João César Monteiro em entrevista a Diogo Lopes a propósito de Branca de Neve (2000), in João César Monteiro, Cinemateca Portuguesa, 2005]

10.3.10

A Comédia de Deus

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[João César Monteiro, excerto de A Comédia de Deus (1995)]

9.3.10

João César Monteiro por Vítor Silva Tavares

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NOTAS PARA A RECORDAÇÃO DO MEU AMIGO JOÃO
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No arrazoado que acompanha os DVD da Integral João César Monteiro quase arrisquei opinião: “Apetece dizer que os filmes do César são mais “escritos” (ou “escritas”) do que as suas representações, ou ilustrações, audiovisuais.”
Valha isto o que valer, não enfatizo: afinal também eu, qual César pouco augusto, “não percebo nada de cinema” (piada dele aos especialistas?), isto apesar de ir às fitas desde a idade de chucha na boca – o que não dá direito a borla e capelo.
Gaguejei não muito afastado das vozes mais abalizadas de gente que faz cinema ou que, diminuindo, trabalha a fabricá-lo, coisa que remete para questões de finança e técnicas de fabrico. O resto são flores – nas entrevistas.
Segundo os profissionais, “o César escreve muito bem, só é pena que seja ele a realizar os filmes”. Pois: quando foi ele a dizer o mesmo sobre os seus charmes plumitivos, ressabiado prometeu logo ali assassinar o escrevente. Hossana!, não conseguiu.


Por mim acontece ou aconteceu que até o escrevinhei (na orelha do volume que reúne os argumentos de LE BASSIN DE J. W. e de AS BODAS DE DEUS): Melhor do que ele, ninguém escreve em português de – e para – cinema. São os seus scripts (ou filmes da galáxia Guttenberg) de lamber a língua canónica: volúpia e escarnho, ascese e escatologia numa ondulação de tal modo ritmada que é já quase erótico, cópula astral. E mais, de passo: Depois, quando iluminados por projecção mágica, viram ópera: teatro e música enquanto, e só, artes sacras – comédias, bufonarias sejam, libertinagens, profanações.
Logo aqui se vê que não estamos perante linguagem crítica, seja esta o que for. Não ousa o exegeta quejandas subjectividades impressivas, antes parte em romaria aos “Cahiers”, ou aos “Inrockuptibles”, petiscar ideia e jargão formatado. Ai de mim, que “também eu escrevi cartas de amor, como as outras, ridículas”. Já é azar.
Admirarei menos os filmes do César? – Nem vale, para o caso. Desconfio sempre de dicotomias com água (forte) no bico. E já o disse, assinado, que um só plano do bijagós (exemplo: “uma laranja sobre a mesa”), pela sua carga, pela sua densidade, pesa mais em mim que quanta estrelada filmografia: é que os instantes de graça (“instantes de Camões”, pressentia-os o Manuel Maria Barbosa du Bocage) só faíscam, só fulguram, em receptores sintonizados. A questão das agulhas magnéticas não é aqui despicienda.
Tem mais que idade para ter juízo, posto o não tenha, a minha queda pela escrita do César. E julgo saber, ou tão-só intuir (não vai dar ao mesmo?) de onde ela venha (aparte o pendor congénito), com seus recortes vicentinos, sem requebros barrocos, sem colagens “esquisitas”. Leituras dele, pois mais que muitas – e aí está a biblioteca, feita e refeita ao sabor de tempestades, a atestá-lo. Para não gastar papel, que está caro, aponte-se ao acaso os românticos franceses e alemães, os surrealistas e demais grandes transparentes, todo o Sade, meu caro Watson, todo o Nietzsche (esse que inundou de luz negra o script original de VAI E VEM), mais os modernistas portuguesas e seus egrégios avós, Nobre, Pessanha, Cesário, mais Dante, Molière, Shakespeare, Dostoievski, chega? Tivera ele mais uns meses de vida e arriscaria ter de sair de casa expulso pela cubicagem de livros e cêdês – mas esta é outra música.
Lá por onde rompemos solas e puímos fundilhos, canoras vozes a ambos excitaram as ávidas orelhinhas (sentenciou Mestre Aquilino que para se ser escritor “é prechijo orelha”). No palco sonoroso – pleno olho da rua ou suspeitos cafés tristes – era um rol de tenores: do grave, e probo, Carlos de Oliveira, sotto-voce alquimicado em cristal na Micropaisagem e em Finisterra, ao “corpo escrevente” Luiza Neto Jorge, passando – pare, escute e olhe – pelo Cesariny de Pena Capital e Nobilíssima Visão (ele que já louvara, simplificando, o Álvaro de Campos e dera o pontapé definitivo no “realismo socialista” com seus trolhas e suas couves, pelo picaresco Cardoso Pires, pelo atómico Herberto das viscerais magias, e pelas verrinas, pelos vitríolos, pelo negro humor sacana de um batalhão de pelintras alcoólicos (ou românticos inveterados, como queiram) tais o Virgílio Martinho, o Forte da faca nos dentes, o Sebag planeta precário, o Pacheco da crítica de circunstância, o Ernesto Sampaio da luz central, o Pedro Oom sonhador espacializado, o Manuel de Castro crocodilo, gente que oriunda ou nem por isso de idealismos igualitários e até, alguns, de militâncias ao jeito moscovita (tentação ditada pelo sufoco da ditadura que não por rigores ideológicos, sempre de pôr entre aspas em tão incorrigíveis egocêntricos), será o berro libertador, ou libertário, e se pusera cá fora, entre rancores que remédio literários, a “rir de tudo”.
César à coca. E a buscar contrapeso e medida na ática Sophia como nos labirintos caligráficos da Velho da Costa, com quem forjou cumplicidades digamos “dialéticas”.
Salgaram todos a língua já de si agilíssima daquele que em suas primícias de bardo (Corpo Submerso, ed, Do Autor, 1959), a par de um tocante, por ingénuo, lirismo amoroso e existencial à la Daniel Filipe ou Zé Gomes Ferreira do Eléctrico (mas lá está ela, a pulsão lírica, a assomar nos filmes, contrapontando bojardas), afirmara ter, como brincadeira preferida, “atirar merda à cara das pessoas” e , como religião, o Urinismo – O ritual de carácter absolutamente erético consistia em Mijar em igrejas e conventos: auspiciosas liberdades poéticas a configurar o “Surreal-abjeccionismo” proposto por Pedro Oom como saída, “para sobreviver livre”, a um surrealismo por cá agrilhoado (na ignomínia salazarenta, “que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?”) e que lhe hão-de enfarpelar uma imagem de marca não mais descartável.


