21.9.07

Luiz Pacheco: o Mito do Café Gelo

.

O MITO DO CAFÉ GELO
.
… Ou os saudosismos exaltados. No dia 1 de Maio de 1962 houve em Lisboa uma grande manifestação popular. A Baixa, principalmente o Rossio, foram cenário de muita pancadaria, com tiros, mortos, feridos, correrias, cacetada brava: carros de água e não só: azul de metileno, a porcaria duma tinta que sujava tudo, marcava os manifestantes. Polícia de choque, armadíssima e vigilante e aguerrida. No Café Gelo (onde me dizem haver hoje uma casa de hamburgers de nome cabalístico, ABRACADABRA), estava a malta habitual preparada para os acontecimentos. Como sofro de agorafobia, no momento exacerbada pela prudência, sentei-me resguardado a um cantinho (de nada me valeu); a meu lado o pai da Fernanda Alves e lembro também a Fernanda, o Ernesto Sampaio, o Virgílio Martinho, o João Rodrigues. Por um pequenino incidente que seria longo explicar, surgiu-nos a polícia de choque, levámos porrada. No dia seguinte, o Cerqueira, gerente do café, foi chamado à esquadra do Nacional e ficámos proibidos de frequentar o Gelo.
.
Ora, passados trinta anos, fazem-me perguntas sobre o que era o Café Gelo, sobre aquela malta que se reunia ali, o que se passava, em suma. E sinto-me encavacado para responder, ao certo. Há que constatar: criou-se uma lenda. Exagerada, mitificada, boatada? é o costume, o natural das lendas. Escreveram-se teses sobre (da Aldina Costa, por exemplo). Em trabalhos universitários sobre o Surreal em Portugal é provável que o Gelo seja citado (por ex: o da Eduarda Feio e da Aurélia Cândida). Em tempos, eu próprio escrevi ou gravei uma coisata chamada «Central Gelo», relacionada com os panfletos, polémicas, intrigas desnorteantes, mais ou menos revolucionárias, como a divertida Operação Papagaio (disto sabe melhor que eu o Luís Filipe Costa: até metia assalto ao Rádio Clube Português, com armas de guerra!) Reconheço: a fama do Gelo, já na época, teria algum fundamento. E será, talvez isso, que perdura ainda.
.
Na clientela do Café Gelo, nos anos 50-60, não teria homogeneidade etária, coexistiam tipos dos 8 aos 80, do José Carlos González, caco infantil, ao Raul Leal, do Orpheu, caquético total. Escassa identidade ideológica, dos fascistas à Goulart Nogueira aos anarcas como o Forte, o Henrique Tavares, o Saldanha da Gama. Prostitutas, bêbados e maricas. Maluquinhos como o António Gancho. Nenhuma programação estética. Dali não saiu Revista, doutrina, escola que se aproveitasse. Então?! Havia, isso sim, um espaço de convívio em liberdade plena, feroz e mútua crítica, nenhuma contemplação pelo arrivismo, a vida prática, as etiquetas sociais que noutros meios, da mais categorizada Oh Posição oficial se evidenciavam.
.
E houve suicídios, amores desatinados, gente perdida para sempre, muitos e muitos poemas, livrinhos de estreia. Tudo e um tanto desorganizado e traquinas. E gargalhado, inócuo; haveria ali, no ambiente, uma poesia comunicante, o Herberto que me perdoe roubar-lhe o ápodo. E seria o que nos atraía, então. E terá sido a sua referência melhor, a substância da lenda.
.
[Luiz Pacheco, in Figuras, Figurantes e Figurões, O Independente, 2004]

1 comentário:

Anónimo disse...

Magnificent web site. Lots of helpful info here. I'm sending it to several friends ans also sharing in delicious. And of course, thanks for your sweat!

Also visit my web site - dieta daneza