26.3.08

Manual de Prestidigitação: a crítica de Pedro Mexia

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Pedro Mexia fez a crítica a Manual de Prestidigitação, de Cesariny, quando foi publicada a 2ª edição revista em 2005. Foi no Diário de Notícias de 6 de Abril:
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Como estar egípcio e mudado
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Como se escreveu nesta página a propósito da recente reedição de Pena Capital, a obra poética de Mário Cesariny é um constante work in progress. Assim, estas reedições não apenas retomam colectâneas anteriores como trazem emendas, supressões e acrescentos.
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É o caso de Manual de Prestidigitação, que aparece agora em "2ª edição, revista" (a primeira é de 1981, embora várias partes tenham tido edição autónoma nos anos 50). Manual de Prestidigitação, não sendo tão imprescindível como Pena Capital, é mesmo assim um Cesariny significativo em termos de vitalidade poética e que documenta o seu aspecto mais paródico e lúdico. Mas não se esgota nesse aspecto.
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As secções "Burlescas, Teóricas e Sentimentais" e "Visualizações" partem de um imaginário todo cantigas de amigo, romances populares e ladainhas de romaria para o transformarem de modo radical. São textos que convivem com exercícios de desmontagem do quotidiano, da previsibilidade burguesa e da linguagem codificada. Cesariny tanto emprega a rima clássica, com grande aptidão, como procede a desconstruções fonéticas, tanto é campestre como ensaia uma artificiosa peça musical. Por vezes, o discurso joga numa evidente ambiguidade, revisitando a poesia portuguesa, da écloga a José Régio, com alguma intenção paródica mas sem recusar totalmente o cunho sentimental que é o nosso mais permanente património. Nalguns momentos, é mesmo possível que um admirador da poesia tradicional se deixe enganar pelo toada, mas Cesariny logo se entrega a exercícios de profanação suave (como contar as sílabas do Credo e da Ave Maria) e outros boicotes.
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Em "Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor" o jogo é mais propriamente surrealista, com delirantes entradas de dicionário, definições absurdas e trocadilhos e neologismos de toda a ordem (ou por outra contra toda a ordem). Esta colectânea tem mesmo algum surrealismo ortodoxo, com automatismos, imagens surpreendentes e alheias a todo o gosto contido, e com intensas correspondências poéticas: "É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia/ é preciso dizer azul em vez de dizer pantera / é preciso dizer febre em vez de dizer inocência" (pág. 128). Ou ainda com os célebres e deliciosos inventários: "vinte e quatro tragédias burguesas / dois casais cheios de felicidade / nove mulheres casadas (portuguesas) / e um caso de mendicidade // um coronel reformado um visconde nazi uma sorte adversa / uma vista para o campo uma menina Ester / um prédio em construção dois dedos de conversa / um lindo rapaz que adora perder // uma prostituta elegante dois galos sem crista / uma vida sem vida um defunto a viver uma vida asquerosa / dois carris de ferro o filósofo existencialista / e / um cínico e a esposa" (pág. 79).
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Por outro lado, este é um dos livros em que se concretiza um constante diálogo com Pessoa. Não tem a acidez de O Virgem Negra, mas retoma directamente Campos e mesmo a prosa do ortónimo "eu em 1951 apanhando (discretamente) uma beata (valiosa) / num café da baixa por ser incapaz coitados deles / de escrever os meus versos sem realizar de facto / neles, e à volta sua, a minha própria unidade / - Fumar, quere-se dizer // esta, que não é brilhante, é que ninguém esperava ver num livro de / versos. Pois é verdade. Denota a minha essencial falta de higiene / (não de tabaco) e uma ausência de escrúpulo (não de dinheiro) / notável // o Armando, que escreve à minha frente / o seu dele poema, fuma também, / fumamos como perdidos escrevemos perdidamente / e nenhuma posição no mundo (me parece) é mais alta / mais espantosa e violenta incompatível e reconfortável / do que esta de nada dar pelo tabaco dos outros / (excepto coisas como vergonha, naturalmente, / e mortalhas) // (que se saiba) esta é a primeira vez / que um poeta escreve tão baixo (ao nível das priscas dos outros) / aqui e em parte mais nenhuma é que cintila o tal condicionamento de que há tanto se fala e se dispõe / discretamente (como que as apanha. ) // sirva tudo de lição aos presentes e futuros / mas taménidas (várias) da poesia local. / Antes andar por aí relativamente farto / antes para tabaco que para cesariny / (mário) de vasconcelos" (págs. 95-96).
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No «discurso ao príncipe de epaminondas» (uma das muitas personagens que pontuam este livro) encontramos uma espécie de solenidade "moral" (palavra equívoca, reconheço), que nunca esteve ausente em Cesariny, uma solenidade impregnada de lirismo e com evidente conotação sexual "Despe-te de verdades / das grandes primeiro que das pequenas / das tuas antes que de quaisquer outras / abre uma cova e enterra-as / a teu lado / primeiro as que te impuseram eras ainda imbele / e não possuías mácula senão a de um nome estranho / depois as que crescendo penosamente vestiste / a verdade do pão a verdade das lágrimas / pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela" (pág. 146).
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Mesmo (ou especialmente) numa colectânea como esta, que parece uma espécie de laboratório, Cesariny nunca é apenas o desmistifacador insolente é sempre também terno e comovente. Às vezes basta a repetição (e a colocação gráfica) de um verso aparentemente anódino como "onde está a camisola" ou mesmo o simples "e depois?" ou (caso do poema "julião os amadores") para conseguir esse efeito. Ou então surgem a repetição e anáfora, que nunca soam escusadas. Ou o emprego sempre poderoso do dístico ("queria de ti um país de bondade e de bruma / queria de ti o mar de uma rosa de espuma"). Uma retórica ao serviço de uma (nobilíssima) visão.
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Cesariny tem paródia, mas também tem pathos "como a vida sem caderneta / como a folha lisa da janela / como a cadela violeta / - ou a violenta cadela? // como estar egípcio e mudado / no salão do navio de espelhos / como nunca ter embarcado / ou só ter embarcado com velhos // como ter-te procurado tanto / que haja qualquer coisa quebrada / como percorrer uma estrada / com memórias a cada canto / como os lábios prendem o copo / como o copo prende a tua mão / como se o nosso louco amor louco / estivesse cheio de razão" (pág. 81). Não são dois Cesariny: é sempre o mesmo, e só precisamos de perceber, a cada momento, o tom certo.
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Depois da nova Pena Capital, parece mesmo que caminhamos para uma fixação do cânone poético de Mário Cesariny de Vasconcelos. Num poema de Manual de Prestidigitação, o autor escreve a certa altura que "consumada a Obra sobram rimas". Mas, neste caso, sobra muito mais que isso sobra a violência, a irrisão, a comoção.