[Setembro de 2003 (ver “Diário de Notícias”), meses depois da sua morte, ainda um tal Mexia, Pedro, o associava a Luiz Pacheco, ao Manuel João Vieira dos “Ena Pá 2000”, ao humorista José Vilhena e cá ao rapaz como fazendo parte de “uma sub-cultura lisboeta mais ou menos escabrosa” própria, logo concomitante, de “uma família devassa”. Em sacristia, muito educativo.]
Os tempos então vividos (décadas de 60-70, com a erupção académica de 61, a guerra colonial e, sobretudo, com o Maio de 68 a disparar formidáveis anarqueiradas e ardentes esquentações românticas sem virgens ao luar) jogaram de feição com o alto-contraste de um César em condição ontológica de vadio e pedinte, não raro roído de fomeca, mas senhor – alto lá! – de “todos os sonhos do mundo”, incluindo o de cinema, contrariado que fora em pequenino ao ver recusada pela progenitora a sua “visão cinematográfica de OS TAMBORES DE FU-MANCHU”: cineasta à vista?
Ora sonhar é fácil – posto que nem sempre sustente a vida, isto é, o estômago. Escrever poemas ou cartas de amor loucas loucas, encher granéis a exprimir amores e desamores sobre matéria de arte, a 7ª (o sublinhado anula o seu uso mercantil), sempre sai mais barato (basta papel, bic, bica e beata no beiço), pode render um que outro maravedi (perguntem ao Bénard de “O Tempo e o Modo”) e, hélas!, desde logo orientar azimutes para a poética (visceral, vivencial) da criação cinematográfica que havia de vir, desse lá por onde desse e custasse, a quem estas coisas custam, o que custasse. Saltando da literatura, pois que dela partindo, o verbo queria-se iluminado, refulgente, um dia animado na alvura da pantalha como violação, exorcismo, e sublimação. A cabeça fervia-lhe (autopsicografava-se já então o “esquizoide”), sendo que o sopro da combustão advinha, não por menos, do compulsivo ódio à burguesia (por uma vez, sem aspas) como do mais intenso, do mais radical fundamentalismo poético – Poesia e Revolução num corpo único e à prova de ara sacrificial. “Je est un autre”. O outro, obviamente, precatava-se: tem a bondade de me auxiliar?
Salivas trocadas, raivas, zangas, risos, no ir descendo nocturnamente a Fontes Pereira de Melo, e porque o abaixo assinado então em funções editoriais no “Literário” do “Diário de Lisboa”, vá de pôr o génio ao trabalho – e de facto ao tostão, fiéis seguidores ambos do preceito cesarínico “ganhar sim, mas pouco”, que era e é, nos sem jeito para o negócio, o que se paga pelo suplemento de oxigénio a que se pode chamar “liberdade”, dessa que abomina, e portanto dispensa, genuflexões de colete e respeitinho.
Vem daí o “pas de deux”, nunca mais abandonado. E quando irrompe (em 73) a revista & etc (aquela que se quis cultural q.b. porque ele há mais vidas e outros modos de se estar nas ditas) foi um fartar vilanagem: prosa de Joãozinho arrancada a ferros dos castos lápis censórios, e logo pois sob cobertura “das mais amplas liberdades” consentidas e fomentadas pela folheca – vá de ameaças de murro e pontapé ou, em alternativa, de processos judiciários. De pronto, a interrogação do energúmeno ao editor responsável: “Dá prisa?”. E logo a resposta do amigo da onça: “Que tabaco fumas?”
Porque ninguém, muito menos eu (se de um lado chove, do outro troveja), lhe travava a gana, lhe amaciava a pena, lhe comovia o músculo cardíaco, sequer por mor de amizades corporativas ou conveniências alimentícias. Vista a esta distância, e mesmo somando as “liberdades democráticas” prodigalizadas pelos poderes dominantes ajaezados de abrilistas, é ainda de espanto graúdo o destempero, o furor interventivo, a causticidade, a própria e sempre tão cuidada acutilância estilística do nosso homem em Lisboa – voz subterrânea alcandorada à polémica do tempo a partir de um subterrâneo da Rua da Emenda.
Cá entre nós, era um festim. E já o cinema por um binóculo, a vozearia (ainda que de papel, ou no papel) a percutir nos tímpanos dos decisores. Aqui, uma mútua conspiração, muda, inominável. E uma relação ao abrigo de transacções: nunca por nunca, quer na revista quer nos livros publicados, recebeu César um chavo da chafarica, nunca por nunca arrecadou esta (cá, “só amor gratuito”, como o Régio) um chavo pelo trabalho do César.

