3.10.07

"Desde que me lembro de mim que a timidez é o meu obstáculo número um. Um entrave que atravanca o mundo. Uma vez, na escola primária, uma professora mandou-me pedir não sei quê a um contínuo. Não me recordo dessa incumbência, mas tenho a certeza que não cumpri. Fui saindo a medo, vagueei pelos corredores, fiquei sentado nas escadas, talvez até me tenha escondido atrás de uma porta. Demorei uma eternidade, enrodilhado na minha incapacidade de ir ter com o contínuo e de lhe dar um simples recado. Longuíssimos minutos depois, regressei à sala e disse, obviamente, que não encontrava o contínuo em lado nenhum.
Ora isto é uma doença, tão doença como uma gastrite. Ou, se quiserem, uma condição permanente, como sofrer de sinusite. Neste episódio eu era uma criança, mas em todas as épocas me lembro de casos assim. Se pudesse, evitava entrar em contacto com uma pessoa desconhecida ou pouco conhecida. Subi e desci avenidas erradas (mesmo em território estrangeiro) apenas para não ter de pedir uma indicação. Comprei o que não queria em supermercados porque não perguntei onde estava o que procurava. Deixei de almoçar vezes sem conta só para não encetar um temível diálogo com a empregada. Sempre que me põe à frente um ignoto concidadão, eu embatuco. Não comunico, olho para os ladrilhos, perco o pio, faço de astucioso Ulisses o possível para não termos de entrar em concílio.
Um dos problemas maiores da timidez é que por vezes parece aos outros um defeito de carácter. O tímido é um menino da mamã (tese proustiana). Ou então um arrogante, que detesta toda a gente e se enclausura na sua carapaça. Ora, creio que em geral o tímido sofre com a sua timidez, e tem vontade de contacto como toda a gente. Reparem: eu sou, e gosto de ser, uma pessoa discreta e reservada. Não cultivo a menor ambição de acordar no próximo sábado festivo como um jamaicano. Estou muito satisfeito com a circunspecção, a introspecção e outras cólicas do espírito. Mas não desgostava de cumprimentar as pessoas sempre que entro nalguma sala (em vez de observar a carpete gasta). Como não me desprazia uma cavaqueira com um colega de viagem ou com alguém que ficasse sentado ao meu lado num repasto (em vez de me refugiar nos classificados da Arrentela ou no cardápio de peixes grelhados). Eu sou aquele típico pateta que numa festa se esgancha contra uma coluna, de copo alto meio vazio, olhando para toda a gente como se fossem fantasmas translúcidos. E é melhor nem entrar no capítulo «sexo oposto» (mais conhecido como «o oposto do sexo»). Dos quinze anos aos trinta e dois, a minha timidez é quem mais ordena. E ordena sempre que me mantenha quieto e calado. Que não manifeste interesse ou intenção. Nem que a moça se pareça com a Cameron Diaz, tenha sido deixada pelo namorado há dez minutos e use um cartaz fosforescente em que pede conforto masculino.
Por essa e por outras é que acho que a timidez é uma doença. Por causa da timidez não fazemos imensas coisas. E nós morremos de remorsos pelo que fizemos mas sobretudo com remorsos por tudo o que deixámos passar. É um comboio que se põe em andamento e acaba com o momento propício (procurem o poema de Thomas Hardy Faintheart in a Railway Train). A timidez acaba connosco. Com uma enganadora gentileza. Os ingleses costumam dizer que uma pessoa é «dolorosamente tímida» (painfully shy). E dizem bem, porque se trata de um sofrimento oculto mas realíssimo. Um tímido fica preso a si mesmo, não se mexe, é um invisível que se vê. E sofre por querer o contrário do que mostra (que é nada)."
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[Pedro Mexia, in Primeira Pessoa, Casa das Letras, 2006]

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