8.6.10

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RÁDIO PIRATA

… há uma cidade a rebentar na humidade vertiginosa da noite e um homem com olhar de açúcar encostado ao néon melancólico das esquinas espera o próximo shoot de heroína… há uma cidade por baixo da pele e uma casa de sangue coagulado na memória atravessada por canos rotos e um corpo pingando mágoas… há uma cidade de alarmes e um tilt lancinante de flipper dentro do meu pulmão adolescente e uma dor de chuva fustigando o sexo adormecido no soalho do quarto da pensão… há uma cidade de visco e de esperma ressequido e uma pastilha elástica presa ao fundo dum copo… há um sorriso e um engate e um càmone e um arrebenta e uma boca de lodo aberta sobre o rio… há uma cidade de fome e lixo enquanto o ciúme escorrega das mãos dos amantes… há um dedo sobre lâminas usadas e um beco sem saída onde se enroscou um puto e um cão de febre… há uma cidade crescendo no grito e na gasolina no fogo nocturno da minha vertigem presa nas alturas de cimento armado onde coabitam sexos mergulhados em naftalina… há um osso branco que perfura a insónia e a madrugada e esta cidade de nojo e de fascínio… há uma navalha cortando o betão das avenidas e um pássaro de enxofre nas feridas duras dos cabelos… há uma cidade de estátuas desmanteladas contra o espelho de um bordel e a luz do teu olhar dentro de uma janela antiga… há uma cidade de trapos queimados e de vozes ardendo e uma toalha para limpar o sono dos poucos brinquedos… há uma alucinação furiosa que me incendeia a veia e revela o teu rosto lívido que se suicida… há uma cidade de papel engordurado que eu amachuco com o pânico nos dentes e todo o meu corpo sangra… treme… e tem medo… e morre…
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[Al Berto, in O Medo, Assírio & Alvim, 2005]

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