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[Citando João de Deus, o outro, o de Campo de Flores mas também de Criptinas, “vou-vos contar uma história / em prova desta asserção”: estava pronto em chumbo na tipografia o livro Morituri quando a & etc dá o badagaio – nem um tuste para gastos. Que fazer, Vladimir Ilitch? Posto o autor ao corrente, das duas uma: ou chumbo para a caldeira, execução sumária, ou, bóia de salvação, propor a obra, sem despesas, ao editor Nelson de Matos, então na Arcádia.
César opta pela hipótese salvadora, corro ao Nelson, aceita este pagar à tipografia a impressão em troca de ficar a Arcádia com os exemplares da tiragem. Vivas e olés! Publicado o livro (todo & etc, capinha de João Vieira, extra-texto do João Rodrigues, sobrecapa kraft, anilina preta a dar patine às margens das folhas), recebe o autor por copygaitas 20 ou 25 exemplares e eu uns 5 ou 6 pelo trabalho.
Que de euforia! O livro estava cá fora, são e salvo.
… E mais ficou quando, por sua vez falida a Arcádia na enxurrada do 25 de Abril, foi parar a padiolas de venda na rua, contribuindo assim para almoços & jantares de uns tantos trabalhadores desempregados. Anos volvidos, ainda eu comprava, para o desvalido autor, qualquer exemplar que se encontrasse aí perdido.
Desse avantajado sucesso popular retenho um livro na estante. Creio que à altura da morte, o César nem um para amostra.]
Virá a talhe de foice (já que não pode vir a sabre ou a canhão: as letras têm destas limitações) relembrar a miserável campanha difamatória que almejou conspurcar o autor da BRANCA DE NEVE: os pipolares altifalantes da piolheira denominada de pagadora de impostos, no nítido nulo do pensamento crítico, vá de estrondearem o César como salteador de carteiras, burlão que saca o seu do bolso da maralha contribuinte para, costas ao alto quanto a trabalhinho que se visse, ter a lata de pôr em circulação um filme “todo negro”. O “puta que os pariu”, como o “quer que o público se foda” – léxico de Monteiro quando fera acossada –, ao invés de sublinhar a dramática condição do artista face à mais boçal ignorância mesclada de malvadez, cavou de vez o fosso entre uma súcia devoradora de lixos e um homem que sempre recusou submeter o seu trabalho à lógica mentecapta, e aos imperativos, do capital. De muito poucos se pode dizer o mesmo.
Por cá andou, devassado de sonhos de grandeza. Nesta feita cabisbaixa “revisited”, alguns palpitam, ou fosforescem, em forma de filmes. Outros ressaltam nos textos que escapou, espelhando. De costas viradas a uma contemporaneidade lorpa, promotora descarada de equívocos e embustes celofanizados pelo marketing, negou o oportunismo jornaleiro, dito “sociológico”, e avançou com seus próprios pés por um território dificultoso, em parte por desbravar, mas que livra o cinema do espartilho de “espectáculo” – no que este tem de pronto-a-comer & amanhã há mais – para o inscrever de pleno direito no plano superior do espírito, que é aquele a que o artista se obriga.
Este “Lord das Escócias d’outras eras” nosso contemporâneo, forçado a Nosferatu pela pestilência do tempo e do lugar, tornou público um ser endemoinhado, sarcástico, inconveniente até à insuportabilidade. Não poucos foram “vítimas” das suas fúrias incontroladas, das suas telhudas exigências, da violência das suas objurgatórias. Assim fardado (ocultando pois o Pierrot lunar), não é de admirar que o João César Monteiro fosse temido e, pior, odiado. Ele, que em tempos se diagnosticava “não sou uma natureza agressiva, antes pelo contrário” (in “A Minha Certidão”), apesar de ter pretendido estilhaçar uma garrafa de tinto na moleirinha do Cunha Telles por este o ter chamado oportunista, ressentia-se fundo – e devolvia a parada, com juros. A quem o julgou derrotado, ou afim domesticado, após o som e a fúria da borrasca BRANCA DE NEVE, respondeu com o script mais soberbo, mais feroz, de toda a lusa cinematografia – VAI E VEM – e, como num imenso adeus quiçá premonitório, com o seu filme mais hierático, mais conciso e contido, mais cristalino do seu cânone de rigor obstinado.
Com distanciamento irónico ou sem ele, confessou-se aos 20 anos “sempre heróico” e “de peito exposto às feras. Certo é que, algo zurzido por acidentes e disparates da vidinha, nunca lançou a toalha ao tapete nem se acomodou ao repouso do guerreiro. Não é que o percurso biográfico de razão ao promitente herói da Figueira da Foz?
Não sei se “o cinema” perdeu alguma coisa com a sua morte. Eu perdi – mas quem sou eu senão o que gostaria de afirmar que a Cidade também, aquela Cidade onde “tout homme rêve d’être dieu” (citação de André Malraux no pórtico de Corpo Submerso)?
Sabemos que a alturas tantas da sua vida, num desdobramento heteronímico, o César Monteiro passou a denominar-se João de Deus.
Em tal Diabo, foi e é para levar a sério, diz-me aqui a caneta.
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[Vítor Silva Tavares, in João César Monteiro, Cinemateca Portuguesa, 2005]

8.3.10

João César Monteiro na Cinemateca

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Inserida na iniciativa João César Monteiro, Assim e não Assado, a Cinemateca vai passar esta semana, sempre às 22h, vários filmes do realizador, comentados por personalidades próximas do seu cinema:

Seg, dia 8 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969) e Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1971), com a presença de João Fernandes, Maria Velho da Costa e Jorge Silva Melo

Ter, dia 9 - Recordações da Casa Amarela (1989), com a presença de Ramiro Guerreiro e João Nicolau

Qua, dia 10 - A Comédia de Deus (1995), com a presença de Francisco Vidal, Maria Andresen e Paulo Filipe Monteiro

Qui, dia 11 - Branca de Neve (2000), com a presença de Pedro Gomes e Manuel Gusmão

Sex, dia 12 - Vai e Vem (2003), com a presença de Rita Magalhães, Manuela de Freitas e Paulo Branco

4.3.10

"Nostalgia da vida dos outros. É que, vista do exterior, forma um todo. Enquanto a nossa, vista do interior, parece dispersa. Corremos ainda atrás de uma ilusão de unidade."
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[Albert Camus, in Primeiros Cadernos, Livros do Brasil]

3.3.10

"Edital na caserna: «o álcool extingue o homem para despertar a besta» - o que o faz compreender por que motivo gosta de álcool."
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[Albert Camus, in Primeiros Cadernos, Livros do Brasil]

2.3.10

Novamente nas livrarias

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O Outono em Pequim, de Boris Vian (trad. Luiza Neto Jorge)